Juro pelo cachimbo da velha parteira que cortou o meu umbigo que este caso é real. Pode ter uma coisinha a mais aqui, outra ali, mas Salomão, meu vizinho à época, me contou em detalhes o que lhe aconteceu quando morou na Quadra 114 Sul, em Brasília, na virada do milênio.
Margot, síndica do prédio, quase o levou à loucura. Criava confusão com os moradores por qualquer bobagem e fazia da vida de todos eles um inferno, inclusive dos prestadores de serviços, a reclamar do desodorante vencido de um, do cheiro de cigarro de outro e até do flerte inocente de uma babá com o porteiro da noite.
A síndica era de morte! Um dia, mesmo percebendo pelo retrovisor que Salomão descia a rampa da garagem logo atrás do carro que ela guiava, fez-se de distraída e acionou o controle remoto para fechar o portão, espatifando o para-brisa do coitado. Irritado, ele quis dizer o que qualquer um diria, mas respirou fundo, contou até nove e percebeu a tempo a intenção dela: tornar-se vítima.
Certamente Margot diria que apenas cumpriu o regulamento da convenção de condomínio, que responsabilizava os moradores pelo fechamento do portão nas entradas e saídas da garagem. Salomão então teve que catar cacos de vidro espalhados do painel frontal até o porta-malas do carro durante horas, além de aturar a demora da oficina para repor a peça danificada e arcar com o custo da franquia do seguro.
Ela tinha seus motivos para se sentir infeliz. Havia sido rejeitada pelo ex-marido, não conseguiu ser mãe nem contava com um cobertor de orelhas e braços para aquecê-la nas noites frias e secas do Planalto Central. Servidora pública, aposentou-se sem nada digno de orgulho em termos profissionais. Nem festinha de despedida fez por merecer de seus colegas de trabalho.
Caneta e prancheta nas mãos o dia todo, ela se portava como alguém acima do bem e do mal, a distribuir ordens e fazer ameaças até a Zezé, um caboclo magricela nascido na goiana Pirenópolis que vendia “frutos” do Cerrado — queijos, ovos, mel, linguiças, doces, broas e sequilhos — numa kombi enferrujada, de pneus arriados, havia anos parada no estacionamento público.
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Ilustração: UMOR |
Brasília continuava a mesma: quanto maior o poder, maior o abuso de autoridade. Quando tomava conhecimento dos chiliques de Margot, Salomão balançava a cabeça. Não entendia o porquê de tanta empáfia e rispidez no trato com as pessoas, principalmente as mais humildes. Apesar disso, não se encorajava a discutir o assunto nas reuniões de condomínio e tocava sua vida a fazer de conta que a síndica não existia, até que a danada pisou de novo no seu calo.
Certa manhã, a filha de Salomão deixou o carro por alguns minutos próximo à guarita da portaria — na falta de vagas em frente ao prédio e sem tempo para descer à garagem no subsolo —, enquanto pegava algo na geladeira para atenuar a fome. Foi o bastante para Margot acionar a fiscalização de trânsito, denunciar a infração e exigir que o agente público cumprisse o seu papel: aplicar a multa.
Salomão não se conformava. Naquele dia, abriu a caixa de ferramentas, soltou o verbo e falou alto para quem quisesse ouvir: “Por que comigo, minha Nossa Senhora Aparecida, que todo sábado vou à missa? Quanto mais rezo, mais assombrações me aparecem!"
Talvez Margot ainda estivesse cabreira por ele tê-la flagrado no elevador, às três da madrugada de uma sexta-feira, bocejando com os dentes arroxeados pelo excesso de vinho, a carregar uma sacola que se rasgou, derrubando alguns apetrechos íntimos. Muito íntimos, diga-se de passagem. Tanto que Salomão esquivou-se de ajudá-la para evitar maior constrangimento.
Mas agora ela passara dos limites. Como diria tempos depois um certo deputado federal a outro parlamentar, ao vê-la mais uma vez criticando de modo grosseiro o trabalho das faxineiras, Salomão comentou com o porteiro: “Esta senhora desperta em mim os instintos mais primitivos!"
