quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pode dar certo, entende?

Quase tudo já foi dito sobre Pelé desde quinta-feira passada, quando nos deixou. Felizmente, sua obra está registrada em narrativas audiovisuais, escritas e orais.

No dia seguinte, uma nordestina, negra, defensora das causas LGBT, foi escolhida para ser presidente do Banco do Brasil. A paraibana Tarciana Medeiros é a primeira mulher a ocupar o cargo em dois séculos de história da instituição.

 


O que uma coisa tem a ver com a outra? Aparentemente, nada! Mas
 ao reler a crônica adiante, aqui publicada há mais de dois anos (em outubro de 2020), vi que o desfecho contém algo premonitório: um choque de diversidade e inclusão.

Vai ver o Rei, sabiamente, já começou a marcar seus golzinhos no Céu, buscando reduzir desigualdades atávicas aqui na Terra.

 

Não ia dar certo, entende?

 

Na live “Pelé, 80 anos” apresentada outro dia pelo site UOL Esporte em homenagem ao aniversário do Rei do Futebol, o jornalista Cláudio Arreguy contou uma história deliciosa de como o mundo esportivo quase foi vítima do acaso e engrossaria o caldo das coisas que poderiam ter sido e não foram. 

 

Dizia ele que Dr. Prata, médico e pai do escritor Mário Prata, sugeriu a Dondinho, o pai de Pelé, que convencesse o filho a prestar concurso para o Banco do Brasil. “Futebol não dá futuro a ninguém! Bota o rapaz no Banco do Brasil que lá ele tem futuro garantido”. 

 

Apesar de a sugestão partir do único e respeitável médico da Bauru na metade da década de 1950, prevaleceu o saber popular: “Se conselho fosse bom...”. Note-se que, naquele tempo, não se imaginava que mais de meio século depois haveria “médico” aconselhando cloroquina para combater uma gripezinha sazonal. 

 

Posso até não discutir o estrago que o conselho do Dr. Prata a Dondinho, se acatado, causaria ao futebol mundial, mas me atrevo a imaginar o que teria acontecido ao cidadão Edson Arantes do Nascimento se tivesse obedecido a eventual orientação paterna. 

 

Com a bola que ele andava jogando, logo seria transferido para uma grande metrópole, passando a integrar o time de futebol de salão da AABB. E nos primeiros anos de banco não seria tão difícil obter uma licença especial para disputar jogos pela extinta CBD. Quem sabe até um publicitário condicionaria a liberação do atleta à exposição da marca da empresa na camisa canarinho, como ocorreria mais tarde envolvendo a CBV (vôlei), a partir das Olimpíadas 92, em Barcelona.  

 

Edson, porém, sabendo que a ação cruel do tempo sobre seus músculos e ossos uma hora decretaria o fim da carreira futebolística, cuidaria de preservar suas relações internas, admitindo até que alguns chefes dessem pitacos sobre sua conduta extra-banco. A empresa sempre teve seus sabichões das segundas-feiras que transitavam de teorias de Einstein sobre a interação entre espaço, tempo e gravidade, aos estudos sobre os múltiplos orgasmos de uma abelha-rainha.  

 

Por azar ou grande atuação de goleiros que jogavam contra a seleção brasileira, Edson deixaria de marcar alguns gols que certamente seriam incluídos entre os mais bonitos de sua jornada. Gols que não aconteceram, mas ficaram para sempre na memória dos amantes do esporte. 

 

Aos 29 anos e no auge de sua forma física, o funcionário do BB cedido à CBD viria a ser o grande protagonista brasileiro na Copa 1970, um autêntico “Nélson Mandela” a liderar a seleção na conquista de seu terceiro Mundial, que garantiu a posse em definitivo da taça Jules Rimet, roubada e derretida 13 anos depois, sinal claro de como o país cuida de sua história.

 

Na época, três goleiros passariam a ser conhecidos no mundo inteiro justamente por se envolverem – dois deles como coadjuvantes e o outro dividindo o papel de protagonista – em lances espetaculares de Edson, reconhecido mais tarde como o “Atleta do Século”.

 

Viktor, da antiga Tcheco-Eslováquia, quase levou um gol em um chute de Edson do campo de defesa brasileiro. O goleiro bem que tentou, mas não conseguiu fazer a defesa, e a bola passaria a poucos centímetros do ângulo de sua trave esquerda. Na manhã seguinte, imagino, um chefe de serviço qualquer ligaria para Edson: “Negão, vê se capricha na próxima e melhora o rendimento, tá legal?”

