quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Eu sei e você sabe

Ele fingia na maior cara lisa! No Carnaval de 1972, deu a entender que gostava da folia e não largou minha mão nos três bailes, chegando a assobiar, no último dia, “Oh, quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar... É de fazer chorar!”. Na hora, não percebi que o assobio era mais sinal de alívio e ironia.


Filho de um colega de trabalho de meu pai, eu o conheci ainda criança numa cidadezinha do interior, jogando futebol-de-botão com meus primos. Festeira desde cedo, quatro anos depois, naquele Carnaval, pensei com meus brincos e pulseiras: “Taí o cara!”. Se bem que nada rolou além de alguns abraços encabulados. Nem sequer um beijo – na época, matava-se a sede gole a gole –, mas me fez deixar de lado um relacionamento que eu mal começara com um rapaz bem mais velho que eu, que viajou em pleno feriadão. 

 

O “cara” era alto, magro, queimado de sol e faria 14 anos no final do mês. Na madrugada de Quarta-Feira de Cinzas, ele propôs:

– Fale com sua mãe… Passe lá em casa semana que vem, no sábado... 

– Por quê?

– A turma do bairro vai lá curtir os discos de Tim Maia, Roberto Carlos, The Fevers... Comemorar meu aniversário.

 


Dias depois, na base de dois-pra-lá-dois-pra-cá, dançávamos ouvindo a voz rasgada de Tim: “...Vou pedir pra você ficar/ Vou pedir pra você voltar... A semana inteira fiquei esperando/ Pra te ver sorrindo/ Pra te ver cantando...” E ele se fez de sonso:

– Quer?

– O quê? – me fiz inocente, mesmo correndo o risco de vê-lo me oferecer um pastel com guaraná.

– Você sabe...

– Sei não... Fale!

– Namorar…


Passamos o resto da adolescência tentando nos conhecer e fazendo planos. Em nada nos parecíamos. Ele, depois que o pai se foi, aprendeu a beber e a fumar, deixou o cabelo crescer e só estudava o bastante para passar de ano. Em 1974, resolveu trabalhar num banco e em pouco tempo queria se casar. Eu, fingindo não ter pressa, queria ser médica. Mas todos diziam que ele me completava e vice-versa. Mesmo fingindo gostar de dançar, de ir à praia...

 

No Natal de 1976, aos 19 anos, eu escondia a barriga com flores no trajeto entre a porta e o altar da capela. Era a segunda estação de uma viagem com destino incerto. Partimos num trem sem freios, sem padrinhos importantes nem crédito na praça, mas com o coração bem repartido entre a esperança e a razão.

 

Na viagem, demoramos alguns anos em cinco cidades diferentes e conhecemos, pelo menos, outras 45 pelo mundo afora. Entre 1977 e 1984, chegaram nossos três filhos. De 2008 a 2017, nossos seis netos. Queríamos ser pais e avós exemplares, mas fomos e somos aquilo que conseguimos ser. Nada mais.

 

Tem gente que até hoje me pergunta como é possível ficar tanto tempo com a mesma pessoa. Digo que não sei, ninguém sabe, mas imagino (sem muita convicção) que parte do segredo tenha sido nunca contar com a harmonia perfeita. Depois dos desencontros de opinião, é respirar fundo e jogar os dados novamente.

 

Não existe receita pronta. Sou instável, ele também, assim como nossos filhos e netos, o céu, o mar, tudo e todos. Preservar uma relação não é fazê-la morna, insossa, mas respeitar o vento, na tormenta e na calmaria. Os dois precisam arredondar quinas todo dia (e o dia todo, em caso de isolamento social inesperado), aparar as unhas, interessar-se por coisas que jamais teriam pensado em fazer antes do apito de partida do trem.


Acontece que isso requer doses generosas de maturidade, paciência e renúncia, que não se encontram na farmácia ou no supermercado. Vez por outra, pergunto a algumas amigas: há quanto tempo você não tenta conquistar de novo seu homem como se tivesse acabado de conhecê-lo? Por que insiste em falar de quilos e rugas que se vão acumulando desde o começo da viagem?

 


Descobri com o passar das estações que o importante não é ser a primeira mulher na vida de um homem, mas a última, a definitiva. E vice-versa. E até hoje faço de conta que não percebo o quanto ele sabe ser dissimulado, mesmo dizendo não ser poeta. 


