Tudo começou em maio de 1974, aos 16 anos de idade, como menor aprendiz para serviços gerais do Banco do Brasil em Maceió(AL). O que mais queria naquele instante era ser bancário como fora o pai e poder ir ao cinema, tomar sorvete com a namorada, comprar camisas, cuecas, Placar, O Pasquim e cigarros Hollywood, sem pedir dinheiro à mãe.

Gostava de vestir o uniforme azul com a logomarca da empresa no peito e caminhar pelas ruas do bairro onde morava até o ponto do ônibus que o levaria ao centro da cidade. No trabalho, fazia de tudo um pouco, com curiosidade e prazer, desde arquivar títulos e fichas gráficas, organizar filas, fotocopiar contratos, até distribuir documentos entre os diversos setores instalados nos treze andares do prédio da Rua Senador Mendonça nº 120. E ainda lhe pagariam 327,00 cruzeiros todo dia 20, quase um salário mínimo (Cr$ 376,80, à época). Para Shakespeare, "...são os pequenos acontecimentos diários que tornam a vida espetacular".
Em um final de tarde, sem nenhuma pendência sobre a mesa, assoviava sossegado Wave, de Tom Jobim, quando recebeu de um colega mais velho sua primeira lição corporativa: “Meu filho... quem assovia no trabalho é cortador de cana. Se você não tiver nada pra fazer, pegue algumas folhas de papel e escreva alguma coisa, beba um cafezinho, vá ao banheiro, mas assoviar na hora do trabalho, nunca!”.
Ainda no primeiro mês recebeu sua segunda lição quando um certo administrador lhe determinou: “vá ali na farmácia e compre esses remédios; depois, passe no Bar do Chopp e me traga duas carteiras de Carlton”. Inocente, respondeu da forma como costumava falar com seus colegas de escola: “ã-hã”. O chefão, que naquele momento recebia algumas pessoas a quem talvez precisasse demonstrar poder e força sobre os reles mortais, retrucou soberano: “ã-hã, não... responda: sim, senhor!”
A terceira lição veio quando ouviu seu chefe elogiando um velho colega investigador de cadastro e perito de balanços que, na semana anterior, fora ao cinema e, ao tentar estacionar, por descuido bateu seu carro noutro, parado. Procurou então pelo dono na área e, não o encontrando, deixou um bilhete preso ao limpador de pára-brisas: “Perdão, amigo, por bater em seu carro. Meu nome é... e aguardo seu contato (telefone...) para providenciar o reparo”.
Como ninguém o procurou, na semana seguinte dirigiu-se ao Detran (anotara a placa) e conseguiu identificar o dono que, ainda chateado com o ocorrido, foi direto ao ponto: “O sr. acha que eu seria idiota para acreditar naquele bilhete?” O velho colega, a ética em pessoa, sacou seu talão de cheques e ponderou: “Perdão de novo, meu amigo, mas se não pagar pelo prejuízo que lhe causei, não vou sossegar. Quanto lhe custou o conserto da porta?"
Na véspera do Natal de 1975, ao retornar para casa após seu último dia de trabalho como menor aprendiz, recapitulava sentado à janela do ônibus as múltiplas lições que havia recebido durante um ano e dez meses, desde a dica recebida sobre o assovio inocente de "...vou te contar/os olhos já não podem ver/coisas que só o coração pode entender..."
Tinha agora olhos e ouvidos para ver e escutar apenas o que melhor lhe convinha, sem nunca demonstrar tudo o que a cabeça sabia ou o coração sentia. Era finalmente o que chamam de adulto, essa mistura de sonhos, medos e ressentimentos em que as crianças se transformam para o resto da vida.
quinta-feira, 7 de março de 2019
sábado, 2 de março de 2019
Lobão, Carnaval e Cinzas
Apareceu lá em casa em outubro de 1995. Meus filhos haviam convencido o avô, Seu Terto, a "financiar" a compra de um filhote poodle. Na loja, franciscanamente optaram pelo mais quieto e frágil da ninhada. “...Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome para lhe dar...”, diria Chico Buarque. Mas nada que amor, carinho, vacina e ração de boa qualidade não pudesse resolver.