 

Mazurkiewicz, do Uruguai, tomou humilhante "drible da vaca" – também conhecido como “meia-lua”, “arrodeio” – na entrada da grande área. Mesmo desequilibrado, Edson ainda chutou cruzado, rente ao pé da trave direita, iludindo inclusive o zagueiro que tentava fazer a cobertura. Após a partida, creio, um gerente qualquer ligaria: “Você não tinha nada que enfeitar! Poderia ter feito o gol de fora da área, cobrindo o goleiro com uma cavadinha, sem frescura!”

 

Banks, da Inglaterra, por sua vez, defendeu uma cabeçada quase perfeita, interceptando em pleno ar uma bola que quicou antes, após um salto espetacular de Edson entre os zagueirões branquelos. Certamente um diretor qualquer do banco não perderia a oportunidade de cutucar o funcionário cedido: “Vacilou. Se tivesse cabeceado no contrapé do goleiro, no canto esquerdo, faria o gol...”

 

Logo depois Edson retomaria sua carreira bancária pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, avaliação de desempenho, colegas invejosos de suas tarefas extra-banco etc. Acabaria mais desorientado do que o goleiro italiano Albertosi, vítima de seu último gol em Copas do Mundo, na goleada de 4 a 1. 




De repente, Edson já não sorriria largo, leve, para os clientes. Nem veria graça num trabalho cheio de manuais de procedimentos. Teria medo de demonstrar insegurança ao prestar esclarecimentos e, quem sabe, suscitar dúvida em seu chefe imediato quanto à aptidão para a carreira. O que diriam Dondinho e Celeste se o filhão perdesse o emprego com futuro garantido de que falava o Dr. Prata?

 

Mas daria tudo certo. Se bem que Edson, que nunca vira motivos para denunciar os excessos da ditadura militar ou a existência de racismo no país, logo perceberia que metade da população brasileira é parda, mas isso nunca se refletiu nos quadros da empresa, circunstância que piora quando se fala da ocupação dos chamados cargos de confiança.

 

Hoje, oitentão, aposentado, Edson talvez refletisse sobre algumas questões para as quais não encontrou resposta no emprego com futuro garantido: por que nunca viu um presidente negro em tantos anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só um em mais de dois séculos de história? 

 

Quem sabe até se perguntasse: e se ele, Edson, tivesse nascido em Dois Riachos, Sertão alagoano, fosse mulher, mestiça de caboclo com indígena, e se chamasse Marta, a história teria sido diferente? "Não ia dar certo, entende”, talvez dissesse.

37 comentários:

  1. Crônica boa da gota!! Com a negritude brasileira escancaradamente exposta, pronta pra ser protagonista. Vai dar certo!!! Parabéns!!!

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  2. Ademar Rafael Ferreira4 de janeiro de 2023 às 06:00

    A primeira crônica do ano chega no limite do teto, vamos solicitar autorização para furar o teto. A criatividade não pode enfrentar barreiras. Espetacular texto. Deu certo.

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  3. Receber esta crônica; um presente, puder refletir, uma oportunidade ímpar. Os caminhos e histórias da vida de muita qualidade, "Já deu certo". Parabéns!!!

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  4. Quando crescer, quero escrever assim! Sou fã!

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  5. Muito oportuno o resgate da crônica original da nossa querida máquina de moer talentos. Eu espero que a nova presidenta faça uma fileira de conquistas inesquecíveis como fez o Rei. Vai que dá certo? Dedé

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  6. 👏👏👏As prováveis críticas das segundas-feiras se encaixariam perfeitamente naquilo que os americanos chamam de "Monday Morning Quaterback". A propósito, há uma música extraordinária de Frank Sinatra que faz uma belíssima analogia com coisas do coração.
    Mas o ponto central da crônica fala mais alto. Saúdo e desejo sucesso à primeira presidente mulher do nosso BB.

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  7. E a primeira de 2023 já carimbou o passaporte para o próximo livro de crônicas. Excelente imaginário com o que poderia ter acontecido no Reino do "se". Esperemos mais "gols de crônicas" para o ano que se inicia.

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  8. Amigo Hayton. Excelente crônica. Conhecemos o BB e sabemos das dificuldades e desafios de conduzir aquele "navio". A nova presidente vai precisar de muita sorte e competência. Abraços.

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  9. Que os deuses do futebol tiveram que dar duro pra não deixar o Rei ir pro BB, ah, isso tiveram, viu? Felizmente lá foi ele ser gauche na vida, como diria Drumond.