Há sete anos, por exemplo, pouco antes de me aposentar, arrumava as gavetas num fim de tarde (por coincidência, meu aniversário) quando recebi uma mensagem com link para uma canção de Tom/Vinicius que acabou virando trilha sonora dessa viagem ainda com destino incerto (ouça aqui).

 

“...Eu sei e você sabe

Já que a vida quis assim

Que nada nesse mundo

Levará você de mim

 

Eu sei e você sabe

Que a distância não existe

Que todo grande amor

Só é bem grande se for triste

 

Por isso, meu amor

Não tenha medo de sofrer

Que todos os caminhos

Me encaminham pra você

 

Assim como o oceano

Só é belo com luar

Assim como a canção

Só tem razão se se cantar

 

Assim como uma nuvem

Só acontece se chover

Assim como o poeta

Só é grande se sofrer

 

Assim como viver

Sem ter amor não é viver

Não há você sem mim

E eu não existo sem você”

 

Esta semana faz 50 anos que estamos juntos. Ele nunca diz que me ama. Eu finjo que duvido.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Tiro no pé (descalço!)

No final do ano passado, a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ) apresentou projeto de lei que deverá ser apreciado pelo plenário da Câmara nos próximos meses mas já provoca intensa troca de farpas nas redes sociais. A proposta, se acolhida, altera o artigo 155 do Código Penal, isto é, descriminaliza o “furto por necessidade” e define o que é “furto insignificante”.

 

O crime de furto é a subtração de parte do patrimônio de alguém sem o emprego de violência. O Código Penal prevê cadeia de um a quatro anos e multa. A lei ainda admite o aumento da pena para quem furta durante a noite, horário em que as pessoas costumam dormir. Mas quando se trata de pequeno valor, permite a redução da pena ou até o perdão, aplicando-se apenas multa.

 

A justificativa para desqualificar o crime de furto é o recrudescimento da miséria nos últimos anos. O projeto caracteriza furto por necessidade quando “algo for subtraído em situação de pobreza ou extrema pobreza para saciar a fome ou necessidade básica imediata (água, remédio, por exemplo) do responsável pelo ato ou de sua família”. 

 

E será considerado furto insignificante se a perda do ofendido for irrelevante em relação a seu patrimônio total (algo como um bilhão de dólares, no caso do dono do Facebook). 

 

No documento, que já se encontra na Comissão de Justiça e de Cidadania desde 04/02/2022, a deputada pondera que o crime de furto corresponde apenas a 11,7% da população encarcerada, mas aumenta a superlotação nas prisões. E põe o dedo também na ferida do encarceramento seletivo brasileiro, onde negros e pobres têm bem mais dificuldade de acesso à defesa no sistema prisional.

 

Na contramão desse retoque cosmético na lei, que pretende tornar menos injusta uma das nações mais desiguais do planeta, li outro dia que nos últimos três anos a quantidade de armas em circulação no Brasil aumentou mais de 300% depois que se facilitou o acesso a elas. 

 

Ou seja, ainda que o projeto de lei seja aprovado, já está aberta a porteira para o revide a bala por parte daqueles que se julgam ofendidos por essa modalidade de furto, mesmo que não haja ameaça, violência ou qualquer tipo de arma. O ladrão de galinha (se é que sobrou algum), coitado, pode ser liminarmente condenado à morte, em ato de pretensa legítima defesa do dono do galinheiro.

 

Pouca gente se deu conta de que o Brasil já atingiu a marca de mais de 1,85 milhão de colecionadores de armas, atiradores esportivos e caçadores, segundo os institutos Sou da Paz, de São Paulo, e Igarapé, do Rio de Janeiro.

 

E pior – se é que pode piorar! – é que possuem licença especial para comprar. A lei permite que adquiram até 60 armas, sendo que metade delas de uso restrito, como um fuzil capaz de produzir 750 disparos por minuto. Além da compra anual de até 180 mil balas. 

 

Morro sem entender o que pretendem esses colecionadores e atiradores esportivos, admitindo-se que faça algum sentido em relação aos caçadores (menos para a caça, óbvio!).

 

Caçadores, aliás, podem comprar até 30 armas e até seis mil balas. Já para os colecionadores a lei não impõe limites. Diz apenas que podem adquirir até cinco peças de cada modelo de arma e seis mil balas. Como existem centenas de modelos, fico imaginando o tamanho do arsenal que cada “gatilhomaníaco” pode empilhar.