Quando passamos a morar em Pernambuco, em 1996, a cada duas semanas levávamos Lobão - homenagem ao vilão de “Os Três Porquinhos”, de Walt Disney - para a Praia de Ipioca, em Alagoas, onde filhos e sobrinhos o desafiavam simulando afogamento, ao que aquele magricela corajoso reagia nadando contra a maré até “resgatar” todos os seus “amigos”.
Na véspera do Carnaval de 2001 já estávamos no Planalto Central, depois de breve temporada na Bahia, quando Magdala, minha mulher, tanto insistiu que embarcamos para Recife(PE) para assistir ao “Galo da Madrugada”, que prometia arrastar um milhão de foliões pelas pontes e ruas da cidade no dia seguinte, sábado de Zé Pereira.
Deixamos Lobão em um canil no Lago Norte até a quarta-feira de Cinzas, quando voltaríamos, mas fomos obrigados a retornar às pressas no domingo, após a notícia de que ele havia desaparecido. Da hora que pousamos em Brasília até a terça-feira de Carnaval, vasculhamos cada pedaço daquela região a sua procura, mas sem sucesso. Como último recurso, resolvemos distribuir cartazes e faixas do tipo “procura-se” no raio de 10 km do local de onde sumira.
Na tarde de terça-feira veio o telefonema do canil nos avisando de que ele fora encontrado, ainda no sábado, por um garoto que se divertia com um jet ski no Lago Paranoá. Lobão bem que tentou atravessar aquele "oceano nada pacífico" no rumo da Asa Sul, onde morávamos. Muito debilitado, com todas as articulações lesionadas pelo esforço feito, com infecção intestinal, permaneceu horas a fio debaixo de uma cama onde residia o garoto que o abrigou, praticamente sem alimentar-se, até ouvir alguém chamá-lo pelo nome familiar aos seus ouvidos, descrito nos cartazes e faixas.
De volta para casa, recuperou-se rapidamente. E a notícia da aventura correu pela Super Quadra Sul 114, na manhã de quinta-feira pós-Carnaval, onde um intrépido Lobão cuidava de remarcar seu território a cada poste que encontrava pela frente. Logo, viu-se apelidado pelos porteiros e zeladores do prédio de “Gustavo Borges”, nadador olímpico brasileiro medalha de prata nos 100 metros livres nas Olimpíadas Barcelona 1992 e nos 200 metros livres em Atlanta 1996, que participou de quatro Olimpíadas.
Vitima de edema agudo de pulmão, decorrência de uma gastroenterocolite bacteriana, o velho e destemido Lobão - que já vinha recebendo cuidados especiais na condição de cardiopata e nefropata - tombou no Verão de 2013, aos 18 anos de idade. Foi sepultado com "honras militares e salva de tiros" no quintal de nossa casa, no Jardim Botânico, em Brasília, onde viveu seus últimos dias.
Eu sabia que desagradava algumas pessoas naquele tempo, mas juro que estava sendo absolutamente justo e sincero quando afirmava: “... quanto mais conheço o ser humano, mais admiro Lobão!”. Ele nunca foi ingrato, dissimulado, grosseiro ou desleal conosco. Mostrava-se sempre agradecido pelo carinho que recebia, era fiel, solidário e transparente. Um ser do bem, que tornou inesquecível o Carnaval de 2001 e, anos depois, deu o tom acinzentado definitivo, da cor de seu pelo, à “Síndrome do Ninho Vazio” que se instalava em nossa casa.
Eu sabia que desagradava algumas pessoas naquele tempo, mas juro que estava sendo absolutamente justo e sincero quando afirmava: “... quanto mais conheço o ser humano, mais admiro Lobão!”. Ele nunca foi ingrato, dissimulado, grosseiro ou desleal conosco. Mostrava-se sempre agradecido pelo carinho que recebia, era fiel, solidário e transparente. Um ser do bem, que tornou inesquecível o Carnaval de 2001 e, anos depois, deu o tom acinzentado definitivo, da cor de seu pelo, à “Síndrome do Ninho Vazio” que se instalava em nossa casa.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2019
Achados e perdidos
Quem nunca passou pela angústia de ter um filho ou um irmão perdido na multidão, no shopping, na feira livre ou na praia? Para Einstein, "só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem; a segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre."
