quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Adeus, "Charles Brau"

Duas semanas depois da publicação da crônica Carpenters em Alagoas (reveja aqui), onde falei sobre Braulino, meu amigo “Charles Brau”, ele partiu levando consigo o punhado de histórias e sonhos que deveria compartilhar com seus bisnetos quando eles crescessem. 



Já vinha sofrendo com um quadro gravíssimo da chamada síndrome hepatopulmonar 
 doença no fígado que provoca dilatações nos vasos sanguíneos dos pulmões —, o que lhe obrigava a usar oxigênio quase o dia inteiro. 

O transplante de fígado seria a única solução para o problema, não fossem seus 76 anos de idade. Apareceram feridas nas costas que acabaram virando porta de entrada para bactérias, resultando numa infecção generalizada.

Um pesado coquetel de antibióticos ainda lhe permitiu sair uns poucos dias da UTI. Recuperava-se na medida do possível quando foram descobertos alguns cálculos renais, parcialmente retirados. Mas passou mal no dia seguinte, voltou à terapia intensiva com sinais de nova infecção e de lá não saiu com vida.

Nem teve tempo de ler o texto de Luís André, seu filho caçula, escrito justamente no dia da retirada dos cálculos renais:

“(...) O que esperar do tempo? Esperar 90 a 94 anos para despedir-se? Seria bom... Esperar que em 15 dias a felicidade volte a habitar nosso interior, já que há dois anos ela vem diminuindo aos poucos?
São 76 anos de amor, dedicados a sua família e poucos amigos, mas todos fiéis e retos, assim como ele.


Esperar que uma vida de bons exemplos, retidão e broncas merecidas retornem? Não sei o que esperar.
Um momento de desilusão... de tristeza profunda. Na verdade, um silêncio que grita para que, se pudesse, Deus desse um pouco de minha saúde para ele. Se pudesse, lhe fizesse o que ele sempre fez comigo... netos e bisnetos.


Nada de voltar no tempo. Eu queria mesmo é que o tempo parasse lá atrás, quando tudo estava dando certo para meus pais e para mim. Assim..., aproveitaria mais sua presença até certo ponto militar — mesmo sendo professor e bancário —, a transbordar de cuidados e de amor por mim, por todos nós.

Um tempo que nos traiu, nos levou a crer num possível Alzheimer, pela saúde e pelo porte físico avantajado de seus 1,90 metros de altura e 110 kg, hoje reduzidos a míseros 80kg. 

Nunca imaginei o que estamos passando. Uma dor seca, diferente da dor de coluna que me retorcia na cama ou na minha ex-cadeira de dentista. Uma dor seca que não há remédio que diminua sua intensidade... este abismo dentro de mim. Uma dor "molhada", trata-se; mas a dor seca, ... essa nos mata.

Meu herói está combalido, suas forças reduzidas não o deixam pular para fora de uma simples cama de hospital. Na realidade, suas forças já vinham sendo drenadas por uma síndrome rara.


Nunca, jamais entenderei os planos de Deus, mas os aceitarei (...)”

Naqueles dias de angústia, incerteza e esperança, Dayse recebeu do marido um bilhete curto com orientações bem claras e objetivas:

“Em caso de morte: 
    1. Que meu corpo seja cremado e as cinzas, se forem entregues, pouco importa onde serão jogadas.
    2. Que no ato crematório, se possível, sejam executadas duas músicas:

a) Adagio for strings, de Samuel Barber. (ouça aqui)

b) Requiém – Lacrimosa, de Mozart. (ouça aqui)

Onde você estiver, meu amigo “Charles Brau”, quando encontrar o poeta Mário Quintana, lembre-o de que ainda faz todo sentido o que ele andou pregando por aqui no mundo dos vivos: “uma vida não basta ser vivida; ela precisa ser sonhada...”

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Onde anda Ana Maria?

Voltava ao Sertão paraibano às vésperas do São João de 2002. Havia morado na cidade de Patos a partir de 1961, aos três anos de idade, até mudar para Alagoas sete anos depois, seguindo meu pai em sua jornada nômade de funcionário do Banco do Brasil.

Ele, que nos anos 60 trabalhara na extinta Creai (Carteira de crédito agrícola e industrial) da agência daquele município, seria homenageado pela AABB, cuja diretoria resolveu batizar o ginásio de esportes com seu nome: Agostinho Torres da Rocha. 

Eu teria assim a chance de rever o Colégio Cristo Rei, onde aprendi a ler e a escrever; a rua Bossuet Wanderley, os armazéns da Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro) com seus fardos de algodão, próximos à estação ferroviária;  o campinho de futebol da Cica (Cia. Industrial, Comercial e Agrícola), à margem do Rio Espinharas. 


Ao chegar lá, vi que o colégio continua no mesmo local, bem menor, é verdade, do que aquele que guardava na memória. Mas os colegas de infância da rua Bossuet Wanderley sumiram todos. Disseram-me até que alguns se envolveram com drogas, arruaças, e tiveram fim trágico. 

Não encontrei também meus irmãos a fazerem algazarra no quintal ou na calçada da casa onde morávamos. Nem armazéns de algodão ou campinho de futebol. "As coisas mudam no devagar depressa dos tempos" (Guimarães Rosa).

Apesar do calor, soprava um vento morno que deve ter jogado um cisco em meu olho na hora em que ajudava a descerrar a placa de inauguração com o nome dele gravado. Saudade bate, mas a gente disfarça, pensa no que tem por fazer e finge que passa. 



Em breve ritual, fez-se um comovido silêncio entre pessoas que conviveram com aquele trabalhador humilde, calado, de sorriso raro, que nas horas de folga era visto sempre ao lado da esposa e do cacho de filhos. Tinha raros amigos e cabiam todos em sua Rural Willys, mas não gostava de botecos.

