quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Desonestos

Há oito anos viralizou nas redes sociais um vídeo em que o atleta espanhol Ivan Fernandez abriu mão de vencer a prova de cross country de Burlada, em Navarra, mas até hoje é enaltecido por sua honestidade durante o evento. Abel Mutai, atleta queniano, que tinha tudo para ganhar a corrida, parou no lugar errado, achando que alcançara a linha de chegada. Ivan Fernandez, que vinha em segundo lugar, podia ultrapassá-lo e conquistar a prova, mas optou por alertá-lo sobre o vacilo e o incentivou a confirmar a sua vitória. E algo que deveria ser padrão no ser humano acabaria virando notícia.


No começo deste viral e inesquecível 2020, circulou nas redes sociais outro vídeo contendo novo gesto digno de nota, por coincidência envolvendo outro esportista espanhol. Aconteceu durante uma partida de futsal em que o jogador Francisco Solano, do FS Cartagena, ao ver o seu adversário sofrer uma lesão importante numa disputa de bola com ele, optou por não marcar o gol quando já estava diante do goleiro. Chutou a bola para fora da quadra e a vida seguiu adiante. 

 

Nos dois casos, pela rapidez com que escolheram o que fazer diante das circunstâncias, não me pareceu que assim reagiram porque lhes seria mais vantajoso perder do que ganhar com a repercussão do gesto. Ainda que, intimamente, possa ter havido alguma dúvida nesse sentido. Nunca se sabe. 

 

Existem outros vídeos em que atletas internacionais colocam o respeito ao próximo acima da vontade de vencer, algo raro por aqui. Mas já vi muitos lances fora do Brasil em que também se pecou pela falta de ética, como o gol La mano de Dios marcado por Maradona contra a Inglaterra na Copa 86 e a cotovelada de Pelé no rosto do zagueiro uruguaio na Copa 70. São fraudes enaltecidas até hoje por muitos argentinos e brasileiros, inclusive da elite intelectual dos dois países, pela “genialidade” dos protagonistas. Também já vi atletas alemães, franceses, turcos, ingleses, italianos e paraguaios simularem pênaltis, marcarem gols ilegais, cuspirem nos adversários e otras cositas mas.  

 

Sábado passado, no estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, Yuri Alberto foi destaque na vitória do Internacional por 2 a 1 sobre o Botafogo pelo Campeonato Brasileiro. O atacante marcou o gol da vitória aos 24 minutos da etapa final, gerando grande polêmica. Aproveitou-se de um suposto vacilo (gesto no piloto automático) do lateral-direito adversário para interceptar a bola e tocá-la na saída do goleiro botafoguense, desempatando a partida. 

 

De costas, o árbitro não viu o lance e recorreu ao assistente de vídeo para validar o gol. Para os botafoguenses, a intenção de seu jogador era entregar a bola ao goleiro para que cobrasse a falta. É natural o atleta de futebol fazer isso com os pés como fazem com as mãos os de basquete e vôlei. Tanto que, se reiniciasse o jogo com um chute direto ao gol no Internacional, a cobrança seria nula porque executada fora do local da infração. Yuri Alberto, autor do gol, resumiu: “A partir do momento que ele parou a bola e tocou, o jogo tá valendo... Então, eu finalizei e acabei marcando... Para só depois ver o que a arbitragem iria marcar”. Pra fechar, só faltou uma genuflexão dando graças aos céus pela esperteza.

 

O tal jeitinho brasileiro já foi objeto de toda sorte de estudos psicológicos e sociológicos. Desenvolveu-se nesta terrinha abençoada e bonita por natureza um jeito meio estúpido de ser e de resolver problemas com engenho, safadeza e arte. Dizem que isso seria herança dos períodos de exploração iniciados com os europeus, quando as relações patriarcais substituíram o “ser” pelo “ter”, impondo a astúcia e a embromação para conseguir poder e fortuna.  

Com a malandragem entranhada da orelha direita ao dedão do pé esquerdo, cruzando o coração em fatos e omissões, quase todos querem levar vantagem em tudo. Transigem com coisas sérias como sonegar impostos, furar filas (do banco ao aeroporto, passando pela do transplante de órgãos, até a da vacina que está em formação), burlar sinais de trânsito, jogar lixo nas ruas e estradas, ofender minorias, maltratar animais, destruir bens públicos, seguros de que não dará em nada. Ou, se muito, acabará em pizza e Coca-Cola. Diet, para não engordar.

