Às seis da manhã, pontualmente, lá estava ele no portão de sua casa a me esperar. Tinha nas mãos uma pequena flor branca:
— O senhor sabe que flor é esta?
— Não. Não conheço...
— É um bugarim. Toda manhã, bem cedinho, venho aqui ao jardim colher um para oferecer à minha mulher... Seja bem-vindo, vamos entrar.
Para mim, que mal distinguia uma rosa de uma orquídea ou de um girassol, o inusitado era ver a delicadeza com que o velho empresário e político dava a entender que seduzia a sua mulher. E para não dizer que não falei de flores, comentei apenas que o cheiro adocicado do bugarim (ou jasmim) talvez explicasse por que ele estava presente em tantos jardins no Sertão pernambucano.
Petrolina é conhecida como a capital da “Califórnia” brasileira, o Vale do Rio São Francisco. Foi em torno do Velho Chico — apelido carinhoso de um dos maiores rios do País — que a cidade se desenvolveu e passou a produzir frutas em propriedades rurais irrigadas, com destaque para uva, manga, banana, coco-da-baía e goiaba.
Na noite anterior, após uma reunião com lideranças de classe tentando melhorar a relação estremecida entre produtores rurais, urbanos e o Banco do Brasil, fui abordado na saída do recinto:
— Eu gostaria de recebê-lo em minha casa para o café-da-manhã...
— Talvez não dê desta vez... Preciso viajar bem cedinho pro Recife.
— Você vai fazer uma desfeita dessas comigo?
— Não fale assim! A não ser que a gente se encontre às seis da manhã — ponderei, querendo desfazer o mal-estar e, a bem da verdade, contando que ele não acordaria tão cedo.
— Estarei esperando o senhor às seis. Aqui está meu endereço — arrematou, com um cartão de visitas.
Poderia ser qualquer um dos filhos de Clementino de Souza Coelho (1885 — 1951), o mítico coronel Quelê, latifundiário e industrial tido como um dos responsáveis pela industrialização da região e um de seus maiores chefes políticos no século passado.
Assim como outras oligarquias brasileiras, a família Coelho, alinhada ao regime militar instaurado no país em 1964 e que durou até 1985, migrou dos negócios para a vida pública. Teve como expoentes cinco dos 13 filhos do coronel Quelê: Nilo, José, Geraldo, Paulo e Osvaldo. Nome não vem ao caso, mas foi um deles que me recebeu naquele dia.
A mesa já estava posta. O anfitrião apresentou-me sua esposa enquanto a ela oferecia o pequeno bugarim que havia colhido. Sentou-se na cabeceira e lhe serviram macaxeira com linguiça cuja gordura logo escorria no canto da boca e ameaçava, além da gravata, o paletó engomado de linho branco. Em seguida, pode parecer exagero meu, encarou uma tigela de coalhada, meia pamonha, uma tapioca, um pedaço de cuscuz, uma manga em cubinhos, uma fatia de bolo e uma caneca de café preto, onde pingou algumas gotinhas de adoçante — para manter o peso sob controle, esclareceu.
Ainda na mesa, com o suor escorrendo pela cara gorda e vermelha, sacou da algibeira o isqueiro e acendeu um cigarro que tragava com sofreguidão, esfumaçando o ambiente. Parecia cenário daqueles filmes antigos de Hollywood, que manteve ao longo de décadas contratos com a indústria de tabaco para inclusão de imagens em que os atores e atrizes fumassem.
Não demorou muito e foi direto ao ponto que o levou a me convidar na noite anterior: perguntou o porquê de eu não ter dado a devida atenção ao pedido que me fizera por telefone duas semanas antes, no sentido de refinanciar dívidas vencidas de um produtor rural de quem era compadre e avalista.
Esclareci que deveria haver algum engano, pois pedira para examinar o caso e, pessoalmente, havia comunicado o desfecho ao devedor, dizendo-o que não seria possível a renegociação da dívida na forma por ele pretendida.
O anfitrião esfregou as mãos e contra-argumentou:
— O “não” não é resposta. Só o “sim” constrói, ajuda quem precisa. O “sim” é como o dia; o “não” é como a noite, escurece tudo. Até as flores perdem a graça...
— Entendo o que o senhor quer dizer, mas lá no banco a gente lida com o “sim”, com o “não” e com o “depende”. Se o rapaz quiser mesmo negociar de um jeito que fique bom para todo mundo...
— Mas sei de alguns casos aqui na região em que vocês deram desconto no pagamento. Por que meu compadre, que tá passando um sufoco medonho, não merece?
— Banco é tudo igual, amigo. Não abre mão de um centavo...
— Como assim?
— Só admite desconto quando não tem mais como receber todo o dinheiro que emprestou, inclusive os juros. Nem que tenha que recorrer à Justiça, se o devedor e o avalista possuírem bens.
E passamos a conversar sobre outros assuntos como o aumento das exportações de manga para os mercados asiáticos, a qualidade do vinho que já estava sendo produzido na "Califórnia" brasileira etc.
Na despedida, foi gentil e pragmático comigo:
— Quero agradecer muito sua visita a nossa Petrolina. Pode deixar que vou convencer o compadre a melhorar a proposta. Onde já se viu achar que o banco vai dar desconto numa dívida avalizada por mim?
Tanto ele quanto os irmãos aqui citados já não se encontram neste mundo. Se a dívida foi paga, refinanciada ou seguiu para cobrança judicial, não sei dizer. Fui trabalhar na Bahia pouco tempo depois, em maio de 1999.
Desde então, toda vez que vejo um bugarim branco ou alguém usando adoçante no café para controlar o peso, lembro-me do coronel que gostava de flores.