Admiro as pessoas que simplificam hábitos e pertences ao estritamente necessário. Não sou minimalista, longe disso, mas já renunciei a muitos bens materiais e tento tocar a vida mais centrada em experiências com poucas coisas.
De novo, não sou minimalista. Ainda estoco comida e parte acaba no lixo, fora do prazo de validade. Isso é loucura num país onde um terço da população não faz três refeições por dia, mas já estou quase curado. Talvez o mal remonte aos períodos de escassez de meus ancestrais, mistura caboclo-indígena que sobrevive desde o Brasil colônia.
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Fotografia: Dedé Dwight |
A esta altura da travessia, deve-se levar no “barco” apenas a carga leve das paixões que vêm de dentro, como diria o menestrel de São Bento do Una. No meu caso, eis aqui o espírito das coisas:
Óculos – Primeira que pego ao acordar e última que largo na cabeceira antes de dormir. Ninguém consegue mantê-los limpos por mais de 10 minutos. Desconfio de que minha cabeça cresceu em torno deles e que a única utilidade prática das orelhas foi servir de suporte para a armação.
Escova dental – Quando criança me ensinaram que sua função seria evitar cáries e remover a placa bacteriana. Mais tarde, que não deveria ser usada com movimentos bruscos, sob pena de remover inclusive os heróicos cacos da resistência. Nunca aprendi direito como usá-la. Aliás, aprendi que só em filmes e novelas os casais se beijam de língua assim que acordam e não engulham.
Chinelo de dedo – Mais que um calçado despojado para se usar em casa ou na praia, vejo com prazer que vem ganhando adeptos, sobretudo nas regiões tropicais, porque arejam os pés, diminuindo o risco de chulé e frieiras. Ando pensando seriamente em usá-lo com paletó e gravata no próximo casamento que for convidado. Em último caso, um par de alpercatas cai bem em qualquer situação.
Bermuda de cordão – Até agora não se descobriu nada que se ajuste melhor às oscilações da bolsa (abdominal, bem entendido!), nesse vaivém doido dos ponteiros da balança, tentando administrar uma barriga com mais de meio século rendida ao pecado da gula.
Liquidificador – Se o café da manhã não incluir vitamina de abacate ou banana, alguma coisa está fora da ordem mundial, diria o poeta. O hábito vem do tempo em que minha mãe abastecia até a tampa o tanque de combustível dos filhos antes de irem à escola, alguns ainda lambendo os bigodes leitosos.
Tablet – Para mim, tão multifuncional quanto um computador. Já esqueci até que escrever um texto exigia papel, caneta, mesa, cadeira etc. Correm agora sério risco de extinção aparelhos de TV, boa parte dos álbuns de fotografias e livros que nunca reli.
Celular – Complementa o tablet como tapioca e queijo. No meio da rua, serve de bússola e de bloco de anotações. Mesmo que eu já não faça (ou receba) nem meia dúzia de ligações ou mensagens por dia.
Cortador de unhas – Passei a valorizá-lo ainda mais desde a partida de um amigo, vítima de AVC, que tentava aparar as unhas dos pés. Pena que o inventor da “coisa” não a concebeu mais funcional, pelo menos em relação aos pançudos. A dificuldade no manuseio está no comprimento e na curvatura, em relação ao cabo. Precisava ter acoplado um periscópio.
Ar-condicionado – Há quem duvide da existência do ser humano sobre a Terra antes do surgimento desse aparelho mágico, tanto mais quando recordo, vagamente, de que já usei terno completo, camisa de mangas compridas, gravata, cueca, meias e sapatos. Inclusive no trânsito engarrafado, ao meio-dia, nas ensolaradas Maceió, Recife e Salvador.
Rede de dormir – Desaparece com minhas dores lombares em questão de minutos. Com suas indiscutíveis propriedades anestésicas, substitui com vantagens não só anti-inflamatórios, como colchão, poltrona e cadeira de balanço, trazendo, no meu caso particular, relaxamento e completa indiferença ao que se passa nos arredores.