Claro que a sem-vergonhice existe no mundo inteiro! Ainda estão fresquinhos os escândalos históricos envolvendo multinacionais felpudas como Arthur Andersen, Facebook, Lehman Brothers, Nissan, Volkswagen etc.; as mentiras descaradas que Trump com sua halitose espalhou durante o seu mandato, inclusive para justificar a derrota nas últimas eleições norte-americanas, os escândalos que sacudiram o governo do Japão no final do ano passado, entre outros. Na outra ponta, também continuam vivinhas algumas historietas tropicais de garis, faxineiros de banheiros públicos e arrumadoras de quartos de hotéis que encontraram sacolas de dinheiro e devolveram aos donos.

Ao ler Câncer, eu? – Memórias alegres de um medo profundo, Editora Fontenele, obra brilhante de autoria de Sérgio Riede, me chamou à atenção este pequeno trecho por ele transcrito, do escritor russo Dostoievski: “Nas lembranças de cada homem há coisas que ele não revelará para todos, mas apenas para seus amigos. Há outras coisas que ele não revelará mesmo para seus amigos, mas apenas para si próprio, e ainda com a promessa de manter segredo. Finalmente, há algumas coisas que um homem teme revelar até para si mesmo. E qualquer homem honesto acumula um número bem considerável de tais coisas. Quer dizer, quanto mais respeitável é um homem, mais dessas coisas ele tem.”

Afinal, quem de nós sempre fez a coisa certa mesmo que ninguém estivesse vendo (ou filmando)? Será que somos diferentes e não fazemos parte da nação do jeitinho? A autocrítica, individual e coletiva, é ponto de partida para estar bem colocado na fita de chegada no novo normal que queremos. Quem de nós nunca foi desonesto que me atire pedras. Sem máscara.  

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Telecoteco

 “Mamãe... Mamãe!” – gritava a criatura na fila de caixas do banco, no supermercado ou no meio da rua toda vez que encontrava “nossa” mãe. Isso, claro, antes do confinamento dos dias de hoje. Era o jeito carinhoso com que ele declarava a quem quisesse ouvir que me tinha como irmão desde que nos conhecemos na metade dos anos 1970. 


Ano que vem serão 70 anos de idade e meio século de trabalho na mesma empresa, fazendo as mesmas coisas – amizade, suporte administrativo, recepção e distribuição de documentos, encomendas etc. –, com o mesmo apetite do início de tudo na cidade de Batalha, no Sertão alagoano, onde nasceu e criou-se à base de tareco, amor e mariola até mudar-se para Maceió. 

 

Cristiano não fuma, não bebe, mas jogava muito. Como jogava! Meu armador predileto – assim me refiro a ele – nos tempos do Cantareira, timeco sem-vergonha que juntava o que de pior havia em termos de peladeiros, do faxineiro ao gerentão da empresa. Sabia como ninguém cadenciar o jogo, aguardar o momento exato para, à moda Gérson, enfiar uma bola longa entre os zagueiros, colocando os atacantes cara-a-cara com o goleiro adversário. Pena que os pernas de pau quase sempre vacilavam, mas, para todos, ganhar ou perder era irrelevante. Bom era ter um pretexto para reunir os amigos nas tardes de sábado em torno do mais apaixonante dos brinquedos: a bola.   

 

Ele nunca se queixou por não exercer altos cargos, nem deter poder sobre outras pessoas ou ganhar menos do que merecia. Como se fora um treinador com uma prancheta de sonhos nas mãos e um colar de medalhas no peito, trazia de berço dentro de si a escalação de um timaço imbatível, do goleiro ao ponta esquerda: Amizade; Disciplina, Determinação, Respeito e Lealdade; Otimismo, Paciência e Humildade; Tolerância, Gratidão e Honestidade. 

 

A prontidão para servir a quem dele precisava o levou a criar um bordão maravilhoso que virou sua marca registrada. Até hoje, ao concluir qualquer trabalho, antevendo o que certamente lhe dirá o destinatário da encomenda ou o beneficiário de seu esforço, antecipa-se e arremata de primeira: “Obrigado... De nada!”. E gira sobre os calcanhares, sumindo no mundo em meio a outros afazeres. 

 

Tenho meus motivos para desconfiar de que ele sonhava ser poeta e sanfoneiro. Digo isso porque, em janeiro passado, soube por Didi, que trabalhou em Alagoas nos anos 1980 e nunca mais o reencontrou, que ele lhe encomendou um poema para a namorada. Aconteceu então uma troca vantajosa para ambos: decidiram ir à barraca Ipaneminha, na orla, onde Didi conheceria a moça e rabiscaria algo para a competente assinatura do "autor". “Não bebo, mas vou pagar a despesa!”, teria dito meu armador predileto. 