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  10. O autor se superou nessa crônica! Afiado quem nem navalha! Vamos só ver se a nova "presidenta" do BB tem competência,. que é o que o Brasil precisa.

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  11. E se um escritor como o Hayton tivesse ido viver de literatura ao invés de ser funcionário do Banco do Brasil, onde teve carreira brilhante?
    Se ele está escrevendo desse jeito, a cada crônica exponencialmente melhor e mais maduro, imaginemos onde ele poderia ter chegado no universo das premiações e na galeria dos escritores nacionais sentisse exclusivamente escritor.
    Do mesmo jeito que Edson talvez não tivesse chegado a ser Pelé em plenitude se fosse funcionário do Banco do Brasil, é possível que o ingresso no BB (repito, apesar de todo o sucesso da carreira do Hayton) tenha reduzido a oportunidade do Hayton brilhar ainda mais como escritor profissional.
    Quem sabe não desperdiçamos nosso primeiro Nobel, o de Literatura?

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    1. Nem tanto, meu generoso amigo, nem tanto! Como dizem no interior do Nordeste, “os mangados também veve”. Escrever pequenas crônicas é como jogar tênis de mesa: quanto mais se pratica, mas fácil se torna o próximo jogo. E, parafraseando o Macaco Simão, o Brasil é o país da crônica pronta.

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    2. Infelizmente, aqui os escritores não são valorizados, seja pela falta de incentivos à leitura ou baixo nível educacional. Eu mesmo tenho cinco livros editados de poesia, mas paguei a edição de todos e não tive o "reembolso" pelas vendas. Normal. Há alguns anos, falei a uma poeta com idade de dez anos que, com literatura não se ganha dinheiro, mas te prepara para melhor vencer as batalhas que a vida impõe. Hoje, a menina é odontóloga pela UnB. Valeu, né?

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  12. Bela e criativa crônica! Concordo com Sérgio que se Hayton tivesse enveredado na literatura ao invés do BB também daria um show e com certeza seria muito conhecido nacionalmente. É um craque em tudo que fez e faz à exceção do futebol que conheci seus dotes de perto! kkk

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  13. Hayton, sou mais você como Presidente do Banco do Brasil, pois seu talento eu conheço.
    A Instituição BB é muito complexa para ser entregue a Deus dará. Olhe que pode não dar certo!

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    1. Eu prefiro chegar aos 80 anos como você, meu caro Orlando, batendo um bolão tanto nos rachas como na condição de marido, pai e avô exemplares. Não me deseje o mal 😹

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  14. Assim que o Rei Pelé surgiu no futebol, o Botafogo fez um amistoso com o time do Santos e o presidente do Santos se encantou com o craque Didi do Botafogo. Ofereceu um garoto que começava a jogar e uma quantia em troca. O presidente do Botafogo não quis ficar sem o Didi, já consagrado. Resumo: os deuses do futebol não permitiram que Pelé e Garrincha jogassem no mesmo time...rsrsrs

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  15. Sensacional. Muito inspirada a primeira crônica do ano. O sarrafo subiu.

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  16. Esperança que nesse ato o BB, esteja enterrando definitivamente a política do “chicote, do assédio moral” tão incentivado nas , diria, 2 últimas décadas. Vai que dá certo ?!

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  17. Prodigiosa imaginação. Que colocou o Rei nas fileiras do BB. Não só isso. Levou-o a uma suposta aposentadoria. Em contraponto, a citação da nova presidente do Banco. Que não teve destacados dotes técnicos, ou um background daqueles famosos: Harvard, Cambridge. Sinal dos tempos, caro Hayton. As qualificações para um cargo da envergadura do de CEO do BB, hoje, são diferentes. Quem sabe sejam os tão propagados "soft skills", que dão musculatura a Tarciana. Ou, quem sabe, sua inteligência emocional. É, no mínimo, estranho. Como deixar Pelé dominar uma escrivaninha bancária.
    Roberto Rodrigues

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    1. Valeu, Roberto!

      Sendo bem sincero, você precisa ver o tanto de descontentes que leram o texto e tentaram me fuzilar no particular, aos que respondi mais ou menos assim:

      “Fulano… também não conheço a escolhida. Mas opto sempre por conceder aos desconhecidos o benefício da dúvida. A vida inteira tem sido assim.