O dia passou depressa. Estávamos eu e Magdala, minha mulher, com Sérgio Riede, então presidente da Fenabb (Federação Nacional de AABB). Não havia vagas nos hotéis da cidade, lotados por conta das festas juninas. Fomos então acomodados pelos anfitriões numa casa grande e confortável, com direito a canjica, pamonha, ventiladores e redes no alpendre. 

Caminhamos um bocado após o jantar até o arraial na praça Getúlio Vargas, defronte do Hotel JK, para assistir a apresentações juninas. Exaustos, no entanto, retornamos cedo, por volta das dez da noite. Viajaríamos bem cedinho.

Havia um boteco colado à casa em que iríamos pernoitar. Na porta, um automóvel — bem diferente da velha Rural Willys — com o som nas alturas desde as cinco da tarde. E assim permaneceu até as sete da manhã do dia seguinte, tocando sem parar "Ana Maria" (clique e ouça), carro-chefe do CD "Xote Pé-de-Serra", de Santanna, o cantador. 

“(...) Eu dei um beijo,
Eu dei um beijo,
Eu beijei Ana Maria.
Por causa disso
Eu quase entrava numa fria.

Ana Maria tinha dono e eu não sabia.
Mas quem diria? pra bem dizer
Foi sem querer, mas terminou em confusão.
A solução foi confundir o coração.
Daí então fiquei na vida de ilusão.

Agora adeus, Ana Maria,
Deus te guarde para o amor.
No céu, Santa Maria.
Aqui na terra, o seu amor (...)"

A canção era linda, digna de ícones da música nordestina como Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Nando Cordel, Petrúcio Amorim ou Sivuca. Mas depois de ouvi-la horas a fio, sem conseguir dormir profundamente por 30 minutos sequer, nem tampouco saber onde andava a tal Ana Maria para matar o desejo de um bêbado encharcado de cerveja, aquilo virou motivo de boas gargalhadas entre nós.

Quase 18 anos depois, sempre que nos encontramos — eu e Sérgio Riede , um se antecipa e quer saber do outro: e aí, amigo, saudades de Ana Maria? 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O coronel que gostava de flores

Às seis da manhã, pontualmente, lá estava ele no portão de sua casa a me esperar. Tinha nas mãos uma pequena flor branca:
— O senhor sabe que flor é esta?
— Não. Não conheço... 
— É um bugarim. Toda manhã, bem cedinho, venho aqui ao jardim colher um para oferecer à minha mulher... Seja bem-vindo, vamos entrar. 


Para mim, que mal distinguia uma rosa de uma orquídea ou de um girassol, o inusitado era ver a delicadeza com que o velho empresário e político dava a entender que seduzia a sua mulher. E para não dizer que não falei de flores, comentei apenas que o cheiro adocicado do bugarim (ou jasmim) talvez explicasse por que ele estava presente em tantos jardins no Sertão pernambucano. 

Petrolina é conhecida como a capital da “Califórnia” brasileira, o Vale do Rio São Francisco. Foi em torno do Velho Chico — apelido carinhoso de um dos maiores rios do País  que a cidade se desenvolveu e passou a produzir frutas em propriedades rurais irrigadas, com destaque para uva, manga, banana, coco-da-baía e goiaba.

Na noite anterior, após uma reunião com lideranças de classe tentando melhorar a relação estremecida entre produtores rurais, urbanos e o Banco do Brasil, fui abordado na saída do recinto:
— Eu gostaria de recebê-lo em minha casa para o café-da-manhã...
— Talvez não dê desta vez... Preciso viajar bem cedinho pro Recife.
— Você vai fazer uma desfeita dessas comigo?
— Não fale assim! A não ser que a gente se encontre às seis da manhã — ponderei, querendo desfazer o mal-estar e, a bem da verdade, contando que ele não acordaria tão cedo.
— Estarei esperando o senhor às seis.  Aqui está meu endereço — arrematou, com um cartão de visitas.

Poderia ser qualquer um dos filhos de Clementino de Souza Coelho (1885 — 1951), o mítico coronel Quelê, latifundiário e industrial tido como um dos responsáveis pela industrialização da região e um de seus maiores chefes políticos no século passado. 

Assim como outras oligarquias brasileiras, a família  Coelho, alinhada ao regime militar instaurado no país em 1964 e que durou até 1985, migrou dos negócios para a vida pública. Teve como expoentes cinco dos 13 filhos do coronel Quelê: Nilo, José, Geraldo, Paulo e Osvaldo. Nome não vem ao caso, mas foi um deles que me recebeu naquele dia. 

A mesa já estava posta. O anfitrião apresentou-me sua esposa enquanto a ela oferecia o pequeno bugarim que havia colhido.  Sentou-se na cabeceira e lhe serviram macaxeira com linguiça cuja gordura logo escorria no canto da boca e ameaçava, além da gravata, o paletó engomado de linho branco. Em seguida, pode parecer exagero meu, encarou uma tigela de coalhada, meia pamonha, uma tapioca, um pedaço de cuscuz, uma manga em cubinhos, uma fatia de bolo e uma caneca de café preto, onde pingou algumas gotinhas de adoçante  para manter o peso sob controle, esclareceu.

Ainda na mesa, com o suor escorrendo pela cara gorda e vermelha, sacou da algibeira o isqueiro e acendeu um cigarro que tragava com sofreguidão, esfumaçando o ambiente. Parecia cenário daqueles filmes antigos de Hollywood, que manteve ao longo de décadas contratos com a indústria de tabaco para inclusão de imagens em que os atores e atrizes fumassem.