A primeira vez que vi o mar foi aos 12 anos, no início de 1970, em frente à AABB Maceió. Meus pais se esforçavam para cuidar de nove filhos espalhados na areia, onde uns rolavam, outros faziam castelos e os mais ousados, afeitos à correnteza do Rio Mundaú, arriscavam molhar os braços e as canelas finas na espuma das marolas, encantados com o céu e o sol daquela manhã de domingo.
Minha mãe, responsável inclusive pela “segurança alimentar” daqueles matutos, trazia numa sacola mangas-espada e bananas-prata, além de algumas garrafas de água potável. Tudo transcorria muito bem até minha irmã Zuleide (Galega, seis anos) desaparecer naquela multidão de rostos e corpos desconhecidos.
“Galega! Galega!”, gritava uma mãe desesperada com a possibilidade de nunca mais encontrar a filha, sem saber se corria no rumo da favela de Ouricuri, da Praia da Avenida ou, no pior dos mundos, se procurava a menina nas ondas traiçoeiras da Praia do Sobral, que já era tida como uma das mais perigosas da cidade. E os irmãos, assustados e confusos, entreolhavam-se sem saber o que fazer, temendo agravar o quadro numa eventual dispersão.
Milagres acontecem. Na praia, Galega foi encontrada meia hora depois nas proximidades do Club Fênix Alagoana, sob a proteção do Corpo de Bombeiros. Na mata, o caso Dula havia sido mais complicado. Meu pai precisou mobilizar alguns vaqueiros a fazerem uma varredura como se procurassem um bezerro desgarrado, até localizar a criança, de tardezinha, dormindo à sombra de um juazeiro, com fome, sede e cansado de tanto soluçar em vão.
Vinte e um anos depois, em 1991, foi a vez de Hélio (Lica, 31 anos). Ninguém desconfiava de que ele desenvolvera um aneurisma cerebral - dilatação anormal de um vaso sanguíneo por perda de elasticidade - que se rompeu justamente numa manhã de sábado, quando se divertia jogando futebol com colegas de trabalho no campinho do clube recreativo da Caixa Econômica, em Riacho Doce. Mesmo forte e novo, ele não conseguiu recuperar-se da intensa hemorragia craniana que lhe fez desaparecer para sempre da mesa em que almoçávamos, quase todo sábado, na velha casa da Gruta de Lourdes.
Todos nós sofremos e choramos, cada qual do seu jeito, o martírio daquele novo desaparecimento em nossa família, ainda que alimentássemos a esperança de que um bombeiro, um vaqueiro ou até mesmo um neurocirurgião nos traria ele de volta. Nem tanto por nós, que já éramos bem crescidos, mas pelos seus filhos inocentes que, assim como o próprio Hélio (Lica), ficaram órfãos de pai antes da hora.
Milagres nem sempre acontecem. Viver é sobreviver para colecionar memórias numa gaveta de achados e perdidos que temos dentro de nós.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019
Palavra de coronel
Há 33 anos, o Brasil convivia com uma inflação descontrolada de 15% ao mês. Mergulhado na mais completa incerteza sobre como sair daquela situação, o governo Sarney lançou o “Plano Cruzado”, em 28 de fevereiro de 1986, tentando arrumar a economia com congelamento de preços, salários, além de tabelamento de juros bancários. Queria também colher frutos nas eleições marcadas para o final daquele ano, quando o PMDB fez 22 governadores em 23 possíveis e fez a maioria dos senadores, deputados federais e deputados estatuais eleitos.
Um mês antes, desconfiada do que poderia acontecer ao dinheiro que vinha poupando com enorme sacrifício, Dona Madalena, minha sogra, pediu-me para ajudá-la a adquirir uma casa de praia, de preferência em Paripueira(AL), onde pudesse investir, o mais urgente possível, tudo o que ela e Seu Terto, meu sogro, conseguiram economizar ao longo de vários anos.
Naquela mesma semana tomei conhecimento de que um certo coronel reformado da Polícia Militar de Alagoas, aborrecido porque sua esposa, já idosa, havia trabalhado demais, no domingo, recebendo filhos, genros, noras e amigos, decidira colocar à venda aquele sobradinho de esquina que minha sogra já admirava há algum tempo.
Fui então procurar o coronel e, em menos de meia hora de conversa, chegamos a bom termo quanto ao valor e à modalidade “porteira fechada” (somente os donos sairiam; nada seria retirado), ficando acordado, verbalmente, que o pagamento e a transferência em cartório da propriedade do imóvel aconteceria no dia 20, como me pedira minha sogra, que contava com a próxima rodada de juros e correção monetária da caderneta de poupança.
