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Sementes de tangerina

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Vinha de longe o hábito de cochilar depois do almoço na varanda do apartamento, deitado numa rede com uma camiseta  sobre o rosto, a ouvir o barulho das ondas do mar e, ultimamente, de motores e buzinas na rua, apesar do apelo das autoridades sanitárias para que as pessoas ficassem em casa.  Havia uma explicação para o  pitstop  rotineiro no começo da tarde: todo dia acordava bem cedinho, por volta das cinco. Esperava o sol nascer a flanar na internet em sites de notícias, fazendo anotações ou a garimpar imagens nos álbuns digitais da família. O único barulho que lhe deixava numa aflição inexplicável — coisa de outras encarnações, diriam os  especialistas  no assunto — era o “flap! flap!” do helicóptero da PM a sobrevoar os quarteirões do bairro, dando apoio às viaturas no asfalto que garantiam a tranquilidade dos donos de hotéis, bares e restaurantes da orla, fechados por conta do turbilhão virótico. Naquele começo de tarde, sua mulher levaria pelo menos meia hora no banhei

O Ícaro da hora

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Foi logo após a Copa do Mundo de 1966. O pai do menino largara no sofá a revista semanal  O Cruzeiro  e, curioso, depois de ver a reportagem sobre a vitória do time inglês, achou de ler a última matéria, que o deixou em pânico: “Ícaro, a morte que ronda o espaço”. Ícaro era um asteroide que havia sido descoberto no final dos anos 50 pelo astrônomo alemão Walter Baade (1893  –  1960). Foi batizado assim em homenagem ao mito grego que voou próximo ao Sol na tentativa de fugir da ilha de Creta. A reportagem tratava do possível choque de Ícaro com a Terra caso não fossem utilizadas armas atômicas para interceptá-lo e evitar a colisão, livrando o planeta de consequências devastadoras como a que dizimara os dinossauros há milhões de anos. Aos nove anos incompletos, o menino quase morre do susto. Não contou nada a ninguém mas logo lhe apareceram febre e dor de cabeça. “É gripe mais forte”, deve ter pensado sua mãe, ao tratá-lo à base de chá de eucalipto e colcha de chenill

Dança da solidão

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Sexta-feira, 13 de março. Dona Eulália, 81 anos, minha vizinha, teve que se desculpar na fila do supermercado porque vacilou na chamada etiqueta do espirro e da tosse e quase mata de susto um velho carrancudo e magricela que estava à sua frente:  – Desculpe, meu senhor... Nem se preocupe. É minha rinite alérgica. Quando entro no ar refrigerado o nariz começa logo a coçar. Soube disso por acaso ao encontrá-la no elevador de nosso prédio. Voltava do pronto-socorro ainda reclamando de dores na panturrilha (batata da perna, para alguns). Chegou a pensar em trombose, hipótese descartada pelo médico que lhe atendeu e recomendou apenas mais moderação nas atividades físicas. Caminhadas longas e danças já lhe pesam muito. Aproveitei a oportunidade para tentar convencê-la a praticar o isolamento social que a Organização Mundial de Saúde vinha recomendando para os idosos, por conta do surto viral que dava as caras por aqui sem bater na porta e já querendo matar. Para o seu própri

Nobel da paz

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Carnaúba é uma palmeira comum do Semiárido nordestino, conhecida como a árvore da vida longa. Da folhagem se extrai uma cera natural com que se produz batons, sabonetes, vernizes etc. Seu nome deriva do tupi e significa planta que arranha, por conta de espinhos em seu caule.  Mas a árvore longeva de que falo aqui, no auge de seus 82 verões, veio  de outra galáxia,  não arranha nem possui espinhos. É leve, do bem e da paz, espirituosa, dotada de rara inteligência.  Nos anos 70, quando pediam a Humberto Carnaúba horas extras após a rotina diária de seis horas de trabalho, negava-se sob argumento simples e objetivo: ganharia bem mais, sob todos os aspectos, na mesa de sinuca apostando com alguns amigos. E quando entrava em férias, em questão de minutos era visto com sua inesquecível Selma na estação ferroviária, onde subiam com destino incerto no primeiro trem que ali parasse . Na bagagem, apenas três ou quatro mudas de roupas, escovas de dentes e sandálias. Voltaria em um mê