Tapa-olhos – Já se foi o tempo em que a escuridão me metia medo (o obscurantismo, sim, ainda me assusta). Dormir sem penumbra absoluta, agora, não é de todo repousante. Sou dos que acreditam que a diminuição da luminosidade induz a produção de melatonina, o hormônio do sono. Tanto que o cochilo à tarde pode ser reparador, mas é outra coisa quando se usa tapa-olhos e cpap (do inglês, significa pressão positiva contínua nas vias aéreas).
Cpap – É um troço utilizado no tratamento da apneia do sono para impedir a obstrução das vias respiratórias e evitar o ronco. Exalto-o (em nome inclusive de todos os usuários que conheço) pelo sacrossanto resgate do direito de voltar a sonhar durante o sono, de sobrevoar de novo a infância e até mesmo antigos ambientes de trabalho. Quem usa sabe que nem copo d’água gelada depois de uma colher de doce de leite dá tanto prazer. É viciante.
E você, já parou pra pensar na lista de coisas realmente indispensáveis no seu barco a essa altura da travessia? Só de pensar, acredite, já reduz bastante o peso.
Eu comecei a ler concordando em levarmos cada vez menos coisas e acabei descobrindo que eu preciso de um cpap, que nem sabia o que era. Saí no prejuízo. heheheheeheh Dedé Dwight
ResponderExcluirAssino embaixo na maioria dos itens citados na lista, com pequenas alterações. O Kindle, não constante na lista, tem-me sido um companheiro indispensável (não desprezando o livro físico), a exemplo dos óculos, para ser acionado ao amanhecer e antes de dormir.
ResponderExcluirPara mim o Cpap foi a grande novidade e já deixou-me curioso em conhecer.
Não é tão simples como adquirir um celular ou um tablet. Só após a indicação do especialista que trata apneia do sono. Antes, é feito um estudo, mais conhecido como exame de polissonografia (detecta fatores importantes para uma boa noite de sono, como a atividade cerebral, o desempenho cardíaco, o relaxamento muscular e a oxigenação do sangue). Aí, sim, será possível detectar o tipo de distúrbio do sono e o grau que atingiu, para então escolher o melhor tratamento, inclusive com o cpap.
ExcluirPara quem tem severa apneia de sono e ronca a uma quantidade de decibéis que não direi aqui, o CPAP é o anjo da guarda que me acompanha faz mais de 20 anos.
Excluir.
Como não se trata de bem que se descarta, carrego-o para onde vou. E, como tudo se moderniza, agora eles vêm cheios de tecnologia: regulagem de pressão, umidificador, rampa de gradação de pressão, medições diversas.
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O preço nem é tão acessível e são muitos os modelos. Os que são sócios da CASSI, provavelmente aqui são muitos, e desejam melhorar a qualidade do sono, vale a pena orientar-se junto àquela caixa de assistência na hora de adquirir o equipamento.
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Sonhar, pelo menos usando CPAP, é possível.
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Sem dúvida cada um tem sua lista e seguindo a lógica do texto é uma lista que caminha em sentido contrário daquela da música de Osvaldo Montenegro. Está presente em nossa vida e com a vida se confunde.
ResponderExcluirÉ isso... Talvez a coisa mais simples da vida seja aceitar com resignação aquilo que não se pode (ou não se quer) mudar.
ExcluirHá um ano, quando mudei de casa pra apartamento, me dei conta do quanto me faltava desapegar de muita coisa. No meu caso, preciso acrescentar à lista do Amigo Hayton um casaco, pra não sofrer com as oscilações de tempo de São Paulo; carregador de celular; tênis confortável; e um bom abridor de vinho.