Se havia rumores de que aplicações financeiras com rendimentos altos estavam com dias contados e de que não mais valeria a pena manter dinheiro em poupança, era de se esperar que a família do vendedor o pressionasse a desistir do negócio, até porque não havia nenhum documento assinado. Achei prudente, então, conversar a respeito com Dona Madalena e sugeri que fôssemos ao coronel para ratificar o compromisso que assumi em nome dela, se possível adiantando uma parte do pagamento, o que dificultaria eventual desistência.
Ela, de uma sagacidade impressionante, mesmo sem nunca haver explorado seu tino comercial como poderia, entendeu rápido o cenário e o motivo de minha preocupação. Foi até seu quarto de dormir, raspou o que havia no cofre e me pediu para apresentá-la ao vendedor naquele dia mesmo, quando daria de sinal 20% do valor do imóvel.
À noite, ainda no portão da casa do vendedor e antes que fosse por mim apresentada, minha sogra antecipou-se de uma forma fulminante, concisa, clara e objetiva: “... muito prazer, coronel, eu me chamo Madalena Veras e pelo que sei palavra de coronel não volta atrás, não é mesmo?”
O velho militar arregalou os olhos, engoliu seco, cumprimentou-a com breve aperto de mãos e nos convidou a entrar e sentar. Em alguns minutos, ele e a esposa assinaram em silêncio o recibo de compra e venda que eu, testemunha do negócio, preparei ali mesmo com minha Olivetti Lettera 32.
Três meses depois, numa manhã de domingo, o coronel passava diante de sua antiga casa de praia quando foi convidado pelos meus sogros a beber uma dose de uísque com água de coco e camarão acebolado. Aparentemente refeito do “xeque-mate” que sofrera, estava em paz e falava sobre a nova obra que estava construindo ali perto, no momento em que olhou para Dona Madalena e nos revelou: “...naquela noite, eu sei que perdi dinheiro, que arranjei uma briga feia com meus filhos, genros e noras, mas não podia, de maneira nenhuma, deixar uma mulher corajosa como a senhora ter dúvidas quanto a minha palavra na frente de minha família!”
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019
“Tá na mesa!”
Assim gritava a plenos pulmões Dona Eudócia, minha mãe, por volta do meio-dia. Esse grito de guerra, vindo da cozinha da casa onde morávamos, na Gruta de Lourdes, em Maceió, tinha o condão de juntar, em fração de segundo, um time de crianças salivando em torno dela. De banho tomado, cheirosa, ela servia orgulhosa suas crias, convicta, sem qualquer falsa modéstia, de suas habilidades culinárias.

Vi minha mãe certo dia se vestir de santa das causas impossíveis e operar uma versão caseira e bem temperada do milagre bíblico da multiplicação de pães e peixes. Não com arabaiana, carapeba, cavala ou cioba, peixes de primeira qualidade que já custavam os olhos da cara na Maceió dos anos 70, mas com ovos de galinha, boa vontade, engenho e arte.
Sim, com meia dúzia de ovos, alguns cubinhos de charque, dois tomates, uma cebola, meio pimentão, alfaces e ervilhas, ela preparou alguns omeletes com requintes de crueldade para com a vizinhança, que só ficou no cheirinho de comida boa que se espalhou pelo ar.
O suco gelado de maracujá e as sobras recicladas de arroz, feijão e farofa, ajudaram a vencer o desafio de alimentar toda a família naquela quinta-feira-feira, quando o estoque da velha “frigidaire” já atingira o chamado “volume morto” e apresentava sintomas de falência de múltiplas gavetas.
Há poucos meses ouvi meu neto dizer: “vovô... você faz a melhor sopa do mundo”; e a irmã completar: “só vovô sabe fazer o bolo de milho que eu gosto”. Generosidade pura dos dois, talvez por conta da fome naquele momento, quando me veio a ideia de escrever esta crônica sobre a lição básica que aprendemos todos com Dona Eudócia, bisavó deles, pós-graduada com louvor na universidade da vida, hoje no esplendor de seus 80 outubros.