 

Foi assim que Célia, cara-metade e musa inspiradora de Cristiano, com quem trocava olhares enternecidos na igreja do Livramento antes mesmo de alinharem os ponteiros, recebeu este apressado mimo poético no dia de seu aniversário, sem papel celofane nem laço de fita, mas com dedicatória, abraço e beijo:

 

Dezoito anos

 

Mundo colorido, sol distorcido,

Horizonte infinito, mar repartido,

Cores moldadas, rosa adornada.

 

E a alegria de ter dezoito anos,

E a certeza de não ter planos

Reclama da demora da maioridade,

Mas que um dia vai sentir saudade.

 

Novos tempos, entretanto, hão de vir

Quando se tem a vida a somar e dividir.

 

É hora de olhar na mesma direção

Com a pessoa que lhe toca o coração:

Fazer de dois mundos uma só nação!

 

Célia deve ter desconfiado, tanto que a carreira do "poeta" encerrou ali. Ele nunca foi de mentir. Quanto à música, se a sanfona não lhe deu muita trela, tomou gosto e passou a tocar triângulo como gente grande, chegando a acompanhar grupos de forró que se apresentaram em Maceió. Até a orquestra da Polícia Militar de Alagoas, que anima crianças e idosos nas manhãs de domingo à beira-mar, recebe canja do ilustre triangulista (assim escrevo, tal como baterista, violinista etc.). Se duvidar – eu não duvido de nada! –, ele é capaz de entortar um triângulo num telecoteco de deixar o ferro em brasa sem queimar os dedos nem largar o batedor.

 

Soube outro dia que Daniel, 5 anos – filho da jornalista Cris Calaça e sobrinho de Crisinho Gambiarra, um tecladista de primeira –, o único netinho de Cristiano e Célia, tem neste momento uma missão bastante nobre e delicada: manter aquecido o coração do avô enquanto a danada da vacina não dá as caras por aqui e acaba de vez com a pandemia que ameaça recrudescer na virada do ano. Mas nem disso ele se queixa.

 

Se bem conheço a criatura, assim que a tempestade passar vai trocar de roupa, descer de novo a ladeira no rumo do trabalho, encarar na esquina o bicho que o confinou a pulso a quem dirá que o mundo é grande e o destino lhe espera, que não será ele que vai lhe dar na primavera as flores lindas que ainda sonha pro seu verão. Com o triângulo, claro, num telecoteco de arrepiar o calçadão da rua do Livramento.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Bola na trave

Prêmio Jabuti é considerado o mais tradicional e importante reconhecimento literário do País, sendo anualmente concedido pela Câmara Brasileira do Livro a figuras da comunidade intelectual brasileira. Foi criado em 1958, ano em que quase tudo deu certo para o Brasil, desde a primeira conquista da Copa do Mundo, passando pelo lançamento de Chega de Saudade, de João Gilberto, disco-base da Bossa Nova, até o espanto universal causado pela arquitetura de Niemeyer.

Concorria este ano, na categoria “Crônicas”, a obra O dia em que achei Drummond caído na rua (Editora Zarte), de autoria de meu amigo Marcelo Torres, o menino tabaréu do Junco (hoje Sátiro Dias, a 200 km de Salvador) que conheci na virada do século, jornalista e escritor adaptado a Brasília. 


Trata-se de um livro fabuloso onde grandes escritores como Amado, Cecília, Drummond, Graciliano, Marquez e outros tornaram-se personagens bem construídos de 26 histórias curiosas, hilárias ou mesmo trágicas – as minhas preferidas são 
O menino e os coronéis, Ô de casa! e O silêncio das igrejas –, frutos, segundo ele, de muita pesquisa sobre a obra e a vida de suas fontes de inspiração.

Marcelo me contava outro dia, antes da divulgação do resultado final, que já se sentia satisfeito por ter sua obra conquistado duas dificílimas vitórias, sendo escolhida entre as 10 melhores (no meio de 200 livros inscritos), depois entre as cinco melhores, numa concorrência em que estrelas da constelação brasileira ficaram pelo caminho. “Nunca imaginei que na primeira vez que me inscrevi no prêmio, com uma publicação muito simples, já fosse duplamente finalista”, pontuava.