ResponderExcluirE, pra quem corre risco até de esquecer de assinar o texto (rsrs), um bom aplicativo de lembretes no celular
ExcluirExcelentes constatações ! A realidade é que todos nós passamos pela vida reunindo experiências , emoções e também cacarecos . Mas a carga tende, nos dois campos, emocional e material, a ficar insuportável daí a necessidade de libertação , de se ver livre do peso que representam .
ResponderExcluirComo é bom descartar o supérfluo, aquilo que não agrega valor ou serventia. Muito bem escrita a lista dos indispensáveis também. Sugere simplicidade no viver. E que coisa melhor não poderia aparecer nas vidas. Acho, na minha opinião, que houve o esquecimento não deliberado de item importante: regar pessoas. Adubar com o adubo da atenção genuína. Tê-las sempre por perto, aninhando ou animando. Por certo é um item indispensável no "espírito das coisas".
ResponderExcluirRoberto Rodrigues
Estou morando no meu 37o. endereço (só em Brasília foram 5 endereços em 7 anos morando lá).
ResponderExcluirTantas mudanças me ensinaram a deixar para trás o que não será possível levar ou aquilo que não mais pretendo utilizar.
Costumo dizer para mim mesmo: o que já não me serve ou não quero pode servir ou fazer muito bem para alguém.
As coisas precisam circular.
E a vida fica mais leve.
Luiz Andreola
Pois é... Ao longo da vida reunimos "experiências, emoções e cacarecos"... Não é fácil desapegar-se deles... Especialmente fis cacarecos. Sempre surge o momento em que o cacareco parece ser útil. O difícil, nessa hora, é encontrá-lo...
ResponderExcluirDigo "dos" cacarecos...
ResponderExcluirMuito bom! Um dia eu atinjo essa PLENITUDE! Por enquanto vou juntando meus "cacarecos" na expectatica de que " posso vir a precisar"... sou acumuladora de natureza...
ResponderExcluirMuito bem lembrado e contado sobre as inutilidades que juntamos e as utilidades que não conseguimos mais viver sem elas. Senti falta do utilíssimo "porta comprimidos" ou porta pílulas. Estas, não as do dia seguinte, pois a essa altura da vida, sei não. Tenho inveja, boa, de quem não toma, pelo menos um cachete diário. Mas o bom é que a vida segue.
ResponderExcluirQueria me livrar dos remédios pra diabetes. Estão para mim como os óculos estão pra você. De resto, estou como o Andreola. Até as ferramentas de meu falecido pai deixei para um zelador de um condomínio que morei um dia. A expressão de felicidade dele compensou qualquer sensação de perda.
ResponderExcluirEmbora não se tenha identificado, sei que foi você, Edgarzinho, pelo destino dado às ferramentas de seu pai. Só uma alma boa como a sua faria o que fez.
ExcluirEm minha lista também não constam alguns remédios (anti-hipertensivo, fibrato, colírio etc.) porque não os considero imprescindíveis. Eles é que já se sentem legítimos donos de minha carcaça, queira eu ou não. São uns folgados. Parecem dizer: tente viver sem a gente pra ver o que lhe acontece…
Espero que papai tenha ficado feliz pois a intenção foi boa.
ExcluirBela reflexão sobre a arte do desapego, mantendo apenas aquilo que é essencial a cada fase da vida! Minha maior dificuldade ainda é jogar fora alguns “documentos” que acredito que possam ser úteis em algum momento da vida. Ou da morte! Kkkkk
ResponderExcluirParabéns por mais um texto.
ResponderExcluirMais uma deliciosa crônica, Hayton. Não há como deixar de trazer sua lista e comparar com a minha. Também me sinto mais leve, mais livre com o “seiri” que venho fazendo há alguns anos. Alguns itens, alguns costumes foram abandonados e outros incluídos, tais como a alimentação orgânica, os remédios naturais, os óleos essenciais. Também decidi que, após os cinquenta, não quero mais “relações que não me fazem bem”; dispenso com desembaraço e me sinto em paz. Para o barco ficar mais leve.