Não demorou muito e foi direto ao ponto que o levou a me convidar na noite anterior: perguntou o porquê de eu não ter dado a devida atenção ao pedido que me fizera por telefone duas semanas antes, no sentido de refinanciar dívidas vencidas de um produtor rural de quem era compadre e avalista.

Esclareci que deveria haver algum engano, pois pedira para examinar o caso e, pessoalmente, havia comunicado o desfecho ao devedor, dizendo-o que não seria possível a renegociação da dívida na forma por ele pretendida. 

O anfitrião esfregou as mãos e contra-argumentou: 
— O “não” não é resposta. Só o “sim” constrói, ajuda quem precisa. O “sim” é como o dia; o “não” é como a noite, escurece tudo. Até as flores perdem a graça... 
— Entendo o que o senhor quer dizer, mas lá no banco a gente lida com o “sim”, com o “não” e com o “depende”. Se o rapaz quiser mesmo negociar de um jeito que fique bom para todo mundo... 
— Mas sei de alguns casos aqui na região em que vocês deram desconto no pagamento. Por que meu compadre, que tá passando um sufoco medonho, não merece?
— Banco é tudo igual, amigo. Não abre mão de um centavo...
— Como assim? 
— Só admite desconto quando não tem mais como receber todo o dinheiro que emprestou, inclusive os juros. Nem que tenha que recorrer à Justiça, se o devedor e o avalista possuírem bens.

E passamos a conversar sobre outros assuntos como o aumento das exportações de manga para os mercados asiáticos, a qualidade do vinho que já estava sendo produzido na "Califórnia" brasileira etc. 

Na despedida, foi gentil e pragmático comigo:
— Quero agradecer muito sua visita a nossa Petrolina. Pode deixar que vou convencer o compadre a melhorar a proposta. Onde já se viu achar que o banco vai dar desconto numa dívida avalizada por mim?

Tanto ele quanto os irmãos aqui citados já não se encontram neste mundo. Se a dívida foi paga, refinanciada ou seguiu para cobrança judicial, não sei dizer. Fui trabalhar na Bahia pouco tempo depois, em maio de 1999. 

Desde então, toda vez que vejo um bugarim branco ou alguém usando adoçante no café para controlar o peso, lembro-me do coronel que gostava de flores.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

"Carpenters" em Alagoas

Muitos brasileiros nascidos no Sul/Sudeste migraram para o Nordeste nos anos 70/80 em busca de oportunidades de ascensão profissional.  Além de coragem e esperança, traziam consigo o medo de encontrar a paisagem árida da caatinga com carcaças de seres derrotados pela fome e pela sede, como nos cenários espelhados nas obras clássicas Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892  1953), e Retirantes, de Cândido Portinari (1903  1962).

Com Braulino Lansac não seria diferente. Nascido em Araçatuba, polo universitário e gastronômico do Nororeste paulista, de economia bastante diversificada, ele teve uma grata surpresa ao chegar para trabalhar na pequena Anadia, na Zona da Mata alagoana, dando de cara com o horizonte verde dos canaviais em ponto de corte para a safra de açúcar e álcool da região. 

Viu também que não lhe pesavam quase nada os 90 km que separavam Anadia das praias mornas e dos coqueirais do Litoral alagoano. Aquele seria o seu destino a partir de então, todo fim-de-semana, com Dayse, sua mulher, e os filhos.

Sentia-se bem. Mesmo abrindo mão do sonho de ser professor universitário de Educação Física  além de ex-atleta amador de basquete, apaixonou-se pela “área” nos Jogos Olímpicos do Canadá 1976, que assistiu de perto —,  ficou feliz com a carinhosa recepção dos moradores da pequena cidade, o clima amistoso de trabalho e a perspectiva de crescimento na carreira profissional. 

Ele me disse outro dia que, ao retornar de Maceió no final de uma tarde de domingo, retirava “a tralha de praia” da velha Belina na porta de casa quando ouviu ao longe “Solitaire” (clique e ouça), canção de que mais gostava no repertório da dupla norte-americana Carpenters. Chegou a comentar com Dayse: “Puxa, alguém ouvindo Carpenters em Anadia? Quanto bom gosto, hein?!”


Carpenters foi uma dupla de New Haven, Connecticut, composta pelos irmãos Karen e Richard Carpenter, que fez muito sucesso com seu estilo musical soft, bem diferente do hard rock típico das bandas dos anos 70. Do seu modo leve de ser, em 14 anos a dupla vendeu quase 100 milhões de discos pelo mundo afora. A carreira chegou ao fim com a morte prematura de Karen no começo de 1983, aos 33 anos, vítima de parada cardíaca resultante de complicações de uma anorexia nervosa.   

Mas Braulino, "meu amigo Charles Brau"  tratamento carinhoso que lhe dou desde que passamos a trabalhar juntos nos anos 80, numa  alusão tola à canção Charlie Brown, de Benito di Paula    continuava a descarregar sua Belina. De repente, uma nova música no ar, mais outra, todas dos Carpenters

Ele conhecia aquele  disco de cor e salteado e achava pouco provável existir mais de um vinil em Anadia. Mas, de onde estaria vindo aquele som? Logo percebeu que os acordes saíam da cela da cadeia pública, que ficava defronte a sua casa. 

Luís André, seu filho mais novo, correu até lá, aproximou-se das grades e perguntou ao detento que, em êxtase, curtia aquelas músicas: “Que disco é este?” Mesmo assustado com o flagrante, o rapaz não mentiu: “É de seu pai... Maria me emprestou para que eu ouvisse no fim-de-semana. Diga nada não pra ele, senão vai mandar a moça embora...” 