 

Bateu na trave! A categoria teve como ganhadora a obra Uma furtiva lágrima (Editora Record), de Nélida Piñon. O imponderável cochilou no plantão e o prêmio, não se pode negar, acabou em boas mãos. Nélida é escritora de primeira grandeza e senta-se há bom tempo, merecidamente, à mesa dos imortais da Academia Brasileira de Letras. 

 

Quarta-feira passada, ao saber do desfecho, eu comentei o óbvio com meu amigo: o Jabuti, para autor pouco conhecido do grande público, deve ser visto como os escritores de renome mundial encaram todo ano o Prêmio Nobel de Literatura, isto é, com silenciosa e pragmática esperança. Se não der certo, nada a temer senão o correr da luta, nada a fazer senão esquecer o medo. Você já cruzou a linha, chegou onde pouquíssimos chegaram e continuará entregue a paixões que nunca terão fim.  

 

Disse-lhe ainda outra obviedade: literatura é arte de dentro para fora. Para declarar seu espanto diante dos mistérios da vida, o fotógrafo usa lentes; o pintor, tintas; o escritor, palavras. Quem escreve não deve preocupar-se em demasia com a opinião alheia, dado que nunca terá controle sobre como os leitores amortecerão no peito a bola de papel arremessada.

 

Por isso, toda leitura é feita de suspiros, risos e silêncios. Seria frustrante para o escritor descobrir o que seus filhos (textos) fazem no escuro do quarto enquanto ele não está por perto. Os leitores criam seus próprios quereres – “onde queres o prazer, sou o que dói; onde queres tortura, mansidão; onde queres um lar, revolução; e onde queres bandido, sou herói”, diria outro baiano como meu amigo.  

 

Voltamos a trocar mensagens no dia seguinte e ele fez uma analogia interessante ao trazer para o campo de jogo o seu querido Vitória. Nas duas vezes em que chegou à final de uma competição nacional, no Brasileirão de 1993 e na Copa do Brasil de 2010, foi nocauteado por dois adversários indigestos: O Palmeiras de 1993, de Edmundo, Evair, Roberto Carlos, Edilson, Mazinho etc., e o Santos de 2010 (campeão da Libertadores), de Neymar, Robinho, Ganso, Elano, Renato etc.

 

Naquela quinta-feira seria sepultado o que sobrou de Maradona, de quem muito se falou ultimamente, mas pouco se disse sobre sua maior contribuição: mexer com a autoestima de baixinhos, gordinhos e pernetas (cuja perna inútil não se presta nem para chutar a bunda de quem lhe condena pelo que faz a si próprio), provando que vale a pena, sim, cruzar a linha de chegada, mesmo não sendo o primeiro. 

 

Às vezes, bola na trave também é gol. Golaço!

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Donas do amanhã

Gostei da notícia de que um pé de pequi, que dá frutos há mais de 10 anos, foi deixado no meio da rua recém-asfaltada pela prefeitura de Araguaína, no estado do Tocantins. Crianças ficaram apreensivas com a possibilidade de a árvore, tida como “de estimação”, ser derrubada na execução do serviço. A prefeitura reconheceu o clamor popular e que o pequizeiro não trará prejuízos ao trânsito. Uma ilha de concreto será instalada ao redor, além de sinalização no local.

 


Tirante eventual exploração político-marqueteira, é elogiável o incentivo à preservação ambiental, fruto do carinho de uma comunidade para com seu querido pequizeiro. E isso me faz recordar dois casos que já estavam devidamente arquivados no gavetão de minha memória.

 

Lembrei-me de uma velha estaca de madeira fincada próximo à linha lateral imaginária de um campinho de futebol que serviu de cenário para alguns rachas de minha infância. Fazia-se de surda e nunca ninguém conseguiu convencê-la a mudar de lugar para não atrapalhar os meninos. É verdade que nenhum de nós esbarrou na estaca, tampouco dela sofreu uma rasteira ou coisa parecida. Era como se fosse um árbitro sem apito, sem aborrecer os dois times nem interferir no resultado dos rachas.  

 

Recordei também de uma medida na mesma linha da adotada pela prefeitura de Araguaína, porém de amplitude mais abrangente. Há pouco mais de 20 anos estive numa cidadezinha de oito mil habitantes encravada no Alto Sertão do Pajeú, a 300 km da capital pernambucana, chamada Tuparetama. Além do clima ameno a 500 metros de altitude, vi que defronte de quase todas as casas havia uma árvore, algumas ainda bem pequenas. Procurei saber do prefeito como o município conseguia arborizar as ruas e qual o custo daquela iniciativa, certamente onerosa para o modesto cofre da prefeitura. Respondeu-me, sorrindo, que em cada casa havia uma criança que fora sensibilizada a cuidar de “sua” planta em troca de uma ajuda simbólica – algo equivalente a 10% de um salário mínimo –, desde aguar pela manhã e à tarde, passando pela arranca de ervas daninhas, uso de estrume, até cerca de proteção, se necessário.