ResponderExcluirO mais incrível do desapego (doação) é que levitamos depois. Mas, reconheço, ainda há um caminho longo a percorrer!
ResponderExcluirBoa reflexão!
ResponderExcluirImpressionante nossa capacidade de acumulação: mesmo com tantas e frequentes mudanças, sempre me vejo com excesso de coisas.
Parte de sua lista seria dispensável para mim. Em compensação, me sentiria órfão sem meus canivetes.
Boa reflexão, bem-humorada! E os livros, Hayton, você os acumula ou põe para girar? Eu ainda não consegui desapegar dos meus. Mas estou me convencendo. Diniz.
ResponderExcluirComo todos que fizeram muitas mudanças vou me "libertando" a troca de casa. Impressionante o fato de que até hoje nada do que deixei, doei, descartei, fez falta. Mas, tenho meus apegos e minhas dependências. Óculos de sol é um deles. Nem precisa ter sol. Qualquer traço de luminosidade já me incomoda. E o fone de ouvido, pra assistir vídeos e filmes nas longas esperas dos aeroportos, consultórios e salões de beleza. Marina.
ResponderExcluirMuito bom o texto. Acerto de 100% no alvo.
ResponderExcluirAguilar.
Parabéns por mais um texto bem capturado e realizado. Sou meio cigano, por isso não palpito. Embora...
ResponderExcluirEu particularmente tenho pouquíssimas coisas para colocar na lista de carregar no
ResponderExcluirmeu barco. Não tenho nenhuma dificuldade em desapegar, pena que minha cara metade é exatamente o contrário.
Perpetua
Obrigada pela dica.
ResponderExcluirValeu a dica
ResponderExcluirQue reflexão mais divertida e profunda! Como sempre, você tem o maravilhoso dom de escrever o essencial - arrisco dizer que aí começou a carregar só o necessário - com um raro senso de humor.
ResponderExcluirMinha admiração. Parabéns.
Boas dicas, Hayton.
ResponderExcluirVou pensar nisso.
Abraço.
Como dizem, todo excesso é prejudicial. Sou amante de camisas, porque quando adolescente, as camisas bonitas que colocava, eram aquelas já usadas que meu irmão me dava. Agora dou eu quem doa camisas usadas, mas em bom estado de conservação. Porém não deixo de adquirir coisas que me agradam enchem meus olhos. Como já é fato constarado
ResponderExcluirAgora, a maioria dos ítens que acumulo é digital. São arquivos no meu disco C e nos HD externos.
ResponderExcluirSeja nos ‘documentos’ ou no Google Drive, há tantos arquivos, que levaria anos pra descartar os inúteis.
Por outro lado tenho medo de descartar tudo, porque há coisas importantíssimas! Seja por motivos práticos ou históricos! Tenho medo até de visualizá-los, por tão numerosos!
Até cópia dos arquivos do celular, estão fazendo parte dos arquivos do notebook!
Saudade de quando o que mais tinha, eram livros!
A palavra “coisa” é um bombril do idioma. Tem mil e uma utilidades. É aquele tipo de termo muleta ao qual a gente recorre sempre que nos faltam palavras para exprimir uma ideia. Coisas do português.
ResponderExcluirA natureza das coisas: gramaticalmente, “coisa” pode ser substantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma “coisificar”. E no Nordeste há “coisar”: “Ô, seu coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?”.
Também a boa reflexão nos faz entender as benesses dos novos tempos e sua acelerada tecnologia. Mas também nos fez dependentes do celular, ar-condicionado, direção hidráulica, trava elétrica, ilovepdf... e tantas e tantas coisas que antes vivíamos sem, mas hoje nem se que conseguimos imaginar como existíamos sem!
Por isso, o desapego aos bens materiais faz o ser humano livre e despojado, aponto de qualquer objeto de valor não mais é o importante ou causa de avareza e inveja...
Deixa a vida Me levar..........Como diz minha esposa, Silvanice, menos é mais......
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