quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Uma estrada e a lua branca

Triste de quem não conserva nenhum vestígio da infância, pontuou certo dia o poeta Mário Quintana. 

Entre oito e nove anos de idade, todo sábado eu ouvia os discos (em especial os de Luiz Gonzaga) que meu pai punha na radiola enquanto encerava nossa casa. Ficava imaginando os cheiros, as cores e os sons do Sertão onde comecei a me despertar pro mundo. 

 

Tudo era simples. Quando dei por mim, tinha decorado Estrada de Canindé, no linguajar de meus avós maternos (clique e escute): 

 

“Ai, ai, que bom,

Que bom, que bom que é

Uma estrada e uma caboca

Cum a gente andando a pé.

Ai, ai, que bom,

Que bom, que bom que é

Uma estrada e a lua branca

No sertão de Canindé.

Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié.

Quem é rico anda em burrico,

Quem é pobe anda a pé.

Mas o pobe vê nas estrada

O orvaio beijando as flô,

Vê de perto o galo campina

Que quando canta muda de cô.

Vai moiando os pé no riacho…

Que água fresca, nosso Sinhô!

Vai oiando coisa a grané,

Coisas que, pra mode vê,

O cristão tem que andá a pé”.

 

Um dia, quando crescesse, faria longas viagens de carro, parando aqui e ali para comer e beber, conhecer lugares e pessoas, ouvir e contar histórias, essas coisas.

 

Enganei-me. Fiz muitas viagens durante a minha jornada profissional, porém apressadas, mais preocupado com a hora da partida e da chegada do que com o caminho em si.

 

Hoje, não me animo a cair na estrada. Alguns sustos entre Alagoas, Pernambuco e Bahia, mexeram comigo. O medo de cochilar ao volante e acordar no purgatório desbotou a coragem e a paciência. 


Passei a viajar menos, de carro. Depois que me aposentei e até antes da pandemia, me acostumei ao corre-corre e ao vozerio de aeroportos, ao barulho das turbinas, a ver o chão lá das nuvens. 


Perdi o direito de ver o orvalho molhando as flores, ou o galo-de-campina mudando de cor, “coisas que, pra mode vê, o cristão tem que andá a pé”, como cantava Gonzagão.

  

Outro dia puxei conversa com meu querido amigo Carlos Bicca, o mais nordestino dos gaúchos, com quem compartilho caros momentos desde 1996, quando nos vimos (no plural, porque alcança Cristina e Magdala, minha mulher), pela primeira vez, no Recife.

 

Bicca me disse que nunca lhe agradou estar entre quatro paredes, mas a necessidade falou mais alto, pelo menos até que pudesse trocá-la por algo mais precioso: o tempo, de preferência ao ar livre. Tanto que se transformou em maratonista dos bons, depois dos 50 anos. 

 

Contou que gosta de estrada desde criança e que nunca escondeu isso nem dele mesmo. Para desassossego de quem se senta no banco do carona, ele garante que “o melhor caminho entre dois lugares é sempre o que tem mais serras, curvas e estradinhas...” 

 

É mais um fã de Niemeyer, para quem “se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o que faz o concreto buscar o infinito”. 

 

Depois que se aposentaram, Bicca e Cristina caíram na estrada numa Mercedes Sprinter (com “casa” montada sobre os chassis), levando Maya, cadela de pelos dourados, da raça Labrador, no auge de seus 10 anos.

 

Fotografia: Carlos Bicca

Nos últimos três anos e meio, a experiência de “viver sobre rodas, ao invés de ancorados nos alicerces de um endereço fixo", forjou dois minimalistas convictos, nômades e felizes. Aprenderam a desapegar de coisas, a compartilhar quase 100% da mesma rotina, a suportar estoicamente a saudade dos netos, a compreender que “todos os dias são especiais e tem valido a pena cada quilômetro de estrada percorrido juntos”.

 

Fotografia: Carlos Bicca

E como o viajante da Estrada de Canindé, “oiando coisas a grané”, Bicca virou exímio fotógrafo. Vive provando aos amigos, nas redes sociais, que nem arame farpado retira a beleza de uma cerca. "Fotografar me poupa de explicar com palavras o que vejo". Mas não fotografa. Faz autorretrato – só ele enxerga daquele jeito.