Com esse cheiro de pólvora no ar, outra encrenca séria merece cinco minutos de reflexão: a facilidade de acesso a armas de fogo e a consolidação do desmonte da política de controle que se promoveu nos últimos anos. O assassinato de mulheres em violência doméstica ou por aversão ao gênero da vítima (misoginia) tem como “instrumento” principal o disparo de arma de fogo. Só não enxerga quem, por estupidez ou má-fé, não quer enxergar: arma em casa pode até proteger, mas também arma bandido, inclusive doméstico. 

 

O projeto da deputada, portanto, pode ser um tiro no pé. E também um tiro no escuro (sem trocadilho, por favor!). Para mim, não será surpresa se decidirem aprová-lo com a condição de que também seja acolhida uma proposta do Executivo (PL 3723/2019) que flexibiliza o registro, a posse e o comércio de armas de fogo e munições, escancarando de vez o risco de matança indiscriminada de miseráveis.

 

Talvez até já se cogite abortar o projeto da parlamentar, temendo-se o extermínio em massa de ladrões de goiabas e mangas. Caso contrário, a pretexto de acabar com a fome por outros meios e modos, vai ter neurótico a torto e a direito abatendo beija-flor com tiro de bazuca.


Se ainda estivesse entre nós, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, diria mais uma vez que "A justiça é como uma serpente; só morde os pés descalços". Existem várias formas de se dizer isso, nenhuma com tanto veneno e maestria.


Vai-se ver já existem “sábios” de gabinete discutindo o abrandamento de penas e prazos de prescrição para outros “pecadilhos veniais” como apropriação indébita, desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, peculato, prevaricação, rachadinhas, sonegação e suborno. 

E rindo da cara de bestas como eu, aqui especulando aonde tudo isso vai dar. 

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Golaço de ombro

Mal começa o ano e Roberto Dinamite, com o rosto pálido, olhos sem brilho, anuncia o início de tratamento para tentar derrotar tumores no intestino. E na onda de solidariedade que se forma, aparece Zico, no Instagram: “Bob, amigo... Você sempre foi um guerreiro e vai vencer mais essa luta fazendo um gol de placa... Queremos você sempre com o seu sorriso...”


Conheci Dinamite na noite de 06/10/2013, no Aeroporto JK, em Brasília. Ele, presidente do Vasco da Gama, chefiava a delegação do clube, que acabara de empatar em 1x1 com o Flamengo, no estádio Mané Garrincha. Eu participaria de uma reunião de trabalho na manhã seguinte, no Rio, e aguardava o embarque quando ele se sentou ao meu lado. 

 

Tomei a iniciativa de me apresentar. Logo, ele quis saber se havia como a “minha” empresa patrocinar “seu” clube sem a exigência de certidões negativas requeridas pela Caixa Econômica. Esclareci que a regra valia para todas as estatais envolvidas com marketing esportivo. E tocamos a conversa com amenidades, eu fingindo ser natural estar diante do maior ídolo esportivo de minha vida. 

 

A prosa ganhou cores e dores quando recordei momentos marcantes de sua trajetória profissional – boa parte extraída nas transmissões esportivas da Rádio Globo, no Jornal dos Sports ou na revista Placar. Alguns fatos nem ele lembrava, a ponto de brincar comigo: “Você sabe mais sobre minha carreira do que eu!” E sorriu largo, marca registrada do lendário artilheiro com mais de 700 gols em 1.110 jogos com a camisa vascaína, entre 1971 e 1989. 

 

Não era um centroavante técnico como Tostão, Reinaldo, Careca ou Romário, mas, de sua geração, nenhum fez tantos gols, graças ao porte físico privilegiado, à capacidade de colocar-se bem na área adversária, de antecipar-se aos marcadores e à potência explosiva do arremate, além de, a custo de muito treino, transformar-se em exímio batedor de faltas e pênaltis. 

 

Para Waldir Amaral, ícone do rádio esportivo, era “Dinamite... A camisa com cheiro de gol!”. Para Zico, "o atacante com quem melhor me entendi em jogos da Seleção". Os deuses do futebol, no entanto, tinham outros planos. Não permitiram que a dupla sequer tentasse evitar o fracasso nas duas Copas do Mundo em que estiveram juntos. 



 

Em 1978, na Argentina, Zico sentiu o peso dos gramados castigados pelos rigores do inverno e, substituído pelo esforçado Jorge Mendonça, viu do banco de reservas Dinamite balançar três vezes as redes adversárias, inclusive na vitória contra a Áustria, que livrou o Brasil de voltar para casa ainda na primeira fase.