      Não condeno nem bato palmas a priori, nem quando a escolha recai sobre um heterossexual convicto, branco e bem nascido na região Sudeste, como na esmagadora maioria das vezes nos últimos 200 anos do bancão.

      Que não seja apenas uma manobra marqueteira – não creio nisso! –, o que só aprofundaria ainda mais o fosso das desigualdades de gênero, raça e opção sexual numa pátria amada nada gentil ultimamente.”

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  18. Parabéns por mais um texto. Desta vez, mais surpreendente que os demais. De fato, parece que houve premonição. Parabéns! Grande abraço.

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  19. Quanta criatividade e memória futebolística! Parabéns!!! Crônica deliciosa!

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  20. Cleber Pinheiro Fonseca4 de janeiro de 2023 às 12:06

    Parabéns, Hayton. Começou bem a temporada com este belo gol de letra(s).

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  21. Meu cumpade Hayton
    Muito bom esse repeteco sobre um possível Edson do Banco. Este, mesmo fazendo parte do foderoso ataque da AABB, seria arriscoso ficar no banco.
    O gerente, doido padrão BB, ia botar na cabeça do pai dele, que, melhor ainda é a profissão de juiz de futebol. Por que?Porque é a única profissão do mundo, que, quando o caba apita, todo mundo pára. Toda torcida presta atenção e o tempo congela. Isso é que é profissão.

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    1. Grande Jessier Quirino, o Pelé da prosa matuta, lenda viva na terra-berço de Sivuca. Melhor não se mexer com essa história de juíz, meu cumpade. Dona Celeste, mãe do Negão, não iria gostar nada disso!

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  22. Ótima crônica. Muito oportuna. Parabéns!

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  23. Oportuno resgate, ótima reflexão, como sempre!
    Texto bem atual.
    O Brasil precisa mesmo de um tratamento de choque (de diversidade). Não vai sarar (evoluir) sem isso…

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  24. Valdery Franco de Moura Moura4 de janeiro de 2023 às 16:07

    Começou o ano bem inspirado. Excelente resenha. Acho que quando nascemos, o destino já vem traçado. Ele já veio como Pelé. Se daria bem no BB também, mas não tanto. Entende?

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  25. Que maravilha de texto meu amigo! Você cada dia que passa fica melhor. Quando eu crescer quero ser um tiquinho do que você é. Rsrs. Perpetua

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  26. É até difícil encontrar um adjetivo que realmente defina a qualidade desta crônica.
    Quem realmente "matou a pau" aí foi Sérgio Riede, com uma reflexão e definição que também me ocorreram, mas eu jamais teria condição de expô-la com o brilhantismo dele.
    Como a crônica vem de dois anos passados, eu classificaria você, de pronto, como um vidente, não fosse minha condição de descrente no metafísico e ou esotérico.
    Por fim, sua descrição - sabichões das segundas-feiras que transitavam das teorias de Einsten... - é verdadeiramente antológica.
    Não há dúvida, 2023 já nos mostrou que, no que se refere ao brilho de suas crônicas, não teremos sossego, a "corrida" será ainda maior.

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  27. Excelente crônica, Hayton.
    E a Tarciana vai fazer tudo tão bem que o bancão será maravilhoso.
    Abração,
    Gradim.

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  28. Wilson Ferreira Teles : Daria certo, entende. Pelé, seria Pelé em qualquer coisa que se metesse a fazer. Entende?

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  29. Boa Noite...
    Desta vez, caro amigo Hayton, você foi para nossas "cozinhas" e colocou um "rei" para ser o "chef", sabendo que dessa "cozinha", nós leitores, conhecemos um bocado. E, aí, nosso "chef" danou a fazer "pratos" espetaculares...
    Muito oportuna sua crônica para o momento atual... Parabéns.

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  30. Sensacional Hayton!!! Bravo!!!
    Depois do Gol de Placa deveríamos ter uma placa pra seu texto: uma Crônica digna de Placa.
    Quanta sensibilidade e leveza no seu texto. Até na hora dar uma estocada cirúrgica no nosso BB, após quase 220 anos de comandantes masculinos. Muitos deles sem a menor condição de serem síndicos do prédios onde residiram. Inclusive sobrou para aqueles que se apressam em julgar uma mulher nordestina experimentar pela primeira vez administrar nossa Organização. Seja bem-vinda Tarciana nos ensine a administrar melhor essa Empresa.
    Beto Barretto

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  31. Ótima crônica. Concedo-me, no entanto, o benefício da dúvida. De um lado a competência foi conhecida...

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