Quando soube do que aconteceu, Braulino ficou bastante aborrecido com a ousadia da empregada doméstica em mexer em seus discos. Nem ele mesmo correria o risco de emprestar a alguém um de seus elepês favoritos, que poderia retornar danificado por uma agulha desgastada de uma vitrola qualquer.

Mas sempre teve o coração maior do que o corpanzil de quase 1,90 metros de altura.  Acabou relevando o ocorrido e perdoou Maria. Na época, já  estava acostumando com o jeito solidário de ser do nordestino, sobretudo do interior, que sabe compartilhar alegria e tristeza, saúde e doença, fartura e escassez. Afinal, dizia ele, “...já éramos íntimos dos policiais e dos presos há algum tempo”. 

A intimidade, nesse caso,  tinha explicação de cinema (ou de tevê): toda noite, na hora do Jornal Nacional, Braulino aumentava o volume do aparelho e deixava abertas as duas lâminas da porta da frente da casa  para que os detentos, empoleirados nas grades, assistissem a Cid Moreira e Sérgio Chapelin e, em seguida, à novela da oito. "O pior cárcere não é o que aprisiona o corpo, mas o que asfixia a mente e algema a emoção" (Augusto Cury).  

Em contrapartida, enquanto passava o dia fora trabalhando, sua família e sua morada estavam muito bem protegidas, tanto pelos policiais como pelo olhar cuidadoso dos encarcerados. A troca era justa.


Braulino, meu amigo "Charles Brau", nunca mais deixaria o Nordeste. Depois que se aposentou, há 25 anos, escolheu a Bahia para viver o resto da vida, onde agora curte seus primeiros bisnetos. Deve ter um punhado dessas histórias para contar quando eles crescerem. 

domingo, 26 de janeiro de 2020

O velho, o menino e o livro

Não sei o que se passava pela cabeça da criança que parou, olhou e me escutou dedicar a seus pais um exemplar do livro Só Eu Sei, quando do  lançamento em Brasília, sexta-feira, 17.

Imagem: Débora Marinho
Talvez imagine que sou um escritor de verdade, capaz de escrever fábulas daquelas que ouviu de seus pais antes de dormir e que agora lê para o irmão caçula.

Para uma criança, fábulas são muito mais do que a verdade. Não porque contam que fantasmas, bruxas e monstros existem, mas porque mostram que eles podem ser vencidos.

Não sei o que se passava por sua cabeça ao ver o título do livro: Só Eu Sei. A gente nunca sabe de tudo nessa vida. Por isso mesmo, nem deve levá-la tão a sério. 


Na sua inocente curiosidade, talvez já pense como Bertrand Russel (1872 – 1970), para quem havia “dois motivos para ler um livro: um, é o prazer em lê-lo; o outro, a possibilidade de melhorá-lo".

Mas sei o que se passou por minha cabeça ao ver aquela imagem pela primeira vez. Tenho um amigo que diz que escritor e fotógrafo se utilizam das mesmas ferramentas, mas enquanto um descreve uma cena com meia dúzia de palavras o outro descreve meia dúzia de cenas com uma imagem.

A imagem que abre este texto, quem sabe, revela o possível nascimento de um escritor de verdade. Nada é tão nosso quanto nossos sonhos de criança. "O que é um adulto? Uma criança de idade", dizia Simone de Beauvoir (1908  1986).


Se for assim, só eu sei como me fará bem contribuir para que Rafael – neto de meu irmão Agostinho e filho de meu sobrinho-afilhado Michel – ame livros acima de todas as coisas. 


"Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante", dizia Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1986). A imagem de Rafael me dá a ilusão de que aquele pode ser um pouco mais útil.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Roteiro de viagem

Existem cartilhas e cartilhas. Umas surgem nos primeiros anos de nossas vidas, a revelar-nos os segredos da arte de ler, escrever, somar, multiplicar e dividir. Outras, como Roteiro de Viagem, nascem bem mais tarde. São como frascos de vivências a cruzarem o nosso caminho. É preciso estar atento para não perder a chance de descobri-los, admirá-los e, mais que tudo, beber de uma fonte de reflexões que traduzem a essência do mundo corporativo. 

Era uma cartilha simples que eu gostaria de ter recebido de meu pai ou de meu sogro lá pelos idos de 1977, quando retomei minha carreira no Banco do Brasil após o período como menor estagiário para serviços gerais. Não que trouxesse algo inovador ou o segredo definitivo da arte do bem-estar pessoal e profissional, mas porque continha em suas páginas o testemunho sábio de gente que estava escrevendo com tintas de paixão a história de uma instituição bicentenária.

Corria julho de 2005. A rede de agências vinculada à superintendência do Distrito Federal possuía 70% de seu quadro (2.300 funcionários) com menos de quatro anos de experiência, a lidar com consumidores cada vez mais exigentes, detalhistas e instruídos sobre seus direitos. Havia uma explicação para tantos jovens: a elevada rotatividade decorrente do fato de a sede da direção geral do banco ser em Brasília e preencher suas vagas “pescando” na rede. 

Para acelerar a maturidade daquela molecada e auxiliá-la a conhecer melhor o caldo de cultura de que era feita a organização, inspirei-me numa experiência realizada no Paraná três anos antes, por iniciativa de Vanderlei Engels, do centro de formação regional liderado pela saudosa Marlene Viero (Kuki):  disseminar conselhos de pessoas que haviam escrito a história da empresa naquele estado.

