quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Figurinhas repetidas

Carnaval de 2058. Apago minha 100ª velinha e ainda me sinto disposto, tesão de seminarista, trabalhando e mentindo como nunca. Apenas uma dorzinha aqui na coluna lombar, fruto das travessuras com minha velha (lá vou eu criar problema, gratuitamente!) parceira de chuva, suor e sucos.

 

Não sei onde estava com a cabeça, por volta de 2024, quando voltei a trabalhar na mesma empresa onde passei uma primeira etapa de mais de quatro décadas ouvindo dizer que seria privatizada porque muda de rumo a cada quatro anos, sujeita-se a ingerência política, a regras da concorrência pública, não remunera tão bem seus funcionários, essas coisas.

 

Talvez tenha sido a curiosidade de experimentar tecnologias transformadoras como a Inteligência Artificial, que se impôs em definitivo sobre as relações humanas e de mercado. O metaverso, aliás, após uma aposta pesada de grandes corporações como centro de inovação e consumo, já se tornou arcaico, obsoleto. A vida como ela acontece, sempre.

 

Imagem: Dedé Dwight

Sim, houve um salto quântico nos modelos de negócios e nos processos de trabalho, mas nem tanta mudança assim no mosaico de almas, apesar de os cérebros poderem se conectar diretamente à nuvem de dados para transferência da memória ou troca de informações. 

Como diria um antigo poeta carioca, falecido há mais de seis décadas (ele também estaria agora completando 100 anos), tenho visto o futuro repetir o passado, esse museu de grandes novidades.

 

Reencontrei uma figura com quem trabalhei na primeira etapa de minha vida profissional. Costumava protelar tarefas, pelo menos até a primeira reiteração, dizendo: “eu só tenho certeza de que algo que me pedem precisa mesmo ser feito quando me cobram”.

 

Há algumas semanas, quando reiterei uma encomenda pela terceira ou quarta vez, seu desabafo me fez refletir: “Calma aí! Tu sabes por que o Criador fez o mundo em sete dias? Porque não tinha registro de entrada e saída no serviço nem chefe perguntando se a merda já estava pronta!”   

 

Quem permanece muito tempo numa mesma organização — no dizer de uns, falta de ambição profissional, de coragem ou até comodismo —, consegue listar sem dificuldade algumas figuras especiais. Eu mesmo guardo um time daquelas que se repetiram nas duas etapas do jogo.

 

A “Cara-de-Pau”, por exemplo, finge não escutar uma boa ideia oferecida por um subordinado para, logo em seguida, com alguns ajustes cosméticos, lançá-la em público, como se fosse “pai (ou mãe) da criança”.


A “Chata" é aquela que vive interrompendo teleconferências! Só faz comentários fora de contexto, desperta alguma compaixão no começo mas, logo depois, rejeição geral e irrestrita.

 

A "Curiosa", antes do “bom-dia”, remexe papéis (sim, eles continuam, inclusive o cheiro de tinta que inexplicavelmente ninguém lembrou de engarrafar!) nas mesas alheias e bisbilhota telinhas e telonas, convicta de que fofoca vestida de informação pode ser arma poderosa nos bastidores corporativos.

 

Já a "Entediante" se acha a rolha da primeira garrafa de vinho servida na Santa Ceia, incompreendida e subestimada por todos. Vive repetindo piadas sem graça, rindo não se sabe de quê.

 

A "Garganta" é de doer! Fala sem parar de si própria (o que já é péssimo) e dos outros (inaceitável!). Quem se enfeitiça com o som da própria voz parece interessante por alguns segundos, mas insuportável minutos depois.

 

E a "Gaveta"? Empurra tudo com a barriga para a próxima semana, sem o menor senso de oportunidade. Nunca se dá conta de que uma máquina lenta é até admissível, mas uma alma, nunca!

 

A "Inflexível", então, não sabe perdoar aos outros (nem a si própria) pelos erros cometidos, nem é capaz de reconhecê-los. Dificilmente aceita um “não”, porque se diz determinada, perseverante etc. A teimosia em pessoa!


Quanto à “Medrosa”, avessa a qualquer novidade (só valoriza o que “sempre deu certo”), não quer saber de nada que mexa com sua insuportável rotina, mas se corrói de inveja quando alguém ousa e se dá bem.

