Há oito anos viralizou nas redes sociais um vídeo em que o atleta espanhol Ivan Fernandez abriu mão de vencer a prova de cross country de Burlada, em Navarra, mas até hoje é enaltecido por sua honestidade durante o evento. Abel Mutai, atleta queniano, que tinha tudo para ganhar a corrida, parou no lugar errado, achando que alcançara a linha de chegada. Ivan Fernandez, que vinha em segundo lugar, podia ultrapassá-lo e conquistar a prova, mas optou por alertá-lo sobre o vacilo e o incentivou a confirmar a sua vitória. E algo que deveria ser padrão no ser humano acabaria virando notícia.
No começo deste viral e inesquecível 2020, circulou nas redes sociais outro vídeo contendo novo gesto digno de nota, por coincidência envolvendo outro esportista espanhol. Aconteceu durante uma partida de futsal em que o jogador Francisco Solano, do FS Cartagena, ao ver o seu adversário sofrer uma lesão importante numa disputa de bola com ele, optou por não marcar o gol quando já estava diante do goleiro. Chutou a bola para fora da quadra e a vida seguiu adiante.
Nos dois casos, pela rapidez com que escolheram o que fazer diante das circunstâncias, não me pareceu que assim reagiram porque lhes seria mais vantajoso perder do que ganhar com a repercussão do gesto. Ainda que, intimamente, possa ter havido alguma dúvida nesse sentido. Nunca se sabe.
Existem outros vídeos em que atletas internacionais colocam o respeito ao próximo acima da vontade de vencer, algo raro por aqui. Mas já vi muitos lances fora do Brasil em que também se pecou pela falta de ética, como o gol La mano de Dios marcado por Maradona contra a Inglaterra na Copa 86 e a cotovelada de Pelé no rosto do zagueiro uruguaio na Copa 70. São fraudes enaltecidas até hoje por muitos argentinos e brasileiros, inclusive da elite intelectual dos dois países, pela “genialidade” dos protagonistas. Também já vi atletas alemães, franceses, turcos, ingleses, italianos e paraguaios simularem pênaltis, marcarem gols ilegais, cuspirem nos adversários e otras cositas mas.
Sábado passado, no estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, Yuri Alberto foi destaque na vitória do Internacional por 2 a 1 sobre o Botafogo pelo Campeonato Brasileiro. O atacante marcou o gol da vitória aos 24 minutos da etapa final, gerando grande polêmica. Aproveitou-se de um suposto vacilo (gesto no piloto automático) do lateral-direito adversário para interceptar a bola e tocá-la na saída do goleiro botafoguense, desempatando a partida.
De costas, o árbitro não viu o lance e recorreu ao assistente de vídeo para validar o gol. Para os botafoguenses, a intenção de seu jogador era entregar a bola ao goleiro para que cobrasse a falta. É natural o atleta de futebol fazer isso com os pés como fazem com as mãos os de basquete e vôlei. Tanto que, se reiniciasse o jogo com um chute direto ao gol no Internacional, a cobrança seria nula porque executada fora do local da infração. Yuri Alberto, autor do gol, resumiu: “A partir do momento que ele parou a bola e tocou, o jogo tá valendo... Então, eu finalizei e acabei marcando... Para só depois ver o que a arbitragem iria marcar”. Pra fechar, só faltou uma genuflexão dando graças aos céus pela esperteza.
O tal jeitinho brasileiro já foi objeto de toda sorte de estudos psicológicos e sociológicos. Desenvolveu-se nesta terrinha abençoada e bonita por natureza um jeito meio estúpido de ser e de resolver problemas com engenho, safadeza e arte. Dizem que isso seria herança dos períodos de exploração iniciados com os europeus, quando as relações patriarcais substituíram o “ser” pelo “ter”, impondo a astúcia e a embromação para conseguir poder e fortuna.
Com a malandragem entranhada da orelha direita ao dedão do pé esquerdo, cruzando o coração em fatos e omissões, quase todos querem levar vantagem em tudo. Transigem com coisas sérias como sonegar impostos, furar filas (do banco ao aeroporto, passando pela do transplante de órgãos, até a da vacina que está em formação), burlar sinais de trânsito, jogar lixo nas ruas e estradas, ofender minorias, maltratar animais, destruir bens públicos, seguros de que não dará em nada. Ou, se muito, acabará em pizza e Coca-Cola. Diet, para não engordar.
Claro que a sem-vergonhice existe no mundo inteiro! Ainda estão fresquinhos os escândalos históricos envolvendo multinacionais felpudas como Arthur Andersen, Facebook, Lehman Brothers, Nissan, Volkswagen etc.; as mentiras descaradas que Trump com sua halitose espalhou durante o seu mandato, inclusive para justificar a derrota nas últimas eleições norte-americanas, os escândalos que sacudiram o governo do Japão no final do ano passado, entre outros. Na outra ponta, também continuam vivinhas algumas historietas tropicais de garis, faxineiros de banheiros públicos e arrumadoras de quartos de hotéis que encontraram sacolas de dinheiro e devolveram aos donos.
Ao ler Câncer, eu? – Memórias alegres de um medo profundo, Editora Fontenele, obra brilhante de autoria de Sérgio Riede, me chamou à atenção este pequeno trecho por ele transcrito, do escritor russo Dostoievski: “Nas lembranças de cada homem há coisas que ele não revelará para todos, mas apenas para seus amigos. Há outras coisas que ele não revelará mesmo para seus amigos, mas apenas para si próprio, e ainda com a promessa de manter segredo. Finalmente, há algumas coisas que um homem teme revelar até para si mesmo. E qualquer homem honesto acumula um número bem considerável de tais coisas. Quer dizer, quanto mais respeitável é um homem, mais dessas coisas ele tem.”Afinal, quem de nós sempre fez a coisa certa mesmo que ninguém estivesse vendo (ou filmando)? Será que somos diferentes e não fazemos parte da nação do jeitinho? A autocrítica, individual e coletiva, é ponto de partida para estar bem colocado na fita de chegada no novo normal que queremos. Quem de nós nunca foi desonesto que me atire pedras. Sem máscara.