Claro que cada um tinha seu jeito próprio de lidar com o trabalho e não havia uma pedra filosofal ou uma fórmula mágica para alguém ser bem-sucedido profissionalmente. Decidi então entrevistar e, no passo seguinte, coligir respostas para duas perguntas simples, feitas a meia centena de dirigentes e técnicos da empresa
1. O que foi determinante para que você pudesse construir uma carreira vitoriosa?
2. Que conselho daria para que um novo funcionário consiga construir uma carreira bem-sucedida?

Antônio Sérgio Riede, na época gerente executivo na diretoria de Relações com Funcionários e Responsabilidade Socioambiental, disse: “(...) É importante ter coragem para divergir e sabedoria para entender que a divergência de ideias não significa rejeição às pessoas — e isso vale nos dois sentidos, de você e para você... Nunca ‘terceirize’ a culpa quando há espaço para você fazer alguma coisa... Não tenha vergonha de ensinar, nem falsa modéstia. Nunca se confunda com seu cargo quando ele for importante. Nunca se esconda na sua função quando ela for de subordinação... Enfim, esteja sempre presente. Participe, arrisque-se, peça desculpas quando necessário, reformule ideias e propostas quando julgar sinceramente que é o mais recomendado. Peça ajuda, ofereça-se para trabalhar. E, se conseguir a mágica, faça isso com humildade e altivez. Depois, se conseguir a fórmula, me conte!”

Já Francicarlos da Silva Diniz, então analista sênior na diretoria de Reestruturação de Ativos Operacionais, recomendou:  “(...) Busque a especialização. Embora seja importante ter uma visão geral de como funciona o banco, é impossível dominar todos os assuntos. É preciso ser um ‘papa’ naquilo que você faz no dia-a-dia. No restante, ser ‘bispo’ já basta... Estude. Questione. Leia muito. Não leia apenas as instruções internas: isso é básico. Leia jornais, revistas e livros especializados na área em que você atua... E nunca deixe de perguntar: ‘Em que posso ajudar?’ “(...)”

Izabela Campos Alcântara Lemos, naquele momento diretora de Relações com Funcionários e Responsabilidade Socioambiental lembrou: "(...) é preciso aprender sempre, com o outro, estudando, lendo muito. Saber ouvir, cultivar relacionamentos duradouros... é preciso ligar-se  nos movimentos e direcionamentos que a empresa aponta para, com sensibilidade, identificar e aproveitar as oportunidades que aparecerem. E elas sempre aparecem! "(...)" 

Para José Marcelo Torres Batista, na época assessor pleno na diretoria de Marketing e Comunicação, havia alguns pressupostos a serem observados: “(...) Tenham um pouco de cada coisa da maneira de ser, de agir e de olhar o mundo. Tenham vontade de aprender, humildade para perguntar, solidariedade para ensinar e paciência para esperar as oportunidades, pois a vida é como um rio em seu curso natural... Mirem-se nos exemplos daqueles que vencem por méritos próprios, por competência e com ética. Questionem sem destruir. Elogiem sem bajular... Não trabalhem apenas pelo dinheiro. Procurem fazer aquilo que gosta e goste de fazê-lo. O reconhecimento e a recompensa virão em consequência (...)” 

O então vice-presidente de Negócios Internacionais e Atacado, José Maria Rabelo, ponderou: “(...) Fiz sempre o exercício crítico da autoestima. Estive sempre convencido de que deveria e poderia ter orgulho de meu trabalho... Para você chegar lá, acredite tanto na empresa quanto em si próprio. Não coloque seu futuro na dependência exclusiva de atos ou pensamentos de outras pessoas. Negocie e construa seu caminho. Esteja atento para aprender o que fazer e o que não fazer. Não dissocie a formação acadêmica do investimento profissional. Não perca a oportunidade de fazer o melhor que puder, sempre... Lembre-se de que seu supermercado e a escola das crianças dependem do fruto do seu trabalho. Se por uma questão pessoal esta última parte não for verdadeira, aja como se fosse! Um dia ela certamente será. “(...)”

Renê Sanda, naquele momento gerente adjunto no BB New York Branch, orientou: “(...) Sigam sempre o ‘Princípio de Occam’, que diz que não devemos fazer mais suposições para resolver um problema do que as estritamente necessárias. Você vai notar que na maioria das vezes não existe solução que atenda aos interesses de todos, mas você será mais produtivo e eficiente se aprender a focar no problema principal, entender as principais restrições e relevar as questões ‘cosméticas’ (...)"

Juntei outros 30 depoimentos de colegas com uma história a contar que ajudasse aqueles marinheiros de primeira viagem a construírem seu próprio roteiro e aprumarem as velas do barco, na expectativa de acelerar a maturidade coletiva de jovens com as mais diferentes origens.

É difícil, agora, avaliar o impacto de uma obra tão pequena como uma cartilha dessas sobre seu público-alvo. Nem sei se foi lida por um quarto ou metade dos navegantes que apenas começavam a viagem, mas posso falar do bem que ela me fez, àquela altura com 28 anos navegando em mares ora agitados, ora calmos. Sempre acreditei na magia e no poder dessas histórias contadas de geração para geração. 

Aprendi que o bom da viagem — com ou sem lanterna a iluminar os momentos de escuridão  — nunca é onde estamos, mas para onde nos movemos. É saber navegar algumas vezes na direção do vento e outras contra ele, mas navegar sempre. Não se deixar à deriva nem ancorar antes ou depois da hora. Tem dado certo até agora.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Um viciado a menos

Circulou há pouco tempo um texto que mexeu com a tribo dos sexagenários em diante, exaltando a capacidade produtiva de quem atingiu essa faixa etária. Parecia o preâmbulo de um informe publicitário da indústria farmacêutica anunciando um nova pílula milagrosa.