 

Tem a "Petulante", que sempre busca encurtar a altura entre a ponta do nariz e a do queixo. Só enxerga os outros de cima para baixo, com um risinho de deboche para qualquer comentário mais simplório dos mortais.

 

E o que dizer da “Sincerona"?! Vê-se acima do bem e do mal por ser “franca demais”. E vomita tudo o que lhe vem à cabeça, despreocupada se atinge ou não aos outros com a acidez de suas convicções.

 

Há também a "Surda". Não escuta nem aqueles que concordam com seus argumentos. Nem percebe que, mesmo obrigada a filtrar bobagens, se não souber ouvir, perderá por completo a capacidade de lidar com os outros...

  

Acordei aos sobressaltos. A vida eterna continua sendo um sonho instigante, um conceito atraente, apesar do álbum de figurinhas repetidas. 


Pior, bem pior, deve ser não acordar nunca mais, não se queixar de nada, de ninguém. Nem saber das queixas feitas contra mim. 


Melhor levantar e beber meu café que o dia promete.  


31 comentários:

  1. Isso não é um sonho, é um pesadelo!
    Costumo ter desses, frequentemente! Seja no trabalho como médico ou como professor!
    Agora, na minha atividade privada, do jeitinho que gosto, nunca sonho(ou tenho pesadelos)!

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  2. Adorei, e como retratou bem nossos vários estilos que oscilam ao longo da carreira. Me vi em muitos, lógico que com a dose mínima recomendada ao bom senso. rsrs. Comecei lendo e pensei, o Hayton é doido, voltou a trabalhar no BB. E sua tão bela gerontolescência curtida com a esposa e família, enebriada pelos tons azuis do mar de Maceió. O mais belo azul do mar. Ufa, era ficção. E das boas.

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  3. Verdadeira comédia da vida corporativa, rs. Não lhe vejo de volta a ela aos 100, mas ainda nos deleitando com suas crônicas semanais, ah, isso sim! P.S.: "tesão de seminarista" foi impagável, kkk

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  4. Engraçado que você foi listando e eu fui mentalmente completando meu próprio álbum de figurinhas. Talvez viver seja criar novos álbuns para não se encher de repetidas. Dedé Dwight

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  5. Meu amigo, você teve um pesadelo, não tenho dúvidas ! Poderia ter sido pior . Você, ao que parece , voltou ao trabalho como Chefe! Imagine se fosse como nível básicos B-1!

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  6. Faltou a fofoqueira, que lista todas as vicissitudes alheias e diz que é segredo. Kkkkk. Nada como um despertar com essas crônicas maravilhosas que, ao ler, nos deica com um risinho no rosto só de lembrar todas essas figurinhas carimbadas.

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  7. Figuras repetidas
    Eu diria… isso não é um sonho. É uma viagem ao centro do pesadelo. Rsss
    Mas, que motiva transpor ao papel ideias para reflexão, e boas risadas a quem lê e entra no contexto.
    Como nunca trabalhei, indaguei-me: qual figurinha seria o chefe? Que figurinha eu me enquadraria? Se hoje já me sinto um porre, imagina daqui a 30, 40 anos, melhor sair dessa jornada, levantar, ir tomar o meu café.

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  8. Ademar Rafael Ferreira16 de agosto de 2023 às 07:21

    Certa vez iniciei uma décima com a seguinte quadra: "O mundo da ficção/Por mais que ele transite/No limite do limite/Do limite da razão..." Entendo que serve para esta "viagem" de hoje. Um texto para degustado com um caldo de sururu "quente pegando fogo" e uma lapada de pinga.

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  9. Aprimorando cada vez mais a escrita com doses bacanas e pertinentes de uma criatividade com ironia pouco vistas nos textos que frequentemente leio … um sopro de inovação e motivação a leitura ! Gostei muito … lembrei muito de vc na Flipelô , feira literária que aconteceu último fim de semana … Veio um garoto de São Paulo que tem página no insta e fala sobre livros … muito bom ! Uma dica : já pensou em migrar pro insta ? O alcance é fabuloso !