E em 1982, na Espanha, Roberto descartado pelo treinador Telê Santana – que apostou no tosco Serginho Chulapa –, assistiu das arquibancadas o Brasil perder para a Itália sem ter a chance de atuar 10 ou 15 minutos ao lado de Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior, craques que em um palmo de campo e uma fração de segundo poderiam com Dinamite explodir a muralha italiana e desviar o rumo da história.

 

A conversa flanava por aí quando ele se referiu a Zico. Os dois são amigos há mais de meio século. “O Galo foi o maior jogador de meu tempo. Nós começamos na mesma época, no juvenil. Não foi só a relação Roberto e Zico. Os pais dele, seu Antunes e dona Matilde, iam sempre ao Maracanã vê-lo jogar na preliminar e os meus pais também iam me ver jogar”.


Disse mais: “Eu não o chamo de Zico, chamo de “Galo”. E ele não me chama de Roberto, mas de “Bob”. É uma relação diferente e a gente até brinca que não precisávamos falar mal um do outro para levar 100 mil, 150 mil pessoas ao Maracanã. Crescemos assim. Adversários em campo, mas, acima de tudo, amigos”. 

Evitei tocar num ponto quase trágico. Em 1972, aos 18 anos, Dinamite apaixonou-se por Jurema, viúva e com um filho, seis anos mais velha que ele. A família dele não aceitou o romance e isso o atormentava bastante. Um dia, então, quase marca um gol contra, segundo a revista Placar: engoliu de uma vez vários comprimidos que sua mulher usava. 


“Eu vinha guardando aquela angústia só para mim. Tomei uma dose reforçada de calmante, mas não tinha a intenção de me suicidar... Só queria dormir uns dois dias seguidos para me desligar do mundo” – declarou à Placar. Jurema, que o levaria às pressas ao hospital naquele dia, morreu em 1984, precocemente, vítima de insuficiência renal crônica, deixando órfãs três crianças.

 

Quase tudo passa. Dinamite casou-se de novo e, mais adiante, em 1993, fechou a carreira de futebolista, virou político (vereador e deputado estadual) e dirigente esportivo. Hoje, aos 67 anos, ocupa cargo honroso e intransferível: avô de Valentina e Bento.

 




O Galo, querido amigo de meu ídolo, sabe quanto um ombro é importante para o gol de placa pelo qual ele torce. Quem sabe assim o velho Bob volte a sorrir largo com as cores, as dores e os sabores da prorrogação do jogo. E aí iremos todos cantar de coração...

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Bagunça das boas

Semana passada toquei no assunto, mas sem maiores detalhes. Durante certo tempo, aos sábados, juntávamos dez irmãos na casa da matriarca para beber cervejas, falar de conquistas e frustrações e ouvi-la de novo a nos convocar à velha mesa onde ajoelhávamos diante do panelão do dia, mesmo depois de casados e da chegada das primeiras crias de uma nova geração. 

 

Etiqueta nenhuma! Quase todos colocavam os cotovelos sobre a mesa. Embora a atitude passasse um ar de desleixo, era importante garantir espaço roubando daqueles que estavam ao lado, sob pena de perder os melhores pedaços. Manter os cotovelos junto ao corpo, apoiando apenas os antebraços ou os punhos, como reza qualquer manual de bons modos, poderia levar o bem-educado a deixar a mesa com fome, procurando reforço de cream crackers

 

Ilustração: Umor

Ninguém usava adequadamente os talheres. Não adiantava a mãe lembrar que o garfo deveria ser usado na mão direita, enquanto a faca descansava na parte superior do prato, com a serra voltada para dentro. Ou que quando precisasse usar faca, o garfo iria para a mão esquerda e a faca para a mão direita. Que a faca não deveria ser usada para ajudar a colocar a comida no garfo etc. 

 

Teve a namorada de um de meus irmãos que tentou explicar aos cunhados mais novinhos – na esperança de sensibilizar também os mais velhos, claro! – que se deveria manusear os talheres com os dedos e cortar o alimento à medida que fossem comendo. Depois que se começasse a comer, “os talheres jamais devem tocar a mesa”, dizia com jeitão de professora de ensino fundamental. 

 

De nada adiantou. Uns não controlavam a ansiedade enquanto a comida não era servida e faziam dos talheres baquetas sobre os pratos transformados em tarol, caixa e surdo de uma banda marcial de desfile escolar até ouvirem a ordem unida da “baliza” com o caldeirão de cozido fumegante nas mãos: “Parem com isso, agora!”. E ai de quem tentasse um dobrado a mais simulando uma corneta com a boca!