Cobrando a conta

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Morto de cansaço e fome, Vieira chegava em casa  para o jantar quando seu filho lhe entregou um envelope com cara de quem cumpria uma missão importante: “Pai, a tia me pediu para entregar na sua mão. Quer que eu leve uma resposta até sexta-feira”. Era a cobrança de mensalidades escolares em atraso, em tom de  ameaça, assinado pela diretora e pela tesoureira da escola. Vieira leu, engoliu seco e perdeu o apetite. Atrasaria qualquer conta a pagar   —  prestação do imóvel, do carro etc.  —,  menos a que pudesse causar constrangimento ao filho. Pior: não havia atraso algum. A transferência entre bancos via doc (documento de ordem de crédito) tinha sido criada no começo dos anos 80. Ele gostou da inovação e assim que recebia seus salários, transferia para a conta da escola o valor da fatura. Com o tempo escasso e dividido entre faculdade e trabalho, era a alternativa encontrada para não ter que se deslocar  todo mês  à secretaria do colégio.   Vieira poderia ter sido mais eleg

De pai para filho, às vezes

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Reco do Bandolim (Henrique Filho) é músico, compositor, jornalista, radialista e produtor cultural.  Nascido na Bahia, radicou-se em Brasília desde os primórdios da Capital, onde cuida com zelo e talento do  Clube do Choro , um dos templos sagrados da música instrumental brasileira.  Há poucos dias compartilhou com amigos texto escrito por seu filho durante um voo que fizeram juntos, no começo do ano, de Salvador para Brasília. Texto que, segundo ele, discorre sobre uma manhã em que “Henriquinho se deixou diante do mar de Piatã”. Disse mais sobre seu filho, também músico e compositor: “... vive em Portugal, e meu coração, a um só tempo, feliz e aflito de saudades.” Sob o título “Coração de Pedra”, Henrique Neto escreveu como se espalhasse notas musicais sobre um pentagrama: “(...) Quando passo um tempo sozinho em frente ao mar sinto que reencontro alguma coisa que andava perdida. Acho que é uma certa sensação de transcendência que sua imensidão me causa e, ao mesmo tem

Adeus, "Charles Brau"

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Duas semanas depois da publicação da crônica  Carpenters em Alagoas ( reveja aqui ) , onde falei sobre Braulino, meu amigo “Charles Brau”, ele partiu levando consigo o punhado de histórias e sonhos que deveria compartilhar com seus bisnetos quando eles crescessem.  Já vinha sofrendo com um quadro gravíssimo da chamada síndrome hepatopulmonar  —  doença no fígado que provoca dilatações nos vasos sanguíneos dos pulmões —,  o que lhe obrigava a usar oxigênio quase o dia inteiro.  O transplante de fígado seria a única solução para o problema, não fossem seus 76 anos de idade. Apareceram feridas nas costas que acabaram virando porta de entrada para bactérias, resultando numa infecção generalizada. Um pesado coquetel de antibióticos ainda lhe permitiu sair uns poucos dias da UTI. Recuperava-se na medida do possível quando foram descobertos alguns cálculos renais, parcialmente retirados. Mas passou mal no dia seguinte, voltou à terapia intensiva com sinais de nova infecção e de lá

Onde anda Ana Maria?

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Voltava ao Sertão paraibano às vésperas do  São João de 2002. Havia morado na cidade de Patos a partir de 1961, aos três anos de idade, até mudar para Alagoas sete anos depois, seguindo meu pai em sua jornada nômade de funcionário do  Banco do Brasil . Ele, que nos anos 60 trabalhara na extinta   Creai (Carteira de crédito agrícola e industrial) da agência daquele município,   seria homenageado pela  AABB , cuja diretoria resolveu batizar o ginásio de esportes com seu nome: Agostinho Torres da Rocha.  Eu teria assim a chance de rever o  Colégio Cristo Rei,  onde aprendi a ler e a escrever; a rua Bossuet Wanderley, os armazéns da  Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro) com seus fardos de algodão , próximos à estação ferroviária;  o campinho de futebol da  Cica (Cia. Industrial, Comercial e Agrícola) , à margem do Rio Espinharas.  Ao chegar lá, vi que o colégio continua no mesmo local, bem menor, é verdade, do que aquele que guardava na memória. Mas os coleg