Porque desde que o mundo é mundo, “não existe amor mais sincero do que aquele pela comida” (George Bernard Shaw, 1856 - 1950). Das primeiras gotas do leite materno ao mingau de aveia na velhice - nesse último caso, quando se tem o privilégio de chegar lá.
sábado, 9 de fevereiro de 2019
Coincidências acontecem
Miguel Falabella, ator, dramaturgo, diretor, cineasta e escritor, costuma dizer que “as coincidências às vezes são soluções que a vida encontra pra mudar o rumo da história.” Esse diálogo, ocorrido em fevereiro de 2003, talvez comprove essa tese:
- Achei interessante, Paulo, o ‘discurso’ do novo superintendente do banco aqui em Brasília. A gente sempre recebe nessas horas mais planos e metas, cobrança por mais resultados...
- Como assim, Heloísa?
- Falou apenas da vida dele, desde Maceió, passando por Recife, Salvador, até chegar em Brasília. Diz que isso vai facilitar a conversa, daqui para frente, já que todos os gerentes irão saber quem ele é, por onde passou, onde errou, acertou...
- Heloísa, com esse nome... só pode ser um velho amigo de infância que não vejo há quase 30 anos”.
No início de 2010, o tratamento da hepatite já não fazia efeito e o estado de saúde de Paulo só piorava. Eu, àquela altura presidente da Cassi (plano de saúde que o assistia) e Magdala, minha mulher, que já vínhamos acompanhando o caso há tempos, ficamos bastante apreensivos com a gravidade da situação - aumento nítido do abdômen, icterícia acentuada, sinais de pré-falência hepática. Afinal, metade dos brasileiros que necessitavam de transplante de fígado morriam antes de conseguir doador.
Antes que as cortinas se fechassem e o espetáculo da vida terminasse sem aplausos - os médicos chegaram a comentar com Heloísa que mais um dia poderia ser fatal - , veio a notícia de que surgira um doador compatível e a cirurgia, com mais de 10 horas de duração, foi realizada com sucesso no Hospital das Clinicas da UFMG, em Belo Horizonte. Justamente no dia de meu aniversário, recebi o melhor presente que poderia desejar naquele momento: o show de nosso artista iria continuar.
Paulo diz que, se não fosse a luta sem trégua e o suporte afetivo que recebeu de Heloísa e das filhas Mariana e Ana Carolina, teria sido derrotado. Mas reconhece também que os cuidados (equipe médica, medicamentos, exames) e a boa-vontade com que a Cassi tratou cada demanda de seu caso foram decisivos para a vida normal que leva hoje em dia.
“Pois é, meu irmão, já somos sessentões mas não esqueço do dia em que nasci de novo... mesma data em que você nasceu...” lembrou-me Paulo no ano passado, na passagem de meu aniversário. Silenciei no momento, mas pensei: será que foi apenas coincidência tê-lo encontrado tanto tempo depois? E estar na Cassi na hora que ele mais precisava do plano de saúde?
Existem mais coisas entre o céu e a terra do que nuvens, estrelas e drones.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019
Meu pai um dia me falou...
Bastante dedicado e estudioso, a ponto de vangloriar-se diante dos filhos, anos depois, de nunca haver perdido o “trono” de melhor aluno das salas de aula que frequentou durante a infância e a adolescência, quando se tornou adulto não teve condições financeiras para cursar uma faculdade - coisa de ricos, à época -, mas conseguiu ser aprovado no concurso do Banco do Brasil e, em 1954, aos 23 anos, iniciou sua carreira profissional bem distante de casa, na cidade de Itabaiana, na Paraíba.
Lá encontrou Eudócia, minha mãe, na flor dos 15 anos de idade, filha também de pequenos lavradores do Brejo paraibano, com quem casou e nunca mais deixaram de fazer filhos. Sem contar um abortamento, foram nove em 13 anos (entre 1956 e 1969, Haydeé, eu, Agostinho filho, Hélio, Hélder, Girlene, Zuleide, Kléber e Dayse), os dois últimos nascidos em Alagoas, para onde a família migrou no final dos anos 60, apoiando sua trajetória profissional até então ascendente - depois de algum tempo como chefe da carteira de crédito agrícola e industrial do BB em Patos, no Sertão da Paraíba, foi nomeado administrador do BB em União dos Palmares, Zona da Mata alagoana.
