Postagens

O mutante

Imagem
Ele mantinha uma conversa esfumaçada consigo mesmo toda sexta-feira à noite na esquina onde fica um boteco próximo de sua casa, na Gruta de Lourdes, em Maceió. Com um cigarro numa mão e um copo de cerveja na outra, tinha virado rotina, de hora em hora, o isolamento voluntário  para fazer uma “inalação reflexiva”, como dizia, longe dos demais frequentadores. Enquanto isso, a mulher, cantora de uma dupla “voz e violão”, em tom resignado soltava o vozeirão na mesma toada   de Alcione:  “Sabe, meu menino, sem juízo, eu já aprendi a te aceitar assim”  . O boteco, como todos os bares e restaurantes da cidade, baixou as portas há mais de 100 dias.     Aos 61 anos, com 1,69 metro e 68 kg, se alimentava na base do trivial arroz, feijão e bife. Dormia feito criança, de sete a oito horas todo dia. Mas, além de sedentário, fumava e bebia desde os 13 anos.  Tal como seus irmãos, nos anos 60 contraiu e escapou sem sequelas de todas as doenças típicas da criançada: gripe, catapora, t

Pecados veniais

Imagem
Já pesquei, mas hoje não pesco mais e tenho meus motivos. Coisa de criança que, aos 10 anos de idade, do nada começou a ter pena dos carás, dos jundiás (bagres) e das piabas (lambaris, manjubas ou piaus) que fisgava no rio Mundaú, na Zona da Mata alagoana, porque em minutos morriam asfixiados com as guelras secas. Não vi mais graça alguma em acordar bem cedinho para procurar minhocas no jardim e juntá-las numa lata vazia de leite em pó, armar-se de caniço, linha, chumbada e anzol, seguir com os colegas da rua para beira do rio e disputar com eles quem faria a maior fieira de peixes.  Também nunca fui de caçar, apesar da origem cabocla. Quando menino, até me orgulhava da pontaria com uma peteca (chamada assim somente em Alagoas; noutros lugares, é estilingue, atiradeira, balinheira, baladeira, badoque ou bodoque), a acertar calangos e lagartixas que tentavam fugir do predador nos monturos do Beco do Coité, em União dos Palmares.  Desisti depois que matei por matar, numa

Era o amor, Margot!

Imagem
Juro pelo cachimbo da velha parteira que cortou o meu umbigo que este caso é real. Pode ter uma coisinha a mais aqui, outra ali, mas Salomão, meu vizinho à época, me contou em detalhes o que lhe aconteceu quando morou na Quadra 114 Sul, em Brasília, na virada do milênio. Margot, síndica do prédio, quase o levou à loucura. Criava confusão com os moradores por qualquer bobagem e fazia da vida de todos eles um inferno, inclusive dos prestadores de serviços, a reclamar do desodorante vencido de um, do cheiro de cigarro de outro e até do flerte inocente de uma babá com o porteiro da noite.  A síndica era de morte! Um dia, mesmo percebendo pelo retrovisor que Salomão descia a rampa da garagem logo atrás do carro que ela guiava, fez-se de distraída e acionou o controle remoto para fechar o portão, espatifando o para-brisa do coitado. Irritado, ele quis dizer o que qualquer um diria, mas respirou fundo, contou até nove e percebeu a tempo a intenção dela: tornar-se vítima. Certamente

Coração de criança

Imagem
Era filho de um fisioterapeuta da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), no Rio de Janeiro, instituição que  cuida de pacientes neurológicos. N os anos 70,  entre sete e oito anos de idade, várias vezes o menino acompanhou o pai no trabalho e vibrava muito a cada recuperação, convencido de que aquilo também era obra de seu pensamento positivo. Nasceu para ser médico, diziam.  Houve uma festa junina na ABBR e seu pai o levou de novo.  L á  encontrou o famoso jogador de futebol Francisco das Chagas Marinho, ou simplesmente Marinho, o lateral-esquerdo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, a distribuir abraços e sorrisos, vestindo a camisa de seu clube, o Botafogo. Depois de conseguir o autógrafo do jogador, a criança deixou de lado a timidez, puxou-o pelo braço e cochichou: – Por que você não vai jogar no Fluzão? –    Vamos ver...  – Jura? – Vou pensar. – Vai mesmo? – Prometo. Me dê um abraço... O menino sonhava ver o