 

Percebi ainda que não existiam muros com pichações e fotografias, comuns sobretudo em campanhas eleitorais. Em lugar de propagandas políticas com imagens e letreiros de gosto duvidoso, foram pintados nas paredes caiadas versos de poetas populares.

 

Nada muito rebuscado. Poemas simples, enxutos e intensos, extraídos da alma de uma gente humilde, como aquele em que Manoel Xudu relatou:

Mamãe me dava papa,

Me deu leite, me deu bolo,

Ela que me deu consolo,

Me deu carinho, garapa.

Mamãe que me deu um tapa,

Mas depois se arrependeu.

Beijou aonde bateu,

Desmanchou a inchação.

Quem perdeu mãe tem razão

De chorar, porque perdeu.

 

Ou como rabiscou João Furiba, não se sabe se inspirado numa galinha, numa cabra, numa novilha ou numa donzela, digamos assim:

Eu também estou tristonho

Porque perdi minha bela.

Eu quisera arrumar outra

Pra botar no lugar dela.

Nem precisa ser bonita

Basta ser igual a ela.

 

Fui-me embora no fim da tarde e nunca mais voltei à cidade. Agora me pego pensando sobre o destino daquelas crianças sertanejas da segunda metade dos anos 1990, tocadas desde cedo pelo amor ao meio ambiente e à poesia. Por que essas comunidades representam ponto fora da curva e viram notícia com aquilo que deveria ser regra natural, como aprender a ler, escrever e contar?

 

No começo deste ano, numa histórica reunião ministerial, um certo cidadão alertava os demais participantes sobre o que considerava ser uma oportunidade trazida pela pandemia da covid-19. Para ele, o governo deveria aproveitar o momento em que o foco da sociedade e da mídia estava voltado para o novo coronavírus e mudar regras que poderiam ser questionadas na Justiça. Seria a hora, segundo ele, de fazer uma “baciada” de mudanças nas normas ligadas à proteção ambiental. Também nas suas palavras, hora de “passar a boiada”.

 

Resolvi checar a origem do sujeito e descobri o óbvio: não nasceu em Araguaína nem em Tuparetama. Talvez nunca tenha semeado uma planta ou cometido um poema. Se dedicasse um quarto de hora à leitura de Manoel de Barros, quem sabe descobriria que a importância de determinadas coisas não se mede com fita métrica, balanças nem barômetros, mas pelo encantamento que produzem nas donas do amanhã (as crianças de hoje), para quem plantas e poesias continuarão sendo indispensáveis. Certas criaturas, não. Podem ser trocadas até de “baciada”.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Praga de guri

O guri viu quando aquela mulher, fingindo alimentar as galinhas que ele criava no quintal com tanto carinho e milho, atraiu duas delas para a cozinha com seu tititi e um punhado de grãos, liberou a menor, fechou a porta e condenou a mais gordinha à morte. Viu ainda quando a mulher pisou as pernas dela com a sandália do pé esquerdo e lhe depenou o pescoço, onde bateu com a lâmina da faca para “chamar” o sangue, cortou com um só golpe a carótida e o jorro vermelho escorreu numa vasilha até a coitada se render desfalecida. Guardou assim na memória uma das cenas mais marcantes de sua infância. 


Sentiu-se pior ao se dar conta de que aquela mulher era a sua própria mãe. O mal-estar aumentou quando viu o corpo que tantos ovos lhe trouxera, ainda morno, ser jogado dentro de um caldeirão amassado com água fervendo – o que afastava qualquer chance de socorro à custa de mercúrio cromo, gaze e esparadrapo – e dele serem retiradas todas as penas sem qualquer remorso. Depois, ainda veria sapecado numa boca do fogão o que restava de penugem.

 

O guri assistia paralisado ao desenrolar do filme macabro. Via em cores mortas o fim de sua protegida, com a matadora a cortá-la em pedaços – arrancou-se até a cabeça de olhos foscos e as pontas dos dedos com unhas e tudo – do tamanho das fatias em que seu coração de criança fora repartido. Chegou a imaginar que, de tão arrependida da atrocidade que cometera, ela agora tentava curar os ferimentos com uma mistura de vinagre, pimenta do reino, cominho, alho e sal. Mas já não havia sinal de vida quando perguntou por perguntar:

– E o sangue, vai jogar fora? E os ovinhos sem casca?