 

Tocado por uma inveja benigna, eu quis saber qual teria sido o lugar mais impressionante que conheceram. O casal não titubeou: Paso San Francisco, na Ruta de los 6 miles. “Cruzamos a Cordilheira dos Andes a quase 5.000 metros de altura... É uma estrada mística para motociclistas, pouquíssimo utilizada por veículos de maior porte como um motorhome”, disse Bicca.

 

Agora quer explorar um pouco mais a América do Sul. Conhecer também alguns rincões escondidos do Velho Continente, a bordo de uma autocaravana que adquiriu em Portugal, em sociedade com outros casais que conheceram em Brasília.

 

Como ainda me sinto “criança” – apesar das dores e dos desencantos da hora –, me pego aqui pensando em viajar um pouco mais. Afinal, coragem é a cor que cada um escolhe para colorir os dias que restam da grande viagem.

 

Quem sabe um dia, quando crescer.

46 comentários:

  1. Ademar Rafael Ferreira1 de fevereiro de 2023 às 04:35

    No banquete da viagem a fotografia é prato principal. Viver na estrada é um dos vícios que mantenho.

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  2. Gonzaga cantou que a vida dele era andar por esse país, de algum jeito muito de nós andamos . Eu, como você, também andei muito por esse país e até pelo mundo, mas a oportunidade que Bicca e Cristina estão vivendo só se compara aos passeios de bicicleta que tenho feito nos últimos anos. Este vício, como o deles, espero não perder tão cedo. Pedalar é quase andar a pé, só que um pouquinho mais ligeiro e quando paramos, é a cereja do bolo. Quem sabe uma hora encontro os dois pelos caminhos. Belo texto meu querido amigo, um refresco, no meio dos líquidos que estou tomando, me preparando para um exame, quando o dia nascer. Lembranças pra Magdala.

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  3. Maravilha o que estão fazendo Bicca e Cristina "pelas estradas da vida"! Bela crônica amigo Hayton.

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  4. Excelente crônica ! A vida em si é uma viagem, também cheia de curvas e montanhas , e haja coragem pra viver !

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  5. Um motorhome é um banheiro químico motorizado, acrescido de alguns luxos. Admiro quem tem a coragem de adotar esse estilo de vida. Eu sou doido por uma estrada, mas no final do dia premiado por um bom sono num hotel. Viajar é viver. Viver é viajar. Dedé Dwight.

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  6. Ótima autorunimação, rasante retrô nas planícies das memórias alumia tudo.

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  7. Colorir a grande viagem é pura magia. Ver, sentir e cheirar o novo embala os sonhos mais profundos de cada ser. Mas, claro que vale ir pelos ares. Perde-se o trajeto, mas se ganha a nova estada. Com direito a novos amigos, inclusive. Muito bom
    Roberto Rodrigues

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  8. Como sempre tu pega em nossas mãos e nos conduz com maestria pelas veredas de tão belas histórias. Você tem feito uma magnífica viagem, e sem sair de casa, talvez a mais bonita e difícil, a viagem em busca de si mesmo. Obrigado por nos estimular a também fazê-la, revirando fragmentos de nossa história e saboreando o que temos pra hoje. Viajante Hayton, que ao mergulhar no cotidiano de memórias eterniza momentos.

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    1. Um viajante não deve ter planos fixos nem a intenção de chegar logo. Quem se mete a escrever sobre o assunto, também. Deve deixar sua intuição levá-lo para onde quiser.

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  9. Essa crônica é inspiradora. E nessas viagens da vida o mais importante é o caminho. E que inveja boa do Bicca e Cristina, pois nesse sonho minha cara metade não embarca. Uma pena.

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  10. Cresce logo meu amigo. Viajar pelo interior é muito bom. Ver a natureza exuberante, o céu, o sol, a chuva, o amanhecer... deixa os sustos. A admiração será maior.