Bala de prata

Imagem
Mal aprendem a falar, as crianças de hoje já sabem o que é  Aedes aegypti , o mosquito responsável pela transmissão de dengue, zika e chikungunya, muito parecido com a velha muriçoca (pernilongo), mas com algumas características que ajudam a ser diferenciado dos outros. A muriçoca de ontem era bem menos traiçoeira do que o  Aedes aegypti . Infernizava do mesmo jeito com picaduras e zumbidos, mas nada que mosquiteiro sem grandes rasgos, espiral verde  Sentinela  ou borrifadas de  Detefon  não resolvesse o problema.  Aliás, criado para dizimar os mosquitos da face da Terra, o  spray  daquele inseticida clássico combatia até “a malária, a febre amarela e o tifo”, segundo uma campanha publicitária veiculada em 1953, em  O   Cruzeiro,  revista semanal que circulou por aqui durante anos.  Com slogans como “terrível contra os insetos”, “defenda sua casa” e promessas de “proteção prolongada”, exterminava ratos, baratas, moscas, mosquitos e formigas. O duro é que uma certa substâ

Sonho e ousadia

Imagem
O menino passava horas observando a sombra de uma varinha enfiada no chão do quintal, a mudar de posição a cada instante, até o pôr-do-sol:  — O que cê faz aí, hein?  — Tô vendo o tempo passar, mãe... No terreiro, além da cerca de avelós, do pé-de-manga e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive nas noites de lua cheia, até ouvirem o chamado da mãe: — Tá na hora de lavar os pés e beber água pra dormir!  Chico e Gracita, 7 e 8 anos, últimos dos sete filhos de Januário e Mariquinha, nasceram no sítio Muriqui, à margem do riacho Jundiá, distante seis léguas da cidade de Pedregulho. O sustento da família vinha da pesca, da criação de umas poucas cabeças de gado e do plantio de mandioca, milho e feijão. Pais e filhos nunca haviam pisado numa escola. Nem desconfiavam de que nossos antepassados já conheciam as horas do dia muito antes de o relógio ser inventado no século 14.  Sim, por volta de 5.000 a.C., os babilônios descobriram que em certo

Sim, hoje é sábado

Imagem
Sim, hoje é sábado. Só por isso ainda sinto o cheiro de cera do chão das casas em que morei quando menino, a ver meu pai circulando  entre salas e quartos, fazendo brilhar o cimento queimado e os mosaicos, a ouvir boleros do  Trio Irakitan. Vem à cabeça também o “gol da lua” nos campos enlameados de minha meninice. Na boca da noite, racha no zero-a-zero ou com vitória parcial por apenas um gol de diferença, alguém gritava: “quem fizer primeiro, ganha!”. Era um salve-se quem puder, um deus-nos-acuda sem sentido. Lembro do trajeto de casa até o altar da capela do  Convento Bom Pastor , no último sábado de 1976, ponto de partida de uma viagem sem volta nem fita de chegada rumo à Terra Prometida. Éramos dois sem parentes importantes nem dinheiro no banco, mas estava escrito nas estrelas que teríamos um só coração, bem repartido entre a esperança e a razão. Ouço como se fosse agora mesmo o grito familiar a convocar à mesa da cozinha caras e bocas espalhadas pelos quatro cantos da

Que safadeza é essa?!

Imagem
Em tempos de reuniões ministeriais cujo palavreado deixaria constrangida a inesquecível atriz Dercy Gonçalves (1907 — 2008), lembrei-me de duas repreensões que recebi por usar termos inaceitáveis para meu pai: sacanagem e merda, vejam só! Um dia, chateado com um de meus irmãos por conta de uma bobagem qualquer, reclamei: “isso é sacanagem sua!” Meu pai ouviu, me olhou firme e foi direto ao ponto: “nunca mais diga isso, entendeu?” Noutra, apenas repeti o que já ouvira na rua ao criticar um vizinho: “olhe a merda que você fez!” De novo, ele chegou junto e decretou: “se falar isso outra vez, vai apanhar!”. Lá em casa, sob pena de puxão de orelhas ou croque no cocuruto, o máximo admissível em termos correlatos a palavrões (ou “nomes feios”, no dizer dele) eram: cocô, bunda, pinta, pássaro,  “piupiu”  ou, no limite, safadeza. E não é bom nem pensar no que aconteceria se um dos filhos de Seu Agostinho pronunciasse um um robusto “taquiupariu!” Talvez por isso nunca aceitei ser cl