– Saia daí... Não mexe nisso! Vá brincar no quintal, agora! – rebateu a mãe.

 

Foi melhor. Era importante ir até o galinheiro checar como as amigas da infeliz reagiram ao que acontecera, se viram ou ouviram alguma coisa, se estariam necessitadas de um pouco de água para se restabelecerem do choque depois daquela tragédia numa manhã de domingo, dia em que, mais cedo, o guri vira a própria mãe de joelhos, na capela do colégio, a rezar pelo bem de todos, menos do galinheiro. Quem sabe iniciariam ali uma greve de fome em protesto pela morte da gordinha. Recusariam desde milho até as sobras de almoço e definhariam com dignidade até a morte – fim de todos os viventes – por uma causa nobre. "Quem não luta pelos seus direitos não é digno deles", diria o machão do quintal cantando de galo no pedaço.     

 

Era pouco provável, entretanto, que aquelas criaturas fossem resilientes e corajosas a esse ponto naquele distante ano de 1967. Para sua ingrata surpresa, o guri não notara no galinheiro sinais de tristeza ou de revolta, uma lágrima sequer fora derramada no chão diante da barbárie. Todas pareciam amoldadas à vida miúda de fundo de quintal, à espera da água, da comida ou do estupro diário do velho galo que, sem o menor romantismo, nunca negociou os termos de cobertura das namoradas. Inocente, aliás, o guri achava que aquilo não passava de gentileza para protegê-las do vento frio à sombra da mangueira, apesar dos esporões afiados próximos ao cangote. 

  

Não deu meio-dia e a mãe chamou o restante da família – pai e quatro filhos – para almoçar “galinha à cabidela”, eufemismo para descrever o resultado da covarde e premeditada execução da gordinha, que ademais fora cozida cruelmente no próprio sangue:

– Eu quero uma coxa! – antecipava-se a irmã mais velha.

– A titela é minha! – gritava o irmão do meio.

– Me dá o coração e a moela! – cobrava outro.

– Pelo visto, mulher, só vai sobrar ciscador, grade, mangote e sobrecu pra nós... – brincava o pai com a mãe, sem graça alguma para o guri.

 

Naquele ano, por coincidência, dois aviões haviam se chocado no céu do Ceará, deixando no ar um mistério que divide opiniões até os dias de hoje, mais de meio século depois: uns acreditam em conspiração seguida de assassinato; outros falam em mera fatalidade. A bordo de uma das aeronaves estava o marechal Castelo Branco, primeiro governante do regime militar, tido como alguém de perfil moderado nas Forças Armadas. Três anos antes, no discurso de posse, chegara a cogitar eleições para 1965. Havia deixado o poder justamente quando engrossava as canelas o grupo “linha dura” liderado por seu sucessor, general Costa e Silva, grupo esse que só largaria a cadeira, o carimbo e a caneta mais de 20 anos depois. 

 

Mas voltemos ao almoço. Ninguém percebeu a tristeza que tomou conta do guri. Sua família, alheia ao que se passava nas entranhas do submundo político-militar, estava feliz, de barriga cheia, assim como as criaturas sobreviventes do galinheiro, que não viam nada de mais naquilo que acontecia no quintal. "Tudo vale a pena se a ração não for pequena", deviam cacarejar entre si, porque embora fossem galinhas, adoravam a frase de Pessoa.

 

Um mês depois, bateu a murrinha (peste aviária) e dizimou todo o plantel, inclusive meia dúzia de pintinhos. Desconfiou-se – pura calúnia! – de que teria sido praga do guri, inconformado com a falta de compaixão e solidariedade entre as galinhas e com sua própria incapacidade de mudar o que via de errado no quintal de casa. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Recortes peludos

Tão esperada nas bancas quanto a revista Placar, Playboy era “a mais manuseada das revistas brasileiras”, segundo o escritor Humberto Werneck, autor da crônica “Leitores e vedores”. Foi ele, aliás, quem nos anos 1980 sugeriu aos assinantes de Playboy que se autorrotulassem de “vedores”, termo bem mais preciso do que “leitores”. 

