GAIATOS, GATOS E GAIOLAS
Hayton RochaQuem nunca acalentou a fantasia oculta de jogar tudo pro alto? Abandonar emprego, família, status e até o cachorro, para embarcar no primeiro navio sem rumo nem passagem de volta. Nessas horas, dois dedos de lucidez sopram ao pé do ouvido: “deixe de estupidez!”. E assim seguimos, firmes e domesticados, olhando o horizonte do convés da rotina, como marinheiros de terra firme que nunca molharam os pés.
Semana passada, com a TV revolvendo lembranças com cheiro de mofo, dei de cara com um documentário sobre os Paralamas do Sucesso. Logo apareceu o velho “Melô do Marinheiro”, hit inocente dos anos 80 que transformou a ideia de conhecer o mundo em piada pronta.
O moleque sonhava desbravar os sete mares e acabou descobrindo que sua função era descascar batatas e esfregar o chão. A cada “Entrei de gaiato no navio (oh!)”, não era difícil perceber o tamanho da cilada. Aventuras? Só no sabão e na vassoura. O sonho dourado virou faxina, como tantos projetos de fuga que prometem liberdade e entregam rotina embrulhada em esforço braçal.
Que atalho curioso entre o sonho e o rodo! É como se a vida dissesse: “Quer voar? Comece esfregando chão!”. E nós, obedientes, seguimos de segunda a sexta, com o fio de esperança de que a liberdade possa estar escondida num feriado prolongado, numa viagem adiada ou até no sábado que nunca chega cedo o bastante.
Foi nesse clima de marinheiro frustrado que, horas depois, li a notícia de que um gato chinês, sem pedir licença, entrou num contêiner e atravessou o mundo. O felino, batizado de Xiao Mao — “gatinho” em mandarim —, saiu da China e aportou em Minnesota após quase 13 mil quilômetros e três semanas trancado entre ferrugem e pó. Parecia Garfield de ressaca — mas vivo o bastante para viralizar nas redes sociais.
Segundo a ONG Pet Haven, ninguém entende como resistiu sem água e comida. Talvez lambendo gotículas de condensação, caçando insetos clandestinos. Uma epopeia darwinista em miniatura. Hoje Xiao Mao participa de um programa de socialização chamado Wallflowers e, para completar o enredo hollywoodiano, se apaixonou por uma oncinha pintada, resgatada numa aldeia indígena, que deixou em pedaços o seu coração, como diria Alceu Valença.
Enquanto lia a história, pensei: nós, humanos, calculamos mil vezes antes de dar um passo fora da linha. Já Xiao Mao, analfabeto de nove vidas, pulou num contêiner errado e acabou conhecendo o outro lado do globo, sem cartão de vacina nem passaporte. Nós desistimos do navio por medo de descascar batatas. Ele entrou sem querer e virou manchete planetária.
Não desejo a ninguém a dieta de ferrugem e insetos que o felino encarou. Mas convenhamos: há algo de invejável nesse acaso que arregaça fronteiras. Quantas vezes deixamos de viver um Singapura ou Xangai particular por temer o balde e a vassoura do convés? Quantos horizontes deixamos para depois, como se o mundo fosse uma vitrine que só podemos olhar de longe? Talvez sejamos nós, não Xiao Mao, os verdadeiros enjaulados. Ele, pelo menos, saiu da gaiola e ganhou uma cara-metade pra chamar de sua.
O curioso é que tanto o marinheiro dos Paralamas quanto o gato chinês embarcaram por engano. Um achou que namoraria sereias e acabou esfregando sujeira. O outro entrou para cochilar e despertou em outro continente. Ambos ilustram, cada um à sua maneira, o abismo entre expectativa e realidade. Só que, enquanto o humano reclama do chão molhado, o bichano sobreviveu ao Pacífico.
Somos menos corajosos que um gato de Guangzhou. Ficamos no porto, cultivando fantasias de liberdade enquanto contamos moedas para a próxima viagem, o próximo celular, o próximo Natal. E, quando arriscamos, é sempre com manual de instruções na mão, para que nada saia do script. Vivemos como se tivéssemos medo de entrar “de gaiato no navio” e, no fundo, é isso que nos condena a nunca sair do cais.
A vida, ironicamente, adora premiar os distraídos. Xiao Mao não sabia para onde ia e justamente por isso chegou tão longe. Nós sabemos demais e, por isso, raramente saímos do lugar.
Seria esse o recado enviesado do destino sobre gaiatos, gatos e gaiolas? Alguns, por descuido ou coragem, rompem as grades e descobrem o mundo. O resto lambe as barras ou afia as garras na própria prisão. Como se a vida fosse apenas batatas por descascar.