Trabalhador compulsivo durante a semana, relaxava nas horas de folga lendo revistas e livros, inclusive de fábulas, até os filhos adormecerem. Sentia prazer em sentar à mesa com toda a família para comer “Maria Isabel”, arroz puxado no alho com carne de sol picada. Gostava também de “passear” com a enceradeira pela casa, aos sábados, lustrando mosaicos enquanto ouvia Ataulfo Alves, Nelson Gonçalves, Orlando Silva e Trio Irakitan. Não perdia por nada o “Repórter Esso” nem jogos do Vasco, ouvindo transmissões de rádio numa época em que a TV não fazia a menor falta. E ainda arranjava tempo para dedicar às roseiras que cultivava no jardim com o mesmo carinho que devotava à musa inspiradora que criou a possibilidade de uma vida em família que a vida lhe negara quando criança.
“A honra e a dignidade de um homem devem ser preservadas a todo custo. Na escalada da vida, um escorrego é preferível que seja fatal”. Era o que estava escrito em curto bilhete que meu pai deixou para os colegas de trabalho, na gaveta de sua mesa, na penúltima sexta-feira de maio de 1972, quando decidiu que não voltaria a encontrá-los nunca mais. Naquele dia, recebera o contracheque do mês zerado, por compras antecipadas em supermercado, farmácia, lojas etc., com consignação em sua folha de pagamento. Onde arranjar forças para seguir em frente, humilhando-se a cada novo empréstimo feito junto a agiotas e dando cheque pré-datado em garantia? E se acabasse demitido por conta da emissão de cheques sem fundos?
Deprimido e não suportando rolar a bola de neve de dívidas que se formou desde que, em 1969, perdeu o cargo de confiança que ocupava no banco, reduzindo a menos da metade o salário até então bem ajustado com a numerosa família que formou, meu pai certamente pediu perdão a Deus, na missa de domingo à noite, na capela da Gruta de Lourdes, pela decisão de precipitar por conta própria sua partida, aos 41 anos de idade.
Até hoje nenhum de nós, mamãe, filhos e filhas, conseguiu esquecer por completo o grito coletivo de horror naquela manhã de segunda-feira, 22 de maio de 1972, quando deparamos com seu corpo inerte, tendo ao lado óculos, relógio, aliança e uma carta em que pedia: “Para Eudócia... No bolso de meu paletó preto tem uma relação de minhas dívidas... quero que avise a todos os meus credores que receberão o que lhes devo assim que o seguro for liberado pela Previ... Hayton e Agostinho Filho agora serão os homens da casa... perdão pelo que não pude fazer de bem... “
Ele sabia que o seguro de vida e a pensão vitalícia que deixaria seriam suficientes para, pelo menos, garantir o bem-estar material da esposa e filhos. E eu, aos 14 anos, revoltado sem motivo com o Banco do Brasil naqueles dias de luto, já contava com o apoio e o carinho de Magdala, minha namorada até hoje, mas não conseguia ouvir no rádio uma certa canção sem encher os olhos d’água:
"Meu pai um dia me falou /Pra que eu nunca mentisse/Mas ele também se esqueceu/De me dizer a verdade/Da realidade do mundo/Que eu ia saber/Dos traumas que a gente só sente/Depois de crescer/Falou dos anjos que eu conheci/No delírio da febre que ardia/Do meu pequeno corpo que sofria/Sem nada entender/Minha mulher em certa noite/Ao ver meu sono estremecido/Falou que os pesadelos são/Algum problema adormecido/Durante o dia a gente tenta/Com sorrisos disfarçar/Alguma coisa que na alma/Conseguimos sufocar/Meu pai tentou encher de fantasia/E enfeitar as coisas que eu via/Mas aqueles anjos agora já se foram/Depois que eu cresci/Da minha infância agora tão distante/Aqueles anjos no tempo eu perdi/Meu pai sentia o que eu sinto agora/Depois que cresci."
Quem poderia imaginar que, dois anos depois, aos 16, eu iniciaria minha própria trajetória no Banco do Brasil (menor aprendiz para serviços gerais), lá permanecendo por mais de 40 anos? Meu filho certo dia me perguntou se durante todo esse tempo de banco eu não estava, na verdade, à procura de meu pai. Na hora, não soube o que responder, mas, hoje, eu não tenho nenhuma dúvida.
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