Dizia o seguinte: 

(...) Um grande estudo nos Estados Unidos descobriu que a idade mais produtiva na vida de um homem é de 60 a 70 anos. Setenta a 80 anos é a segunda idade mais produtiva. A terceira idade mais produtiva é de 50 a 60 anos.

A média de idade de um ganhador do Prêmio Nobel é de 62 anos. A média da idade de um CEO em uma empresa da Fortune 500 é de 63 anos. A média da idade dos pastores das 100 maiores igrejas da América é de 71 anos.

A média da idade de um papa é de 76 anos. Isso nos diz de alguma forma que Deus planejou que os melhores anos da sua vida sejam 60-80!  É quando você faz o seu melhor trabalho.

Um estudo publicado no NEJM descobriu que aos 60 anos o ser humano atinge seu potencial máximo e continua até os 80! Portanto, se você tem entre 60-70 ou 70-80, você tem o melhor e o segundo melhor ano de sua vida com você! 

Fonte: New England Journal of Medicine 70.389/2018 (...)

É mais um capítulo da antiga novela “Me engana que eu gosto!” Não creio que ninguém trabalhe por diletantismo ou prazer depois dos 65, sobretudo se a correria começou cedo, ali entre 15 e 16 anos. Só por necessidade. Ou vício. 

Vício é hábito repetitivo que pode degenerar ou provocar algum tipo de prejuízo tanto ao viciado como aos que convivem com ele. Vem do termo latino "vitium", que significa "desvio", “defeito". Necessidade é outra coisa.

No começo do ano passado, o chefão de um grupo econômico encantou um amigo meu ao convidá-lo para implantar um projeto-piloto de escola de negócios, no Sudeste, para jovens de 14 a 15 anos, a serem selecionados do último ano do ensino público fundamental. 
— Que beleza! Fico feliz em voltar a trabalhar em algo desse nível, num país com tantas iniciativas e tão poucas poucas “acabativas” nessa área — entusiasmou-se meu amigo.
— Tudo bem, mas veja que não estou aqui falando em caridade — ponderou o chefão.
— Sei... Há incentivo fiscal para ensino profissionalizante... 
— ... Isso! E os melhores alunos, depois de três anos de teoria e prática, acabarão nas empresas do grupo. É o nosso futuro que está em jogo.

Meu amigo era visto pelo ex-chefe como a pessoa mais capacitada para tocar o projeto-piloto.  Criativo, pós-graduado em administração e ex-diretor de RH de uma grande empresa, gozava de sua confiança desde que trabalharam juntos por mais de uma década.


Mas no dia seguinte meu amigo amanheceu indeciso se toparia ou não. Depois de dois anos aposentado, sem residência fixa em canto algum, viajando metade do tempo pelo exterior e a outra metade pelo país, não quer mais prender-se a agenda, horários, hierarquia, metas, reuniões e pressão por resultados a curto prazo. 

Iria recusar o convite e buscava apenas uma forma honrosa de fazer isso sem deixar transparecer covardia ou que estava esnobando a oferta. Diria ao ex-chefe que já dedicara mais de 40 anos a uma pesada rotina de trabalhos e que seria insensatez mergulhar novamente numa roda-viva.

Também não queria negar à mulher — parceira de toda a vida e, como ele, agora aposentada — a sua companhia numa fase em que se completam desde os cuidados com alimentação e saúde até nos pequenos prazeres como fazer caminhadas matinais na praia, dividir um rosbife acebolado no restaurante da esquina, ir ao cinema ou flanar pelos corredores dos shoppings até tarde, antes de retornarem ao aconchego dos lençóis.  

Por que mexer naquilo que vinha dando certo? Logo ele que, havia anos, defendia com unhas e dentes o sacrossanto direito de não fazer nada de muito estressante no último quarto da vida, escorado num bom plano de saúde e numa aposentadoria suficiente, sem preocupar-se com contas a pagar no fim do mês.

Andava cismado também desde que soube da morte de um colega de infância, vítima de um derrame cerebral sentado no sofá da sala de estar. Chegou a comentar comigo:
— Quem diria, hein?! Ele se cuidava tanto. Todo dia caminhava na orla. Como é que o sujeito morre tentando cortar as unhas dos pés? 

Entrei de gaiato no “navio" quando meu amigo ligou-me, interrompendo o cochilo após o almoço. Contou da proposta que havia recebido e quis saber:
— Véi, você concorda comigo? Acha que estou certo em abrir mão dessa oportunidade?
— Prefiro não opinar, cara. Isso é como hemorróidas: coisa íntima, pessoal... 
— Peraí, véi, se peço sua opinião é porque tô indeciso...
— Você parece minha mulher: faz pergunta mas já tem na cabeça a resposta que quer ouvir.
— É meu jeito de checar se estou no rumo certo. Deixe de ser ranzinza, véi!
— Se você insiste, que tal a gente sentar para conversar mais tarde, quando o sol esfriar? Pode ser numa barraca aqui na orla, tomando chope com casquinha de siri ou caldinho de camarão.
— Não posso... Fiquei de apanhar meu neto no inglês e depois passar na lavanderia. A mulher também quer pegar um cineminha mais tarde...
— Cê que sabe!  Pode ser amanhã, às oito? Enquanto a gente bate um papo, toma um café com tapioca lá na padaria... 

