JOÃO E MARIA NO CÓDIGO PENAL
Hayton Rocha
Ontem, revi algumas fotos nas redes sociais onde um grande escritor levou sua emoção às últimas consequências ao conhecer Liam, seu primeiro neto. Imagino o tanto de histórias impagáveis que ele já costura enquanto embala o mais novo fio de esperança para o Planeta.
As imagens me remeteram a outro amigo avô, a quem chamo de Chiquinho Caniggia, que um dia resolveu contar à neta pré-adolescente uma nova versão da história que marcou a infância dele no final dos anos 1960, quando ainda havia fartura de cabelos.
Grave erro, segundo ele. A menina terminou a história olhando-o com aquele misto de desconfiança e pena que a gente costuma reservar aos que falam sozinhos na fila da farmácia ou do supermercado.
— Vô, isso aconteceu mesmo? — perguntou, com a sobrancelha arqueada e o celular já na mão, pronta pra mandar mensagem pra avó, alertando para o possível desarranjo mental do idoso.
Empolgado, Chiquinho contou que havia, antigamente, um pescador viúvo, muito pobre, morando perto de um lago — daqueles que hoje seriam loteados por empreendimentos de alto padrão com nomes estrangeiros, tipo Golden Fish Lake Residence.
Esse pescador tinha dois filhos, João e Maria, e uma nova esposa que podia ser tudo, menos batizada na fé cristã.
— Faltou comida — explicou ele — e a mulher, pragmática como só as vilãs dos contos são, sugeriu: “Vamos abandonar as crianças na floresta. Não temos condições de criá-las.”
— E o pai concordou? — indagou a neta, com o olhar de quem já ensaia argumentos pro futuro concurso do Ministério Público.
Chiquinho disse que o pai hesitou, mas a madrasta — que era bruxa — ameaçou transformar os filhos num casal de sapos. João, mais esperto que muito menino com tutorial no YouTube, ouviu tudo e bolou um plano: encheu os bolsos de pedrinhas para marcar o caminho de volta.
— E ninguém pensou em chamar o Conselho Tutelar? — interrompeu a neta, indignada.
Mas Chiquinho seguiu adiante, como todo contador de histórias teimoso. O casal deixou os irmãos na floresta com um pão na mão e uma promessa de retorno tão frágil quanto conexão de internet na mata. João espalhou as pedrinhas e os dois conseguiram voltar pra casa ilesos.
Na segunda tentativa, a madrasta trancou a porta para impedir o menino de catar mais pedras. João improvisou com migalhas de pão — que, como era de se esperar, foram devoradas pelos passarinhos. Resultado: perdidos novamente.
— Isso é abandono de incapaz com agravante! — protestou a neta, tão revoltada quanto no dia em que descobriu que Papai Noel terceirizava os presentes.
Depois de dias vagando, João e Maria encontraram uma casa feita de doces. Telhado de chocolate, janelas de cocada, paredes de biscoito recheado. Um verdadeiro paraíso glicêmico. Começaram a devorar tudo até que uma voz saiu de dentro:
— Quem está roendo minha casa?
A dona era uma velha rabugenta com alma de bicho de sete cabeças. Prendeu João num quartinho para engordá-lo e assá-lo depois num grande forno a lenha. Maria foi forçada a virar empregada doméstica, sem carteira assinada.
— Vô, isso é cárcere privado com exploração de trabalho infantil! — gritou a neta, já abrindo o aplicativo pra gravar um vídeo-denúncia com trilha sonora dramática.
Maria enganava a bruxa — quase cega de catarata — dizendo que o irmão ainda estava magro, até que a velha perdeu a paciência e mandou Maria testar o forno com a cabeça.
— E aí?
— Maria, num contragolpe certeiro, empurrou a bruxa pra dentro e trancou a portinhola do forno.
— E ninguém ouviu os gritos? Nem vizinho?
— Era floresta, filha. Floresta não tem testemunha.
Depois disso, Maria libertou João. Acharam uma maleta da bruxa abarrotada de dólares — “provavelmente lucros ilícitos jamais declarados à Receita”, observou a neta — e voltaram pra casa com os bolsos cheios.
Encontraram o pai sozinho, choroso, arrependido. A madrasta? Sumira do mapa. Segundo boatos, foi vista pela última vez nadando perto de uma pedra escorregadia.
— Então é isso, vô? Duas crianças cometem latrocínio, apropriação indébita e ocultação de cadáver e terminam felizes para sempre?
— É o que o livro diz... — admitiu Chiquinho.
A neta suspirou e chamou a avó, que zapeava nas redes sociais na mesma sala:
— Vó, leva o vô ao médico. Acho que ele tá misturando remédio de próstata com fábula dos irmãos Grimm.
Desde então, Chiquinho pensa duas vezes antes de abrir a boca. Os contos da sua infância parecem cada vez mais impróprios — pelo menos, para menores com senso crítico, acesso à internet e noções básicas de direito penal.
Talvez os contos de fadas estejam apenas virando boletins de ocorrência.
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