A revista apareceu no Brasil em agosto de 1975 com o título Homem. Na época, a censura achou inadequado o nome Playboy por associá-lo a perversão e nudez. Quatro anos mais tarde, nos primeiros sintomas de distensão “lenta, gradual e segura” do penúltimo governo militar, a publicação conseguiu dobrar a censura e levou às bancas um ousado ensaio fotográfico com as playmates de sua versão norte-americana. Durou 40 anos, com 487 edições publicadas.

 

A verdade nua e crua de Playboy  com duplo sentido, claro– é que se via muito e se lia pouco. Na última década do século 20, ainda não havia a vulgaridade das imagens explícitas que hoje circulam nas mídias sociais. Os olhares entorpecidos de testosterona eram saciados por imagens de fotógrafos como J. R. Duran. 

 

Soube de um caso interessante envolvendo a revista, daqueles que as pessoas são capazes de jurar que não aconteceu, mas meu velho amigo Tony, a quem conheço desde que morei no Recife (lá se vão quase 25 anos), não tinha por que mentir para mim. 


Sujeito sério, hoje sessentão, fiel à mulher que só lobo cinzento ou coruja, Tony durante algum tempo foi “vedor” dissimulado de PlayboyE estava seguro de que convenceria Dagmar, sua esposa, baixinha tão sabida quanto desconfiada, de que a qualidade da revista – as matérias, os artigos, a entrevista bem ao estilo de O Pasquim, as charges etc. – justificava plenamente a assinatura que fizera.

 

De família grande, Tony era um pouco mais velho do que Lucão, seu irresistível irmão, também casado, mas que se pudesse escolher teria nascido no Oriente Médio e seria um príncipe devotado de corpo desalmado a três ou quatro mulheres não necessariamente submissas, às quais não deixaria nada faltar. Exigiria apenas convivência harmoniosa entre elas, dado que nunca soube lidar com conflito conjugal. 

 

O jeito de ser de Lucão provocava calafrios sem febre em suas cunhadas. Aos sábados então, quando bebia umas cervejas em família e desandava a repetir que seu "coração é grande e cabe mais de uma”, elas surtavam temendo contágio fraterno ou que a carga genética eventualmente se manifestasse nos respectivos maridos.

 

Apesar de tudo, o indômito Lucão era tido como bom filho, irmão, pai e tio, mas tão devasso que, ao ver o boom do fluxo turístico no Nordeste nos anos 1980, teve a desfaçatez de, à moda “Herva Doce” (com "h"mesmo!), publicar anúncio na Folha de São Paulo e no Correio Braziliense nessa linha“Moreno alto, bonito e sensual, posso ajudá-la na solução de seus problemas. Conheça as belezas de nosso paraíso com metade da despesa por minha conta. Cartas para caixa postal...” 

 

E pior que deu certo por algum tempo. Óbvio que isso ocorreu antes que o primeiro caso da epidemia de Aids fosse identificado numa sociedade que ainda relegava à mulher papel coadjuvante, voltado à gestão de um nada doce lar e à criação de filhos. Os movimentos mais vigorosos no sentido de mexer nesse cenário ainda eram incipientes. 

 


Em um domingo à noite, Lucão, de ressaca e pressionado pela filhota – cuja professora de um famoso colégio na capital pernambucana encomendara o dever de casa de fixar no caderno de desenho a imagem de um animal invertebrado –, recortou e colou uma caranguejeira peluda de origem cientificamente desconhecida na fauna tropical, porém comum nas páginas de Playboy

Antes de ir à escola no dia seguinte, a filha de Lucão, em sua inocência, toda orgulhosa acha de compartilhar com o tio Tony a "ajuda" que recebera do papai e que deveria entregar em mãos à professora. Passado o susto de arrepiar os pelos, o tio pôde auxiliar a sobrinha a refazer a tarefa com a imagem alternativa de um invertebrado e belo ouriço do mar.  

Pois foi justamente naquela semana que Dagmar, quando soube da molecagem do cunhado, decidiu recortar e jogar na lixeira todas as imagens com tarântulas peludas da edição mensal de Playboy que o carteiro entregara em sua casa

– Melhor que as crianças não vejam essas fotos, já que aquilo que interessa mesmo é o restante da revista, não é meu amor?”

– Claro... – admitiu Tony. 

 

"Mulher pequena é tinhosa, ainda mais com uma tesoura na mão", diria mais tarde meu velho amigo ao me contar o caso. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

E aí, Neguinho, sumido, hein?!