 

Também não ouviam a matriarca pedir para que se servissem aos poucos quando a comida chegasse à mesa, que não deixassem o prato transbordar. Não botavam fé nessa história de que, se continuasse com fome após o primeiro prato, poderia repetir. Na hora, ninguém se preocupava muito com terceiros, embora fossem forjados desde cedo a calcular mentalmente quantas porções havia para cada membro da família, não se servindo de forma exagerada a ponto de deixar um irmão com fome.

 

Outro conselho repetido em vão era para mastigar devagarinho, em pequenas garfadas e sempre de boca fechada, ainda que se argumentasse que não haveria uma pausa muito grande até engolir o alimento para poder voltar a conversar. “Quem come devagar fica sem pudim, vó!”, ponderou certa vez um netinho que mal aprendera a falar.

 

Uma vizinha que gostava de aparecer justamente na hora do almoço certo dia alertou: “Jamais gesticulem com os talheres na mão enquanto mastigam ou conversam. Além disso, evitem gestos bruscos. Levem o alimento até a boca e não a boca até o alimento”. Enquanto discursava, quase teve a mão perfurada por um garfo nervoso em busca de uma moela de galinha.

 

E teve outra que pecou pela incoerência: “Não peguem carnes com ossos, como costela de boi, frango e carneiro, com as mãos. Usem garfo e faca. Tirem o caroço de azeitona da boca com a ponta do garfo e coloque-o na beira do prato, nunca sobre a mesa”. Logo depois era vista roendo uma costeleta de porco, para decepção da cadelinha vira-lata que integrava o arranjo familiar e que parecia dizer: "ah, esses animais racionais!" 

 

Ninguém ligou quando a vizinha prosseguiu dizendo que não se deveria cortar o macarrão. “O talharim e o espaguete são servidos inteiros e comidos com garfo. Comecem a enrolar pelas bordas do prato e não pelo centro, senão a garfada ficará grande demais. Ao levar à boca, se alguns fios ficarem pendurados, simplesmente corte-os com os dentes”. 

 

Até uma de minhas irmãs, um dia, achou de orientar os sobrinhos para que dobrassem a alface e outras folhas antes de comer. “Façam trouxinhas e coloque-as na boca delicadamente...” Um deles olhou-a dos pés à cabeça e provocou gargalhadas: “Olhe, tia... Sei não, viu?!”

 

Desde cedo a matriarca exigia que evitássemos ruídos ao tomar caldos, canjas, sopas e outros líquidos. “Nunca levante o prato para tomar até a última gota. E se houver pão para acompanhar o prato, parta e coma com a mão”, ensinava. Mas se alguém lembrasse que ninguém fazia como ela uma sopa de feijão, entregava os pontos sorrindo inclusive com os olhos: “Cê acha? Por quê?  

 

De um dos últimos encontros de que me recordo, ela nos recomendava que qualquer imprevisto que surgisse, como um pedaço de folha de alface grudado no dente, fôssemos discretamente ao banheiro resolver o problema. E uma das netinhas foi logo pedindo maiores detalhes: “Vó, só folha, né? Pode soltar arroto e pum?”  

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Tá perdoada, mãe!

Eu já a perdoei por todas as mamadeiras de mingau de amido que me serviu depois da chegada de meus irmãos mais novos, quando perdi o direito às tetas maternas. Também por todos os bolos, coalhadas, cuscuzes, omeletes, papas, pastéis, pudins, sorvetes, sopas, tapiocas e tortas com que ela, sem dolo ou má-fé, apostou em mim a sua própria perpetuidade. 

Perdoei ainda as horas de quintal e de rua que me foram confiscadas para mexer panelas de doce de leite, caju, goiaba, mamão, ou de canjica e pamonha. É certo que havia algum pagamento em raspas de tachos, mas sob ameaça de castigo – meia hora num canto da cozinha, inalando aquela profusão de cheiros – caso a massa grudasse no fundo da caçarola.

 

Relevei também todas as vezes em que tive que acordar cedo e ir à padaria comprar pães, ainda que ela fingisse não ouvir quando eu lhe contava que um ou outro caíra do pacote e que, só para não dar gosto ao cão, eu me impunha o sacrifício de comê-lo ainda quente, mesmo sem manteiga.

 

Esqueci até das cestas e sacolas que carregava nos dias de feira livre, sol e chuva, suor e lama. Eram quilos e mais quilos de frutas, carnes, legumes e verduras, para prover uma Frigidaire cujas heróicas dobradiças, diferente de mim, nunca deram o menor sinal de fadiga. 

