PECADO QUASE FATAL
Hayton Rocha
De volta a Brasília, passarei alguns dias revendo amigos e amigas, lugares memoráveis — sobretudo para comer. E se existe um alimento capaz de dar ideia de céu, de plenitude dos gozos, atende pelo singelo nome de pastel.
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| Ilustração: Uilson Morais (UMOR) |
Mas nem tudo são azeitonas — ou ervilhas — na minha relação com a iguaria. Talvez eu devesse, por prudência, retirá-la do altar dos meus desejos. Não consigo. E se você quer saber o motivo, conto mais uma vez, confirmando que coração e estômago têm razões que desafiam a própria razão.
Era um sábado qualquer de 2008. Almocei, cochilei e, ao acordar, saí de casa de fininho para cometer um pecado quase fatal. Fui ao encontro de um dos maiores prazeres que o ser humano, a partir de certa idade — se é que você me entende —, ainda pode experimentar sem remorso: pastel de carne moída com azeitonas.
Na primeira mordida eu já deveria ter desconfiado do sabor. Mas a gula é cega e surda. E, enquanto eu mastigava, em silêncio um atentado contra a minha flora intestinal se armava.
Passei o resto do fim de semana xingando uma certa padaria da Asa Norte. Vieram cólicas, enjoos, perda de apetite, o que, no meu caso, sempre configura sinal de alerta. Não houve diarreia nem vômitos. Ainda havia a esperança de que o miserável agente causador sumisse.
Mas na manhã de segunda chegaram os calafrios. E com eles, o pânico. Febre é febre. Apavorado, chamei um táxi às pressas e fui bater na emergência de um dos maiores hospitais de Brasília.
O antiespasmódico no soro, para aliviar as dores, desencadeou um quadro que me fez refletir sobre o quão breve é esse sopro a que chamamos de vida. Ela não manda aviso-prévio, não se desculpa e ainda nos pega de surpresa no meio de um pastel.
O remédio praticamente zerou meu peristaltismo intestinal — movimentos que empurram a comida pelo corpo — e, em minutos, instalou-se o que os médicos chamam de GECA: Gastroenterocolite Aguda. Aprendi a sigla ali, entre uma pontada e outra.
Mesmo sonolento, ouvi o cochicho entre dois deles:
— O que achou da GECA? Será Salmonella?
— Não estou ouvindo sinais de luta…
Ainda quis perguntar, no fiapo de humor que me restava, se havia algum conflito ideológico entre meus órgãos internos. Ou se GECA era nome artístico de alguma dupla caipira. Nada disso. Era apenas o dialeto deles assumindo que, felizmente, não havia “nó nas tripas”.
Veio a bateria de exames: endoscopia, tomografia, ultrassom. A barriga distendia, a pele amarelava, mãos e pés gelavam.
— Vamos transferir o senhor para a UTI. Lá é melhor do que aqui no ambulatório — disse alguém, com a naturalidade de quem sugere trocar de mesa no restaurante.
A escuridão e o frio dos corredores até a UTI encheu minha cabeça de interrogações. A lucidez insistia em lembrar que a vida — esse “jogo de culpa que faz tanto mal”, como dizia Gonzaguinha — talvez estivesse perto do fim.
Nunca havia deitado numa maca nem para sair de um campo de futebol. E, de repente, aquela estreia podia ser a despedida. O corpo admitia que sim. A alma, inconformada, gritava que não.
Percebi que amigos e familiares chegavam para ver com os próprios olhos o que um pastel era capaz de fazer a um seminovo no esplendor dos cinquenta anos.
Entre gemidos e lamentos, me instalaram monitores. Até que surgiu um moleque de vinte e poucos anos, barba por fazer, jaleco amassado. Sem cerimônia, me enfiou um cateter goela abaixo, num avanço tão decidido que achei que sairia do outro lado.
Santo remédio.
Um jorro de vômito escuro inundou a cama. Em minutos, veio o alívio. Fui ao banheiro e tomei um banho restaurador, desses que nos fazem sair recém-nascidos, só que com mais cicatrizes.
Enquanto isso, um porta-voz do hospital foi até a sala de espera e, talvez para desanuviar o ambiente, anunciou:
— O pior aconteceu… Ele vai sobreviver!
Passei a noite inteira com uma sonda nasogástrica no subsolo das vísceras, sugando tudo o que o agente causador havia produzido para tentar me impedir de assistir ao crescimento dos meus netos gêmeos, hoje com quase dezoito anos.
Recebi alta setenta e duas horas depois. Caminhava em frente a uma lanchonete quando a balconista, talvez comovida com minha expressão de fome — mas ignorando meus antecedentes intestinais — tentou ser gentil:
— Vai um pastel de carne moída com azeitona aí, moço?
Recusei com dor no coração. Pela forma como me olhou, minha mulher me internaria — noutro tipo de hospital, bem verdade — se soubesse que ainda tive dúvida. Confesso que cogitei, por segundos, uma mordidinha. Só na casca crocante.
Há dezessete anos ninguém me tira da cabeça que foi o enfeite de salsa mal lavada que arruinou aquele fim de semana. Pastel é do bem. Não faria uma maldade dessas com uma antiga paixão.
É HOJE!