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  11. Amigo Hayton. Muito boa crônica. Nunca imaginei que os amigos Bicca e Cristina colocariam o pé na estrada e teriam uma vida de cigano. Mas é um excelente exemplo para nós. Mas prefiro a quietude. Forte abraço

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  12. Mais uma ótima provocação haytoniana, em forma de reflexão.
    “Navegar é preciso, viver não é preciso”, já dizia o poeta italiano Petrarca. Diria eu que viajar também não é preciso, no sentido de que não é uma ciência exata.
    O importante é deixar de ver as coisas e as pessoas com olhos colonizados ou robotizados, como se tudo já tivesse sido visto e sentido.
    É preciso abrir os olhos, a mente e o coração pra contemplar uma “simples” alvorada ou um “simples” por do sol como se fossem únicos. Porque eles são.
    E creio que podemos fazer isso viajando fisicamente, mas também mergulhando com intensidade e despojamento num livro, num belo filme ou numa insubstituível viagem representada por um despretensioso papo com um amigo ou com a pessoa amada!
    Felizes os que também sabem aproveitar uma boa “viagem na maionese”!

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  13. Durante 34 anos só viajávamos de motorhome, depois mais 3 sozinha na boleia. Descobri que o me encantava era nossa dupla/parceria na estrada e desisti dela mas valeu a pena cada experiência. Bicca e Cristina são ótimos e merecem este texto lindo. Parabéns!

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  14. Que texto inspirador! Parabéns!

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  15. Meu amigo Hayton,
    Nos sentimos imortalizados nas tuas palavras!
    Obrigado pela crônica.

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    1. Aqui pensando no privilégio da cadela Maya por compartilhar com você e Cristina tantos momentos singulares. Ela nem se dá conta, de outra parte, do bem que faz a vocês. Bem feito para os três!

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    2. Só quem tem ou teve o privilégio de conviver com esses seres 🐾 sabe o quão bem eles nos fazem.

      Maya🐾, na linguagem dela, aprendeu a falar conosco.

      Você sabe muito bem como é isso.

      🙏

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  16. Crônica de uma viagem anunciada. Tive o privilégio de trabalhar com Bicca e Cristina Arretche. Grandes seres humanos. Crônica saborosa de quem, após anos preso entre quatro paredes , realiza o.sonho de uma vida nomade, livre e sem destino predefinido. Inveja boa. Feliz por ver amigos realizando seu sonho.

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  17. Duas belas histórias, a vivida e a contada! Parabéns a todos os personagens! Delicioso texto!

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  18. Aplausos por mais um texto.

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  19. Ao contrário de você prefiro as viagens de carro. Que crônica! Da até vontade de pegar o carro e sair sem destino. Rsrs. Perpetua

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  20. O tempo é senhor dos destinos, já diz a canção… Bicca e Cris fazem de seus destinos, no tempo da vida, a paisagem e o retrato de suas almas. Abraço carinhoso, vivam a vida com “coragem”!!

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  21. Parabéns pela excelente crônica Hayton. Trabalhei com Bicca e Cristina na Ag. 1245-9 na AV. Barão de Souza Leão. Ambos pessoas de qualidade excepcional. Cristina sempre muito atenciosa, não cansava de ajeitar o no da minha gravata, que ela sempre dizia."Está horrível ".

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    1. kkkk
      A vida como ela é: teu depoimento é ímpar, trazendo pequenos detalhes do dia-a-dia que marcam nossa história.
      Obrigado pelas palavras e um grande abraço a você, Amaury.

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  22. Mais um presente. Obrigada Hayton! Além do texto delicioso e inspirador você me fez lembrar dos nossos dias felizes de CASSI Sede. Trabalhar com a Cris e o Bicca está na conta das coisas boas que você me proporcionou. Marina.

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  23. Linda crônica! Reflete mesmo o querido Bicca. 🥰

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  24. Maria Helena e Emanuel1 de fevereiro de 2023 às 15:26

    Excelente!
    Com certeza encaminharei a alguns amigos para uma leitura gostosa e a admiração do casal adotado pela Maya... hehehehe

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  25. Hayton, vc é mesmo o mestre das palavras... com a capacidade de relatar tudo o que vê com os olhos do coração. Gostei muito!
    Ainda mais que, também gozo da amizade do Bicca e da Cris. Aliás, para quem não sabe, Bicca foi o meu mentor de Maratonas... por incentivo dele me tornei corredor.
    Tempos atrás, numa visita à casa do Bicca e Cris, estes me falaram do projeto "maluco" que pensavam em fazer acontecer. Projeto este que, de maluco não tem nada...
    Quanto ao "Paso San Francisco", por ele citado, tive o privilégio de compartilhar a experiência... ele, a Cris e a Maya no Motorhome, eu e a Socorro em outro carro (convencional). Assino embaixo das palavras do Bicca, diante de tanta beleza, natureza e altitude que pudemos testemunhar.
    Valeu demais essa crônica!