Na coleção O Mundo da Criança que havia na estante de livros lá de casa, minha irmã e eu, aos dez e nove anos de idade, um dia descobrimos e ficamos impressionados com uma lenda afro-cristã cuja origem remonta ao fim do século XIX. Foi muito popular entre os abolicionistas gaúchos que lutaram pelo fim do vexame da escravidão numa terra de dimensões continentais.

Dizia-se que um fazendeiro cruel com seus escravos e peões mandou que um menino negro vigiasse no pasto alguns cavalos que acabara de comprar. De tardezinha, faltava um animal. O patrão então pegou um chicote e deu uma surra tão dura na criança que feriu feio suas costas. E arrematou aos gritos: "Vai ter que achar o cavalo agora ou vai ver o que acontece!". 


Negrinho do Pastoreio


O menino então saiu à procura do animal. Algum tempo depois, encontrou-o num pasto nativo, laçou-o, mas a corda arrebentou e o bicho desapareceu de novo no meio da escuridão. De volta à fazenda, o dono, mais truculento que antes, bateu de novo na criança e a amarrou sobre um formigueiro. Quando amanheceu, ela estava gelada, com os olhos opacos, inerte. 

Mas, de repente, lá estava de pé, com a pele lisinha feito louça, sem as marcas das chibatadas que sofrera no dia anterior. À sua direita, a Virgem Maria; à esquerda, o cavalo fujão. O fazendeiro ajoelha-se arrependido, o menino se faz de mouco, beija a mão da santa e vai-se embora. 


Daquele dia em diante, andarilhos, bêbados, loucos espalharam pela região terem visto passar uma tropa de potros tocada por um moleque num cavalo de pelo castanho, crinas pretas e longas. Diziam que, se alguém perdesse alguma coisa, à noite o menino a encontrava, mas só devolvia a quem lhe trouxesse uma vela acesa, cuja luz levaria ao altar da santa que o livrara da escravidão. Nascia a lenda do Negrinho do Pastoreio.

Pois bem. Toda vez que perdíamos algum brinquedo, livro, caderno ou lápis, tanto minha irmã quanto eu acendíamos uma vela sobre a mesa da sala de jantar e implorávamos pela ajuda do Negrinho. E, verdade seja dita, ele nunca vacilou conosco, apesar da distância que separava o Sertão paraibano e o Pampa gaúcho dos anos 1960.

 

Havia, certamente, alguma influência daquilo que nosso pai escutava em sua radiola Teleunião, na voz de uma gauchinha arengueira que encantou uma das plateias mais exigentes do mundo  primeira brasileira a pisar no palco do Teatro Olympia de Paris – com a obra-prima de Edu Lobo e Guarnieri, ligada à história dos escravos e seus descendentes entre nós:

“Upa neguinho na estrada

Upa pra lá e pra cá

Vixi, que coisa mais linda

Upa neguinho começando a andar

Começando a andar, começando a andar

E já começa a apanhar...”

 

Não posso falar por minha irmã, mas, por mim, com o esfriar da inocência, fui deixando de lado aquelas promessas ingênuas e passei a aceitar melhor o dualismo da vida com seus planaltos e planícies, sua gaveta de achados e perdidos, depois que aprendi a mais básica das lições: uns dias chove; noutros, bate o sol.

 

Perdi muita coisa de lá para cá. Claro que não me refiro ao sumiço de amigos passageiros, à partida dos filhos da mesa em que almoçávamos ou à fita de chegada de uma corrida de obstáculos profissionais de mais de quatro décadas. Chega uma hora em que a gente se dá conta de que sofrer com o inevitável é mais uma perda: de tempo.  

 

Se aqui na terra ainda estivessem jogando futebol como antes. Mas não vejo novos pelés, tostões, rivellinos, zicos, falcões, reinaldos, romários ou ronaldos. Também já não ouço muito samba nem rock’n’roll. Onde em se plantando tudo dava, já não brotam mudas de chicos, claras, elises, paulinhos, rauls, ritas, tons ou vinícius.  

 

A coisa aqui está feia! É muita erva daninha infestando jardins, quintais, florestas e pantanais, inclusive algumas urtigas com suas togas encardidas e amarrotadas. Só o Negrinho do Pastoreio na causa! 

 

Mas não posso nem quero abusar da paciência de meu velho e caro amigo. Ele deve andar pelo pescoço com tantos pedidos. Daqui a pouco vão faltar velas até nas bodegas de ponta de rua desta terra de frustrações continentais.

O peso do sim e o doce da culpa

Ilustração: Uilson Morais (Umor) Durante anos, os ovos carregaram o rótulo de vilões das artérias. Um só — dos grandes, de gema graúda — vin...