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  10. Fiquei esperando pra ver qual perfil me veria. Acho que a metida. Me meto em tudo e só me dou mal. Dayse. Kkkkkk

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  11. Certa feita, como presidente da Cassi, visitei uma gerência estadual. Perguntei aos 30 funcionários presentes qual era o maior problema que eles enfrentavam. Um sincerão falou: “aqui tem muito nó-cego”. Perguntei o que era isso. Ele respondeu que era gente preguiçosa, invejosa. Instiguei os outros a citarem mais nós-cegos da firma: apontaram autoritários, traíras, mentirosos, incompententes, etc. Quando todos estavam empolgados, provoquei: “levanta a mão quem se acha um nó-cego”. Como ninguém levantou, completei: “como eu suspeitava, o nó-cego faltou hoje. Aqui só tem gente do bem”.

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  12. Você fez um retrato falado perfeito dos habitantes das corporações. O problema está no "serumaninho" que habita em nós. Muito bom! Marina.

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  13. Muito bom, Hayton.
    Gostei de lembrar dessas figuras que perambulam em todas as empresas - não só naquela - mas que trazem lembranças desses tempos idos e por nós profundamente vividos.
    Talvez em 2050 a gente encontre nos corredores alguns robôs também, né?
    Quem sabe?

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  14. Será como é que nas crônicas dessas personas são apelidados os 60+? Fico imaginando!

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  15. Reviver estes personagens é ter em mente o dia a dia vividos, sonhar que o futuro virá diferente. A vida Corporativa com suas anuances, que as vezes temos até saudade.

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  16. Essa aí me arrebatou tanto que tive que registrar aqui este sentimento, mesmo estando cumprindo tarefas "exaustivas", - mas gostosamente assumidas, decretadas por filhos e netos.
    Mais tarde vou postar algo mais, ah, vou!!!
    ,

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  17. Mais uma ótica e contundente crônica. Parabéns!

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  18. Agostinho Torres da Rocha Filho16 de agosto de 2023 às 16:29

    Quero acreditar que, para quem trabalhou dois terços de sua trajetória terrena no mesmo ambiente corporativo, sonhar, apenas esporadicamente, em plena atividade laboral é absolutamente admissível. Pesadelo mesmo é relembrar as figurinhas carimbadas citadas no texto. Ainda assim, deve bater uma saudade daquelas. Parabéns! Belo texto!

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  19. Que seja sonho ou pesadelo, lembrar de fatos e pessoas do cotidiano vivido por longas décadas numa mesma empresa, faz com que voltemos no tempo... E, quanto mais revirarmos a memória, mais episódios vêm à tona, nesse mar de recordações...

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  20. Excelente texto. Roteiro perfeito para um filme que se chamaria “De Volta Para o Futuro”.

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  21. A cada “figura”, Hayton me fez lembrar de uma lista interminável de nomes.
    Ainda bem que entre tantas “figuras especias”, sempre havia outras tantas: As “generosas”, as “incansáveis”, as “pau pra toda obra”, as “geniais”, as “brilhantes”, as “pacificadoras”, as “carregadoras de piano”, as “bem humoradas”, as “companheiras”, as “resolvedoras”, as “rápidas”, as “caprichosas” e por aí afora.

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  22. : “eu só tenho certeza de que algo que me pedem precisa mesmo ser feito quando me cobram”. Sobre esta criatura eu sempre dizia que "gente com iniciativa é acabativa não se encontra em farmácia. "

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  23. AdilsonCordeiroDidi: Você é um poeta e se encaixa na poesia abaixo....rsrsrs (pode me xingar).
    p O e T a
    Você Poeta, renova a nova
    nos versos e prosa, cantando dor e amor!

    Poeta é um carinhoso; vigia, é guia dadivoso,
    ao solo dos amantes, com seus gritos incessantes!

    É um ser sem paz, é coisa de outro mundo, capaz;
    noite vira dia, penumbro, muda o rio, o mar, o cais!

    Poeta ainda é gozador: folha seca vira flor,
    profissional, amador e dólar fica sem valor!

    Poeta, um infeliz, é inquieto na raiz
    quer mudar o matiz, ´inda pergunta, o que eu fiz?