 

Também a desculpei por todas as vasilhas que guardava no forno para que eu pudesse almoçar depois do meio-dia, ao chegar da escola ou do trabalho. O corre-corre da tarde passava a rodar em câmera lenta diante da carne-de-sol com arroz de leite, do picadinho ou do sarapatel. E uma banana frita coberta com queijo coalho derretido, polvilhada com canela, repunha cada coisa no seu devido lugar da garganta para baixo.

 

Nem fiquei ressentido pelos sábados em que voltava ao bairro onde sorri e chorei todas as circunstâncias de minha puberdade. Vinha (agora com esposa e filhos) juntar-me aos irmãos e ouvi-la de novo a nos chamar à mesa onde devoraríamos, sem a menor etiqueta, um panelão de guisado com purê de batatas, arroz, feijão verde e farofa de ovos. 

 

Tenho um amigo mineiro que também já deve ter perdoado a sua mãe – estou seguro disso! – por tudo o que passou nos primeiros anos de vida: doces de leite, em tabletes (“cortados em losangos”), de mamão ralado (“bem durinhos, açucarados”), pudim (“com miolo cremoso, que a gente não comia... chupava”), mexido de queijo (“rapadura derretida na panela, com queijo e farinha”). 

 

E não esquece do arroz cozido com uma pimenta-de-bode, “finalizado com fatias de queijo, cobrindo toda a panela”; lombo recheado, “guardado na lata de manteiga (banha)”; almôndegas, também “envelhecidas” na lata; “sopa” de frango (pirão, com açafrão, alho e cebolinha); mexido de abóbora (abobrinha batida, refogada com açafrão, acrescentando-se farinha, cheiro verde e ovos); pele torrada (pururuca); macarrão “frito” (refogado no tomate bem “reduzido”); “mogango” (um parente da abóbora) cozido; feijão refogado na panela de ferro, na gordura de porco… 

 

Outro amigo, na bruma de sua saudade, quase abre o chorador ao recordar da "bruaca" cearense, uma pequena panqueca feita à base de farinha de trigo, açúcar, leite e ovos, servida com cobertura de mel. “Eu arrancava da mesa na terceira marcha, com uma energia danada para as atividades de pernas, braços e punhos de todo moleque”. Não duvido disso, nem que lhe restem mágoas em relação à mãe.

 

No meu caso, ao perdoar a minha, ponderei que na origem de tudo ela foi vítima de meu pai. Apaixonado pela ninfeta de 16 anos, ele a dedicou, com amor, carinho e tempero – e outras intenções, naturalmente! –, um exemplar de “Dona Benta”, a bíblia culinária que veio à luz na metade do século passado e que até hoje constitui um raro manual da arte de bem comer e viver. 

 


Sim, ela está perdoada, mas sabe que não tinha o direito de fazer o que fez só por minha causa (e por meus irmãos). Todos os amigos que cruzaram o meu caminho, que tanto deixaram de si e quase nada levaram de mim, mereciam desfrutar da prateleira de cheiros e sabores que experimentei. Ela deveria trazê-los do futuro ao começo da jornada. Toda mãe, protegida que é, consegue quase tudo o que pede ao dono do tempo. 

 

Filhos nascem, crescem e morrem sozinhos. Só quando partilham o que comem (e bebem, é claro!) com amigos do peito é que podem criar a ilusão, ainda que fugaz, de que não estão perdidos na multidão.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Pisaram no Tomate

Você que ainda perde tempo com o futebolzinho que andam jogando no Brasil já deve ter ouvido falar de Gentil Cardoso (1906 – 1970), um técnico que fez sucesso na metade do século passado. Seu discurso paternal e folclórico incorporava o palavreado do povo com leituras de Gandhi e dos filósofos Cícero, Platão e Sócrates. Expressões suas são lembradas até hoje, como: "quem se desloca recebe, quem pede tem preferência"; "craque trata a bola de você, não de excelência"; "vai dar zebra" etc. Foi ele o primeiro a chamar de “cobra” atacante perigoso. E dizia que “brinca nas onze” aquele que era capaz de atuar em várias posições. 

 

Era um entusiasta da troca de passes curtos, do jogo de pé em pé que mais tarde encantaria o mundo quando o Barcelona de Guardiola, Iniesta, Xavi e Messi mexeu com a estética do jogo, dentro de uma lógica puramente “gentil”: “A bola é feita de couro; o couro vem da vaca; a vaca gosta de grama; logo, lugar de bola é rolando no gramado”. 