Na dúvida se ele iria e para não ser chamado novamente de ranzinza — coisa de velho, o que absolutamente não condiz com a “criança” aqui! , cuidei de adiantar, em rápidas palavras, pelo menos três motivos pelos quais não quero voltar a trabalhar por dinheiro nenhum nesse mundo:
  1. Tenho ossos, articulações e músculos desgastados pelo uso e sei disso. Corro maior risco, portanto, de sofrer deformações, fadiga muscular e prejuízos à qualidade da vida que me resta, a depender do que tiver que encarar.
  2. Sei também que as pressões do mundo corporativo de hoje podem me trazer mais problemas: dor de cabeça (há muito tempo não sei o que é isso!), insônia, tontura, irritabilidade, dificuldade de concentração e memorização e, portanto, queda na qualidade de vida. Tem mais: podem causar outros distúrbios psicológicos, como: frustração, insegurança, medo e tristeza.
  3. Sessentões como nós que fumaram, beberam e comeram nos anos 80 e 90 como se não houvesse amanhã têm coração, pulmões, fígado, rins, estômago e intestinos num ônibus desgovernado descendo ladeira abaixo, por mais que os freios da medicina tenham evoluído. O desafio que nos resta é prolongar a agonia, com bom humor e resignação, até a chamada falência de múltiplos órgãos. Depois dos 90, se a decisão for minha.

Não faço a mínima ideia do que aconteceu com meu amigo após aquela conversa. Sumiu e nunca mais tocou no assunto. Talvez seja alérgico a frutos do mar ou, quem sabe, enjoou tapioca. Nunca se sabe. Depois de certa idade, quando um de nós desaparece por alguns dias das caminhadas no calçadão, a gente pensa logo no pior. 

Ouvi dizer que teria viajado com a mulher para São Paulo, em novembro passado, sem data prevista para retorno. Mas não ficaram nem duas semanas por lá e já voltaram. Foram vistos na praia do Francês, Litoral Sul alagoano, no último réveillon.

Vai-se ver é outro que andou refletindo e, sem precisar ouvir ninguém, acaba de livrar-se do vício. Fiz bem em não me meter na vida dele. Poderia ficar chateado comigo. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

“Urtigão" é culpado

Quando me perguntam sobre o que me levou a criar este blog, no começo de 2019, onde tenho compartilhado crônicas e contos com alguns fiéis leitores e leitoras, digo que só pode ter sido uma troca de e-mails, há cinco anos, com meu velho e bom amigo Pedroso "Urtigão", paulista radicado na Bahia a quem provoquei dessa forma: 

14/02/2015

Meu amigo, meu maninho eremita Pedroso!

A vida e as escolhas que fizemos acabaram por nos colocar em caminhos diferentes, mas você sabe o quanto lhe respeito, quero bem, sou grato e torço pelo seu bem-estar. Afinal, não foi à-toa que um dia nos encontramos no já distante ano de 1990.

Depois que me aposentei, em novembro passado, eu e a mulher decidimos cumprir promessa feita a nossa caçula e estamos passando uma temporada com ela nos Estados Unidos (arredores de Boston) desde o final de 2014, quando nasceu nossa quinta neta.

Não tem sido fácil porque a temperatura aqui anda sempre bem abaixo de zero grau (ontem chegou a 16 graus negativos, mesmo sob sol intenso) e, com a criança recém nascida, restam poucas alternativas afora cuidar dela e da casa. Consequência disso, seu amigo aqui está virando um autêntico cozinheiro, expert no trivial variado, com a inestimável ajuda da mãe de todas as conquistas: a necessidade.

Até a caminhada diária tem sido feita no subsolo, numa esteira, o que faço como quem toma remédio. É dureza, amigo, não poder tomar sol caminhando pelas ruas, sonhando em criar coisas, mudar o mundo, vendo gente passar e constatando o estrago que o tempo impõe a cada rosto desconhecido que passa encabeçando um corpo qualquer. Vou acabar virando hamster, mas é o preço que temos que pagar pela conquista de uma velhice mais saudável.

A ideia é voltarmos para o Brasil em junho, deixando nossa filha um pouco mais madura para cuidar sozinha de sua cria, junto com o marido. É também um período sabático em que reflito sobre os próximos passos que darei na terceira etapa de minha vida, sem paletó, gravata, nem puxa-sacos por perto.

Para ser sincero, do Brasil sinto falta apenas de filhos, netos e de poucos amigos como você. Pena que nossa convivência foi curta, mas sempre intensa nos raros momentos em que pudemos conversar mais de perto. Quando vejo o noticiário político, econômico, policial, fico cada vez mais chateado com tanto desperdício de recursos numa terra que tinha tudo para ser um oásis num mundo caótico.

E você, e Ana Isa, como estão? Mande notícias, coração gelado! Não quero nem posso imaginar que nos vimos pela última vez nem mais lembro onde. Precisamos, como nunca, compartilhar dores, rabugices, frustrações, desencantos e dar gargalhadas sobre como tudo isso nos incomodava, mas não incomoda mais...

     
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Algum tempo depois ele resolveu sair da toca em que,  ainda hoje,  passa a maior parte do tempo escondido —  fazenda em Coaraci, no Sudeste baiano, onde cultiva cacau e cria gado leiteiro — e devolveu este petardo:
     
"(...) 08/07/2015

Querido amigo Hayton,

Acredite nisso ou não, para mim você é e será sempre um grande e inesquecível amigo. Muitas qualidades, grande exemplo. De minha parte, nunca fui grande coisa, nem disciplinado; sequer bom aluno. Por isso, admiro mais ainda sua generosidade comigo.

Entretanto, apesar da ausência, busco na “Canção da América”, as palavras certas: '... Mesmo que o tempo e a distância digam 'não'/Mesmo esquecendo a canção/O que importa é ouvir/A voz que vem do coração...'
  
Soube pelas boas línguas que você se aposentou. Pronto. Finalmente estamos agora iguais (salário não conta!). Agora você também tem um nariz!