    Poetinha, safado, fale sério, pegue o arado
    vá trabalhar ligeiro, oriundo, deixa de ser vagabundo!

    Este poeta está só caçoando, eu mesmo, vivo cantando
    na chuva, no vento e no céu; faço banquete de pastel!

    Poeta, cachorrinho, de mansinho, se você um dia morrer
    o mundo vai desacontecer, porque ele não é mundo sem você!
    AdilsonCordeiroDidi

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  24. Concordo que as coisas necessárias, não as imediatas, aquelas que se protelam, se forem cobradas é porque tem alguma importância. Quanto às figuras, você foi gentil em não mencionar algumas. Sabemos que sofremos com elas.

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  25. Chegar aos 100 anos, lúcido, com saúde, lembrando de cada figurinha dessas, até que não seria um pesadelo, mas um sonho mais do que saudável. Conviver com todas elas, ao mesmo tempo novamente, aí já são outros quinhentos (rsrsrs)..Mas valeu à pena a aventura ficcional.

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  26. Memória de "elefante", é muito pouco pra definir a sua.
    Não bastasse isso, ainda tem essa capacidade de descrever com proficiência o que tem guardado a "n" chaves nos escaninhos dela, fazendo ainda com tanta leveza, quase uma poesia em prosa.
    É tão acertada minha definição, que o Adilson Cordeiro parece ter também enxergado assim e postou acima uma bela poesia.
    Não bastasse o sucesso que teve como administrador, você ainda teve capacidade de guardar os diversos tipos com quem trabalhou, para agora descrevê-los com tanta leveza. E melhor, para não ferir suscetibilidades cria uma fantasia digna de figurar em uma antologia que se construa sobre o tema.
    O nosso empregador - também eu estive lá por várias décadas - "hospedou", com certeza, vários tipos dos aí descritos, alguns verdadeiros personagens, e eu não me excluo de ter representado mais de um dos elencados.
    Falta adjetivos pra qualificar bem sua capacidade, suas crônicas nos faz relaxar e relevar as rotinas mais incômodas que as vezes enfrentamos.
    Continue firme, bola pra frente...

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  27. Interessante esse sonho porque me fez refletir sobre muitas questões do mundo corporativo. É incrível como mergulhamos durante anos nesse mundo artificial e não nos damos conta de que o mundo real é muito além de metas, resultados, encarreiramento, competições e concorrências. Há vida alem da empresa, do emprego.
    A palavra produtividade nos aprisiona e compromete em muito as relações humanas. Trocamos tempo por dinheiro, nos esquecemos que pessoas do trabalho podem ser outras pessoas na vida real.
    Confundimos, nos iludimos, fantasiamos relações com base no relacionamento profissional.
    Mas voltemos às figuras que circulam nesse mundo corporativo... Eu percebi que somos muitas vezes ambíguos em nossos papéis quando estamos dentro ou fora do trabalho. Percebi isso após a aposentadoria. Pessoas que eu adorava trabalhar, nem sempre se tornaram minhas amigas no mundo real. Eram boas de produzir, mas no campo das confidências e cumplicidade, a produção era abaixo do desempenho esperado. Já outras pessoas que no trabalho deixavam muito a desejar em produtividade, no campo da amizade superaram em muito as minhas expectativas.
    Imagino que a grande maioria de nós tenha convivido com muitas dessas pessoas que você descreveu tão bem, mas aí eu penso: será que fora do trabalho essas figuras continuavam assim? Ou será que essas caricaturas não eram máscaras para sobreviver e suportar a artificialidade do mundo corporativo?
    Talvez o mundo corporativo esteja certo em investir em inteligência artificial porque se blindada dessa ambiguidade que, muitas vezes, nos força a sermos quem não somos.
    Graças a Deus que me aposentei com 53 anos e tive tempo com vida e saúde para descobrir que aqui fora há um sol que brilha e aquece de forma bem mais agradável do que a parte de dentro das janelas envidraçadas e climatizadas.
    Eu não aguentaria mais meio século de artificialidade. A minha inteligência é muito natural para tanto.

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  28. Uma das melhores crônicas do autor. A relação de adjetivos foi muito real kkkk... Nota 1000!

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