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    1. Uma “grande viagem nas alturas” da Cordilheira dos Andes, com uma excepcional parceria. Parceria que começou há 25 anos, no BB, muito bem lembrado por ti. 👊

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  26. Um registro adicional: Vc, Hayton, foi o alquimista que proporcionou a amizade que temos com o Bicca e a Cris... foi pelas mãos da Super PE (leia-se Hayton Jurema) que o Bicca foi compor a equipe da Ag. Boa Viagem - Recife. O resto é história... e estrada. Literalmente! rsrs

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  27. Querido Hayton! Não sei como expresar o lindo sentimento ao ler sua crônica. Esta, com certeza, ficará no pódio junto com aquelas onde vc descreve suas aventuras de infância. Grande abraço a você e Magdala!

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  28. Belo exemplo de vida!
    Taí algo que admiro e invejo, faltando-me coragem e convicção.

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  29. Crônica maravilhosa. Perfeita tradução desse casal maravilhoso. Vcs me inspiram!!!!

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  30. Lêda Tôrres - a poetisa2 de fevereiro de 2023 às 00:59

    Que crônica linda, quando a lemos, a gente viaja por ai com os seus personagens. Mais um presente seu texto, muito rico de detalhes, Hayton. Um abraço

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  31. Bela crônica, justa homenagem. Ideais de vida bem vivida, sonhos em realização... felizes aqueles que compartilharam momentos com personagens dessa crônica. Biccão e Cristina são merecedores dessa relíquia

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  32. Belíssimo texto Hayton!!
    Bicca e Cristina, sou fã de carteirinha de vcs, admiro a coragem da aventura, o companheirismo e o amor!!!
    Maya deve amar 🐾🐾❤️
    Mônica Padilha

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  33. Eita emoção grande ler essa crônica tão linda, vinda da mente de alguém que vivia de metas, números, cifras…
    Admiro esse Hayton! Se superou. E soube captar direitinho o que é a “nova” vida desses dois queridos, desses dois amigos aventureiros, desses amados que ressignificaram a vida de um jeito tão incrível!
    Os mais nordestinos dos gaúchos, com quem tive a honra de trabalhar e conviver de pertinho… ai que privilégio, que sorte a minha, Bicca & Cris. Que sorte da gente! ❤️

    Que Deus os abençoe pelas estradas, pelos caminhos, que as fantásticas fotos tiradas fiquem mais do que impressas ou circulando nas redes. Fiquem gravadas eternamente nas mentes e nos corações lindos de vocês! Beijos, beijos, meus amores!!! ❤️❤️❤️❤️❤️

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  34. Seus textos têm a graça de ótimas viagens, caro Hayton. Muito grato ter acesso a eles!

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  35. Mais uma crônica gostosa de ler, que me levou à minha adolescência de plantão durante o período do almoço, ocasião em que meu pai colocava 3 ou 4 LP para tocar um a um na radiola deixando um dos filhos para virar os discos hahaha. Ele tinha todos os do Luiz Gonzaga!, entre centenas de outros grande artistas. Parabéns ao autor pela homenagem aos artistas. E que bela homenagem.

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  36. Que beleza de crônica e, mais ainda, poder viajar um pouco com a Cristina e o Bicca! Boas lembranças! Saudades! Show!

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  37. Que beleza!!! Como já escreveu alguém anteriormente, dá até vontade de pegar o carro e sair por aí. "On the road" , a lá Jack Kerouac.

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  38. Quando, na estrada da vida, tropeçamos e caímos, temos duas escolhas criar coragem para nos erguer, chacoalhar a poeira da roupa e seguir adiante com o coração aberto e uma alma infante, assim com bem fez seu amigo Bica. Aguardar que alguém, passando, nos dê a mão e nos ajude a levantar. Esperar nos outros, é mais cômodo e muito confortável, mas podemos nos decepcionar profundamente. O melhor é depender de nós mesmos, e ainda que difícil, contar com nossa própria força e acreditarmos em nós mesmos.

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  39. Viajar é uma das melhores coisas da vida. E fica melhor quanto melhores são as companhias.
    Suas crônicas despertam ótimas viagens, prezado Hayton.

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  40. Que maravilhoso blog!! Gratidão

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