SELVA CANDANGA
Hayton Rocha
De volta a Brasília, não me espanta a notícia de que uma onça-pintada resolveu visitar um condomínio do Jardim Botânico. O flagrante ocorreu por volta das sete da noite de sábado, 13 de setembro, quando uma senhora, 46 anos, descansava na varanda depois de uma tarde abafada e seca. O silêncio foi rompido pelo estalar pesado de folhas. Pensou ser vizinho, acendeu a lanterna e deu de cara com o felino. O coração galopou, mas a onça seguiu elegante, indiferente, como quem apenas confere se ainda resta espaço para caçar no seu habitat que o bicho-homem insiste em queimar a cada setembro.
No dia seguinte, lá estavam Batalhão Ambiental, Ibama e Ibram, marchando em fila como formigas alarmadas. Carros oficiais, coletes e rádios chiando. Prometia-se capturar a “invasora”, que só buscava apurar o que sobrou depois que incêndios expulsaram as presas da mata. Pouco adiantou o veterinário no telejornal Bom Dia DF lembrar que queimadas empurram os bichos para além de seus territórios. Diante do calor e da fumaça, qualquer criatura — inclusive nós — amplia o raio de caça em busca de proteína para seguir respirando.
Não me surpreendo. Brasília sempre foi um zoológico a céu aberto. Algumas espécies já fazem parte do cotidiano a ponto de ninguém mais reparar: emas atravessando o Eixo Monumental em fila de pedestres, capivaras ruminando nas margens do Lago Paranoá como se fossem vacas, e, sobretudo, certos animais de paletó e gravata — esses, sim, predadores de verdade, com instinto indomável.
As raposas ocupam o primeiro plano. Farejam verbas secretas dos orçamentos públicos como se fossem frangos assados esquecidos no plenário. Astutas e felpudas, multiplicam-se como lebres em ritmo acelerado, mordendo pelas beiradas até imobilizar o Congresso. Têm o talento de parecer discretas, mas deixam sempre o rastro de penas espalhadas pelo chão.
Outros, coitados, estão à beira da extinção. O tucano, de bico altissonante e cores chamativas, virou peça de museu. Restam exemplares isolados em estufas, sustentados por uma classe média que se evapora com a divergência ideológica exacerbada. Os sobreviventes batem asas sem rumo, mais próximos da arrogância do que do tucanismo intelectual de três décadas atrás. É triste ver um pássaro que já simbolizou falas iluminadas agora grasnar em sintonia com antigos discursos.
O leão, por sua vez, adaptou-se como se fosse nativo. Originário da África e da Ásia, encontrou aqui território fértil: crava garras e presas no couro de cada assalariado, abocanhando quase 1/3 dos salários em porções mensais e sucessivas. É o Imposto de Renda travestido de rei da selva, que ruge cada vez mais alto. A diferença é que, na savana, ele caça para sobreviver; por aqui, caça inclusive para custear privilégios classistas.
Já algumas antas, lentas e preguiçosas, instalaram-se por estas bandas desde os anos dourados. São vistas em antessalas de gabinetes, pastando memorandos e portarias com a serenidade de quem não tem predador natural. Se um dia alguém tentar reintroduzir vida inteligente nesse ecossistema, deverá ser recebido com o mesmo espanto de quem solta um macaco com um revólver carregado em meio a passeata ou procissão.
O jumento é outra tragédia. O Brasil anda exportando seu couro para virar ejiao, gelatina chinesa de uso milenar — embora sem eficácia comprovada — para tratar de anemia, impotência, insônia e vertigem. Resultado: o rebanho caiu mais de 60% em menos de uma década. Mas, em Brasília, os que restam são bípedes — esses, sim, ameaçam a população. Caminham em bandos, carregando balaios de promessas que nunca chegam ao destino.
E a lista não para: aranhas burocráticas tecem processos intermináveis, hienas sardônicas se banqueteiam do infortúnio alheio, répteis de olhar frio arrastam-se pelos corredores de estatais. À noite, piranhas maquiadas rondam os bares da Asa Sul; de dia, papagaios repetem frases prontas nas tribunas. Pavões desfilam diante das câmeras, em busca de 15 minutos de fama, enquanto morcegos sugam lentamente recursos de escolas e hospitais.
Por isso, não me espanta a notícia da onça-pintada que apareceu no Jardim Botânico. Ela apenas cumpre o destino dos bichos: sobreviver. O que me inquieta são os animais vestidos de alfaiataria e sapatos engraxados, prontos para posar em palanques e plenários enquanto devoram, com fome de anteontem, o futuro de quem os sustenta. Na selva candanga, o rugido mais perigoso não vem da mata, mas ecoa dos corredores, em forma de cochicho ou discurso ensaiado.







