Eu até me acho um sujeito decente e quase todo mundo também se enxerga assim. Reconheço, porém, que tenho certa facilidade em despertar antipatias: às vezes amanheço de mau humor, guardo fisionomias mas esqueço nomes, sou meio desatento (sobretudo quando estou na rua, “rascunhando” um texto na cabeça, sem lápis nem papel, e olho, mas não vejo, quem passa por mim).
Aconteceu há poucos meses, na área de embarque do aeroporto de Maceió. Vi um senhor de certa idade, nem alto nem baixo, barrigudo, cabelos de algodão, rosto largo. Lembrava um famoso médium dos anos 70, chamado Zé Arigó, mas com um bigodinho mais fino. Senti que o conhecia de algum lugar. Ele também deu sinais de me reconhecer. Parei para lhe cumprimentar, trocamos algumas palavras, enquanto eu me esforçava para localizá-lo nos desvãos da mente.
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"Lembrava... Zé Arigó" |
Fui ficando angustiado. Todo mundo que já viveu esse constrangimento sabe a que me refiro. Para disfarçar, tratei-o da maneira mais simpática que pude: “Que bom revê-lo, o senhor tá muito bem, corado...” Isso que a gente diz porque é como oferecer água ou chá de camomila: não faz mal a ninguém.
Depois que nos afastamos é que me ocorreu que talvez ele é que não tivesse me reconhecido. Afinal, o encontro se deu em Maceió, mas já morei no Recife, em Salvador e Brasília. E só me dissera palavras mais ou menos vagas, não me lembrava de que ele tivesse pronunciado meu nome.
Mais tarde, eu ainda não recordara o nome dele, mas me lembrei de alguns casos que testemunhei ou me contaram.
“Adentra ao tapete de madeira desta casa esta lenda viva do Sertão, este indivíduo competente… O relógio marca: três da tarde desta sexta-feira!” – assim narrou meu chefe, a imitar um lendário locutor esportivo, descrevendo a chegada, à superintendência do Banco do Brasil, daquele gerente que trabalhava no interior, mas que todo fim de semana vinha à capital, onde residiam esposa e filhos.
A algazarra dos que presenciaram a gozação não inibiu o visitante. Com um risinho maroto e sem deixar a bola quicar, ele emendou: "Devo ter nascido com cara de “priquito”... Todo mundo aqui gosta de mim!"
Quando trabalhava como caixa, no início da carreira, ao espirrar de forma mais produtiva e espalhafatosa, ele teria ouvido um cochicho entre duas mulheres que aguardavam atendimento na fila: "Esses homens são uns frouxos! Uma gripezinha de nada já derruba. Qualquer dor de cabeça acaba com a raça deles. Queria ver aguentar a dor do parto!"
Ele prontamente interveio defendendo a classe, com pleno conhecimento de causa, imagina-se: "Como é que é?! Quem diz isso nunca prendeu um ovo no cabeçote de uma cangalha (artefato de madeira, acolchoado, no lombo de burro ou cavalo, para pendurar cargas de ambos os lados)!"
Se era espirituoso e muito inteligente, era também daqueles pessimistas ao cubo, revestidos com várias camadas de ceticismo, fonte primária de seu humor ácido.
A fama de pessimista ganhou musculatura quando, apesar do histórico de boas notas na universidade, ele desistiu do curso de Engenharia sob argumento pra lá de inusitado: "No dia em que me formar, a produção mundial de cimento vai entrar em colapso!"
Mais adiante, nos estertores dos anos 70, quando o Planeta vivia a expectativa da queda, em hora e lugar incertos, da “Skylab”, primeira estação orbital da NASA, confessou sua apreensão a alguns colegas de trabalho: "Sou tão azarado que é capaz dessa porra cair no quintal lá de casa!"
Vai ver, lia Saramago, para quem “os únicos interessados em mudar o mundo são os pessimistas, porque os otimistas estão encantados com o que há”. Ou Millôr, que registrou que “é melhor ser pessimista do que otimista, porque o pessimista fica feliz quando acerta e quando erra”.
Outro sinal de seu desencanto teria ocorrido numa semana em que, mergulhado até o pescoço no saldo devedor do cheque especial, contava nos dedos os dias que faltavam para sacar o salário: "Todo mundo que conheço já recebeu ou vai receber herança... Menos eu!"
No olho desse furacão financeiro, dizem que convenceu a esposa a cortar o orçamento doméstico de um jeito bem prático:
– Mulher, você concorda que ir ao supermercado de oito em oito dias é a mesma coisa que fazer feira pra uma semana?
– É… Basta apertar um tiquinho…
– Então… Agora, de dois em dois meses, a gente vai ganhar uma feira...
Todos esses casos me vêm à cabeça, menos o nome do protagonista. Resolvo então pedir ajuda a um velho amigo, que me dá a notícia de que Santana (como pude esquecer o nome dele?) nos deixou há mais de 10 anos. Que azar, não?
Portanto, não o encontrei há poucos meses no aeroporto de Maceió. Ele agora desfila de alpercatas apenas na esteira de minha memória, como naquelas tardes de sexta-feira em que gozava o vago conforto de estar vivo.