No livro “Cazuza – Só as mães são felizes”, Lucinha Araújo contou que Caetano Veloso subiu ao palco do Canecão, no Rio de Janeiro, em junho de 1983, no lançamento do disco “Uns”, e começou a cantar 'Todo amor que houver nessa vida'.
– Essa música é de nosso filho – ela comentou com o marido, sentado a seu lado.
– Você tá louca? – indagou o pai.
No final, Caetano elogiou Cazuza, dizendo que se tratava do “melhor poeta de sua geração”. Seis meses antes, ficara impressionado ao assistir à apresentação dele liderando o grupo Barão Vermelho, no Circo Voador.
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Caetano (na plateia) assiste ao Barão Vermelho |
– Tem uma pessoa que quer te conhecer – me disse Naná.
– Tudo bem. Vamos lá? – respondi, curioso.
Naná Karabachian é uma empresária responsável pela criação e direção artística de diversos projetos musicais realizados em todo o País. Naquela noite, havíamos acabado de assistir Lulu Santos, interpretando Roberto e Erasmo Carlos no Circuito Cultural Banco do Brasil.
O Circuito foi um dos projetos mais interessantes patrocinados pelo BB nos anos 2011 e 2012. Criado e dirigido pela cineasta e produtora cultural Monique Gardenberg, levou às principais cidades do País grandes intérpretes explorando o repertório de seus compositores preferidos, com parte dos ingressos reservada para clientes especiais do banco.
Mas voltemos a Naná, que me apresentou a Mayra Corrêa Aygadoux, cantora, compositora e instrumentista indicada cinco vezes ao Grammy Latino, provocando-a:
– Diga, Maria Gadú, o que você me disse!
– Tudo bem com você? – tentei quebrar o gelo.
– Tudo... – disse a artista de um jeito tímido, inesperado até – Ano que vem, se o projeto for adiante, eu queria muito participar.
– Quem você imagina homenagear?
– Renato Russo, Cazuza... Cazuza é mais... Tem o lado da rebeldia e tem coisas muito doces...
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Magdala, Naná, Monique e Maria Gadú |
Quando Cazuza pegou um trem para as estrelas, em 1990, aos 32 anos, Maria Gadú tinha apenas três. Fiquei então sabendo que, mesmo sem vê-lo de perto, as imagens disponíveis na Internet, os discos e DVDs, contendo mais de duas centenas de canções – sobretudo as compostas nos oito anos de carreira-solo, após ter deixado o Barão Vermelho – mexeram com o coração da menina paulistana.
Grande revelação de 2009, ano em que lançou seu primeiro álbum, Maria Gadú já havia gravado dois álbuns de estúdio (um deles, por coincidência, com Caetano Veloso) em apenas quatro anos de carreira.
No circuito que encantou plateias em várias cidades, Maria Bethânia deu voz a Chico Buarque de forma esplêndida, Sandy revisitou a obra de Michael Jackson e Lulu Santos ofereceu versão mais dançante de parte do repertório da dupla Roberto e Erasmo Carlos.
Com novo nome (BB Covers), voltaria à cena em 2013. Um quinteto de figurões "carimbados" do rock nacional, formado por Dado Villa-Lobos (Legião Urbana), João Barone (Os Paralamas do Sucesso), Leoni (Kid Abelha), Toni Platão e pelo produtor musical Liminha (ex-Mutantes), faria uma homenagem aos Beatles. Zeca Baleiro celebraria a obra de Zé Ramalho e Maria Gadú cantaria algumas das mais belas letras de Cazuza.
A temporada fecharia no primeiro domingo de dezembro de 2013, no teatro Vivo Rio, por acaso o mesmo local onde, para mim, tudo começara.
Numa triste coincidência, Maria Gadú sobe ao palco para celebrar a obra de Cazuza no dia seguinte à morte de João Araújo, pai do poeta-cantor.
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Cazuza, Lucinha e Joao Araújo |
João Araújo foi um dos executivos mais importantes da indústria fonográfica. Durante 40 anos, esteve à frente da gravadora Som Livre, das Organizações Globo. Com passagem por Copacabana Discos, Odeon (EMI) e Philips (Universal), era tido como grande descobridor de talentos. Tanto que lançou nada menos que Nara Leão, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Lulu Santos, Novos Baianos e, meio que a contragosto (teve que se render aos fatos), o seu próprio filho, Cazuza, com o Barão Vermelho.
De repente, canta 'Codinome beija-flor', e lembra que "...a emoção acabou/ que coincidência é o amor/ a nossa música nunca mais tocou..."
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Maria Gadú: BB Covers, Rio, dezembro/2013 |
Ela, que também fazia parte do time da Som Livre, ao falar de coincidência e de amor, oferece ao pai o tributo que prestava ao filho: “Quero dedicar este show a João. Se ele não tivesse entrado em minha vida, tudo poderia ter sido diferente”.
Sei que "o império mais poderoso e fatal que existe é o das circunstâncias", como dizia o Marquês de Maricá (1773–1848). Sei também que é difícil para muita gente acreditar em coincidência, mas para mim é mais difícil acreditar que ela não existe. Faz parte do show.