Foi quando ele decidiu colocar em ação um plano que já vinha arquitetando em suas noites insones: publicar um anúncio no Correio Braziliense mais ou menos assim: “Mulher madura, enxuta, bem de vida, procura alguém para relacionamento sem compromisso, solteiro ou casado. Guarda-se sigilo. Ligar para...”
Claro que Margot iria cuspir escorpiões e desconfiaria de que a molecagem partira de Salomão, mas dificilmente conseguiria provar. Ele, ao planejar a ação em seus sórdidos detalhes, terceirizaria o anúncio no jornal através de uma amiga mineira de passagem por Brasília. E saberia ser cínico o bastante — em público, claro —, para lamentar o ocorrido, inclusive colocando-se à disposição dela para auxiliar na identificação da origem daquela crueldade inaceitável, sem precedentes na história do prédio.
Mas Salomão — como o personagem bíblico filho de Davi, fiel à origem de seu nome na palavra hebraica Shelomon, de Shalom, que significa paz — era homem de índole pacífica, ainda que à base de ansiolíticos, custou a pegar no sono naquela noite, a ruminar sobre os possíveis desdobramentos de seu audacioso plano.
Pensava: e se Margot, carente como andava, caísse na conversa mole de um serial killer? E se mais adiante, no curso das investigações policiais, encontrassem a responsável pela publicação do anúncio a partir das imagens das câmeras de segurança do jornal?
Na manhã seguinte, seu mundo mudara completamente. Salomão recebeu a notícia de que a nora estava grávida, o que fez seu coração pulsar noutra cadência, levando-o a abortar o plano e a desistir da vingança. Não pegaria bem para um avô de primeira investidura conhecer o neto apenas depois de uma temporada na Papuda, cumprindo sentença condenatória como mentor intelectual, por exemplo, de estrangulamento ou coisa parecida.
Ocorreu que meia hora depois lá estava ele de novo pensativo, oscilante, insatisfeito com a possibilidade de ter que desistir do plano meticulosamente arquitetado como se nada lhe tivesse acontecido. “Ninguém sabe do que aquela mulher é capaz! Eu estou prestando atenção há muito tempo...” — comentou comigo.
Se temia o que pudesse acontecer com Margot, por outro lado imaginava: a danada é tão ardilosa que será capaz de se deixar seduzir inicialmente para no primeiro vacilo do serial killer morder o seu pescoço, sugar o sangue, esquartejá-lo e embalar os pedaços em maletas. E na calada da noite, jogar tudo no Lixão da Estrutural ou no fundo do Lago Paranoá.
Porém Salomão, definitivamente, não era de guardar raiva por mais de três dias. Acabou mais uma vez perdoando a infeliz. Optou por mudar dali e, em duas semanas, foi morar no final da Asa Norte, próximo do filho e da nora que lhe dariam o primeiro netinho.
Só voltava à antiga morada para apanhar a correspondência na portaria e bater papo comigo. Foi o porteiro, inclusive, quem lhe contou que a síndica, dois meses após a saída dele, também foi embora sem deixar nem uma nota de duas linhas no quadro de avisos. Disse que iria visitar um tio adoentado no interior goiano, que fechara as contas do condomínio com o subsíndico na noite anterior e partiu com destino ignorado.
Veio à tona então o que já se desconfiava da garagem à cobertura do bloco: Margot, no calorão da menopausa, resistiu o quanto pôde, mas acabou juntando as escovas de dentes e os trapos encardidos com o menino Zezé, que deixou de vender “frutos” do Cerrado para se dedicar de corpo e alma ao consumo do estoque de afetos represados da criatura.
O casal foi visto pela última vez na boca da noite de uma quinta-feira qualquer, no parque Dona Sarah Kubitschek, ela com os olhos fechados a alisar a barba rala de Zezé, que guiava um Chevette SL seminovo com o toca fitas a reproduzir É o amor, canção de um xará e conterrâneo:
“(...) Eu não vou negar
Você é meu doce mel
Meu pedacinho de céu
Eu não vou negar (...)”
Pois bem! Só agora, depois que resolvi contar essa história, minha mãe vem me dizer que a velha parteira que cortou o meu umbigo nunca fumou. Mas isso é o de menos nesse caso.