 

Um dia, no entanto, vendo o time ser goleado, Gentil pediu a seus jogadores para darem bicos para cima. Tinha uma  justificativa pragmática: “Enquanto a bola estiver no alto, não tem perigo de gol aqui embaixo”. Sinal de que ser coerente com aquilo que se acredita é uma coisa; ser obsessivo, psicopata, é outra. Tem gente que mistura tudo! E o pior que pode acontecer é a coerência com os próprios erros, repetidos, onde o sujeito se recusa a evoluir.

 

Reza uma velha lenda urbana que, em 1952, ano em que Gentil Cardoso seria campeão carioca pelo Vasco da Gama, apareceu no estádio de São Januário, para experiência no time de aspirantes, um garoto esguio, desengonçado, ambidestro, genuvalgo (zambeta ou pernas de tesoura), morador de uma comunidade perto do pavilhão onde hoje se localiza o Centro Cultural de Tradições Nordestinas, a Feira de São Cristóvão. 

 

O moleque exibiu de uma área a outra do campo um vasto repertório de toques e trivelas, demonstrando talento para a coisa, o que levou Gentil Cardoso a presumir que testemunhava o nascimento de um astro, quem sabe um novo Danilo, centro-médio vascaíno titular da Seleção Brasileira. No final do treino, quis saber:

– Menino, como você se chama?

– Cleofas, chefe!

– E seu sobrenome?

– Das Dores… Só tenho mãe.

– Mas tem apelido?

– Lá na Barreira o pessoal me conhece como Goiaba. 

– Sei... – desiludiu-se Gentil – Meu filho, você já viu algum jogador vingar com um nome desses?

O menino foi-se embora. Nunca mais foi visto por lá.

 

No ano seguinte, já trabalhando no Botafogo, Gentil Cardoso não pisaria no tomate novamente ao encarar outro apelido incomum. Viu, aprovou e lançou no time principal um certo caçador de passarinhos de Pau Grande, 3° distrito de Magé-RJ, ponta-direita de 19 anos que ali treinava pela primeira vez e que mais tarde seria mundialmente reconhecido como uma lenda do futebol. Não era Goiaba, claro, mas outra figura chapliniana leve e livre como um rouxinol, uma cambaxirra ou carriça. 

 

Garrincha e Gentil Cardoso, 1953

Vi pela TV, agora no começo do ano, quando o acreano Tomate, goleiro da equipe sub-20 do Andirá-AC, ao ser substituído durante a partida da Copinha São Paulo contra o Atlético-MG, deixou o campo contrariado e caiu no choro no banco de reservas, causando comoção nas redes sociais. 

 

Eduardo Silva, conhecido como Tomate, vinha fazendo uma boa partida contra o Galo, sendo até aquela altura o principal responsável pelo resultado em 0 a 0. No entanto, quando uma penalidade foi marcada contra o Andirá-AC, o técnico resolveu substituí-lo por um tal de Carlos, que não impediu que a cobrança abrisse o placar do jogo. Em esportes que o goleiro possa sair e voltar, tudo bem; no futebol, não faz sentido!

 

A noite de Tomate, porém, acabaria em pizza, com demonstrações de apoio nas redes sociais. O atacante da seleção brasileira Richarlison escreveu: "Deus te abençoe, moleque. Você estava bem demais". Já o goleiro Weverton publicou: "Você brilhou e fez seu melhor, segue firme e levanta a cabeça. Deus te abençoe". Antes do jogo, Tomate tinha pouco mais de 1000 seguidores no Instagram e já soma agora mais de 400 mil. 

  

Se Gentil Cardoso fosse o treinador do time acreano, imagino, já teria alertado o moleque, em início de carreira, a manter o seu nome de batismo (Eduardo). Ou assumir um nome “artístico” como Edu, Dudu, Ado etc. Ser chamado de Tomate deve doer tanto quanto de Alface, Cará, Jiló, Mandioca, Maxixe, Nabo, Quiabo, por aí…

 

Não que Eduardo (Edu, Dudu ou Ado) fosse defender a cobrança do pênalti naquele dia e evitar a derrota do Andirá-AC para o Atlético-MG, mas já teria ouvido do "filósofo" que desde que o mundo é mundo o nome (ou apelido) é a etiqueta colada à imagem que cada um vende de si mesmo.  


A não ser quando se nasce Garrincha naquilo que se faz. Aí, até Goiaba ou Tomate serve.