Espero, embora sem acreditar nisso, que você tenha saído por sua livre e espontânea vontade, de bem com tudo. Você gostava demais do Banco para ir tão cedo. O Banco sempre foi uma casa boa. Os inquilinos é que muitas vezes eram ruins.

Mas, de qualquer modo, meus sinceros e sinceros e mais sinceros parabéns. Você que tem alma e bagagem, tem muitas coisas pra fazer. 

Aconselho a não fazer duas:  
1. Comprar um sítio, roça, rocinha, fazenda, chácara etc. Vira cachaça. Nunca fica pronta, come todo seu tempo, seu dinheiro, paciência e todos aqueles que gostam da sua companhia ficarão com ódio do negócio, porque ele vai lhe consumir por inteiro.
2. Comprar uma casa de praia. Você vai achar bom no início. Todos irão achar bom. Depois, você vai passar a semana inteira esperando chegar o final de semana e as pessoas. Com o tempo umas irão; outras, não. Você vai acabar preparando um churrasco para dez, vão acabar indo quatro e você vai beber pelos onze!

Tiro por mim: arrume algo pra fazer. E venda para todos como a coisa mais importante e absorvedora do mundo, senão você vai virar o quebra-galho da família.

Não pense em ler todos aqueles livros, juntados ao longo de toda a vida, que você comprou pela indicação dos amigos, das revistas especializadas, pelo título, pela orelha, na aflitiva infinitude do tempo de espera dos horários de voo.

Não se disponha a ir a supermercados. Vicia. Daí todos os dias você acabará indo lá. Da pimenta do reino ao queijo suíço, você vai acabar dando pitaco em tudo, comprando todos os dias.

Se for andar, nunca faça os mesmos percursos. Além de ser bom para prevenir o Alzheimer, evita que você encontre as mesmas pessoas todos os dias, sobretudo os saudosistas, que vão lhe contar como era a contabilidade bancária quando trabalhava.

Evite os colegas chatos. Um chato a gente não pode ter como amigo. Só como colega. Um chato sem ter o que fazer mata a gente. Logo chama pra ir para a casa dele, abre um litro de uísque 12 anos ou um vinho de R$ 150,00 e faz a gente ficar vendo seus álbuns de fotografia, principalmente das viagens que fez para o exterior, tentando explicar um mundo que viu por alguns instantes.

Não vá aos encontros de ex-colegas de trabalho. Normalmente eles marcam um almoço mensal, quinzenal ou semanal e ficarão o tempo todo falando do Banco, de quem ficou, de quem se separou, de quem morreu, dos tempos da posse, do tempo da agência... Ah! que preguiça!

Procure conhecer pessoas novas e mais novas que você. Pessoas mais velhas são cheias de dores e pruridos. Se falam em política ou de futebol, ficam dogmáticas e insuportáveis. Tudo vira religião para elas.

Não tente virar um vovô garotão. Tem gente que ao acordar aposentado se olha no espelho e se convence de que está bonitão, cheio de vida, com uma boa estampa. Sai de casa, matricula-se numa academia, compra um monte de cremes e fica pensando em fazer uma tatuagem. Bem discreta, bem pequena. Apenas um símbolo de liberdade.

Não tente fazer agora tudo que você sonhou uma vida inteira e o trabalho não deixava. Comprar uma moto, por exemplo. Uma moto estradeira, tipo “Harley Davidson”, uma jaqueta de couro dos “Hells Angels”, alguns filmes do Marlon Brando e do James Dean, e sair por aí feito um rebelde sem causa.

É tarde para aprender a fumar, andar de patins, andar de “skate”, surfar, saltar de “buggie jump”. Se quiser tentar, faça umas sessões de psicoterapia antes. Se resolver que, definitivamente, vai andar de “bike”, vá a um provador de roupas e vista-se com toda a parafernália que utilizam para isso (Tire uma foto e me mande. Não ponha no “Facebook”). Se, mesmo assim, continuar firme nesse propósito, repita a fórmula usando terno, gravata, mochilinha e capacete. Se o desejo persistir, vá a um psicólogo e pague adiantado umas vinte sessões. 

Não fique o tempo todo na Internet. O pior é que dá para fazer isso. Também vicia. A gente acaba viajando pelo computador e some para o mundo.

Se você resolver arrumar um novo emprego, procure saber antes como está a saúde financeira da empresa e da sua necessidade ou dependência de crédito bancário, para que você seja o contratado e não o seu potencial de interferência junto ao ex-patrão.

Não se irrite com a indiferença daqueles a quem você ajudou (não é o meu caso, não sou indiferente). Em Brasília você vai cansar de ver isso. Você deve ter encontrado muitas pessoas ao longo do caminho. Sinceros, hipócritas, convenientes, sabidos, dissimulados, copiadores repetitivos (copiam e colam suas palavras na língua deles), aproveitadores etc. Também haverá os honestos, que se contrapõem a todos esses. Trate-os com o mesmo sorriso e aperto de mão que lhe dispensarem. Na hora, é incrível como surge a diferença entre os casos.

Abrace os amigos e a família sempre que puder. Vivemos pra eles. A vida não tem sentido sem eles.

Se você concordar com tudo, não quiser se dedicar a atividades filantrópicas ou literárias, e não vê o que fazer com seu tempo livre, só lhe restará comprar um sítio, roça, rocinha, fazenda, chácara ou, então, comprar uma casa de praia. 

Mas não vá dizer que não avisei (...)”

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Tomei nota, segui boa parte dos conselhos de meu amigo Pedroso “Urtigão” e lhe serei grato para sempre. Não doeu coisa nenhuma! Foi muito importante não ter feito nada sério de lá para cá. Exceto, talvez, o reconhecimento que acabo de fazer.