 


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

De queixo caído…

Apesar do clima de casa-de-mãe-joana reinante entre nós, quem parece nunca perder dinheiro são os bancos. Lembram o joão-teimoso, aquele boneco de borracha ou plástico com base abaulada onde se concentra a maior parte de seu peso, o que o leva de volta à posição vertical a cada tentativa de derrubá-lo. Aplica-se também ao líder político da predileção de cada um.

 

Problemas como conexão remota “fora do ar”, cartões de crédito não solicitados, juros abusivos, tarifas exorbitantes, portas discriminatórias etc., ainda tiram os clientes do sério. Mesmo assim, não dá para comparar o sistema bancário clássico ao universo da agiotagem e seu repertório de perversidades. 

 

Digo isso porque, depois de mais de 40 anos lidando com atividades financeiras, eu seria capaz de jurar que tinha visto tudo. E só agora, aposentado, fiquei sabendo de um caso que deixa qualquer pessoa de queixo caído. 

 


Li no Correio Braziliense, semana passada, que nos primeiros dias do ano tramitou pela Suprema Corte espanhola um processo que repercutiu nos quatro cantos do mundo (a prova cabal e definitiva de que o mundo é plano! Só não vê quem não quer!) pelo seu caráter, no mínimo, insólito: validou-se o pedido de uma mulher que pagou uma dívida com seu ex-cunhado mediante a prática de sexo oral. 

 

A esta altura da vida, já calejado pelo desenrolar dos costumes, não tenho o direito de me escandalizar com nada, mas esse caso me levou a refletir: os preços realmente estão pela hora da morte! A seguir nessa marcha, aonde vai dar a humanidade?

 

O valor total da dívida era de quase R$ 100 mil e a Justiça já tinha admitido o pagamento na forma desejada pelo cidadão, desde que houvesse consenso entre ele e a ex-cunhada. Isso dito da boca pra fora (sem trocadilho, por favor!), óbvio.


Depois, entretanto, ela recorreu de novo à Justiça, após a suspensão do inusitado pagamento de prestações. O credor teria exigido que o resto fosse pago em moeda corrente. 

 

Ilustração: Umor 

Como a mulher nunca procurou as autoridades para denunciar o homem por coerção sexual ou coisa do gênero, a Justiça concluiu que os atos foram consensuais entre as partes envolvidas e arbitrou que a dívida estava extinta, ainda que não houvesse um recibo com firma reconhecida, dando plena, rasa e irrevogável quitação. Isso após a mulher esclarecer que só prestara queixa porque recebeu uma ligação do ex-cunhado cobrando o restante.

 

Para mim não ficou totalmente claro quem fazia o quê, como, quando e onde. Na minha falta de malícia, enxerguei apenas o quanto e o porquê. 

 

Pode-se indagar, portanto: e se as posições de credor e devedora estivessem invertidas – em todos os sentidos, se é que me faço entender! –, será que a notícia teria se espalhado com tanto estardalhaço, ou o barulho tem a ver com os torpes sentimentos de aversão, repulsa e desprezo pelas mulheres e pelos valores femininos, no contexto da misoginia enraizada entre os trogloditas? 

 

Pensei rabiscar breve crônica sobre a ocorrência. Já tinha até escolhido o título, numa alusão ao mais antigo recinto de transações bancárias (a plataforma de pagamentos e recebimentos): “Na boca do caixa”. Desisti para não criar constrangimentos em alguns leitores e leitoras mais sensíveis, nem ferir o decoro literário que me imponho para preservar a castidade de quem ainda se interessa pelos meus textos.

 

E não pretendia mais tocar no assunto, porém começaram a martelar em minha cabeça algumas sentenças inesquecíveis da obra do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, pela atualidade com que já abordava, ainda na metade do século passado, os mistérios insondáveis das relações humanas:

"Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam." 

 “Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava.”

“O que dá ao ser humano um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões.”

“Hoje, é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo.” 

“O dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” 

 

Agora me pego mergulhado em conjecturas sobre como seria o manual de procedimentos desse tipo de negócio num banco tradicional. Quem seria o responsável pela avaliação da capacidade de pagamento, antes da formalização do contrato? Que tipo de checklist seria elaborado pela área de controles internos para avaliar a qualidade da operação pactuada? E o roteiro de auditoria estabelecido para checar a aderência da transação com as regras normativas? E como as autoridades monetárias classificariam esse tipo de negócio, caso seja dispensado documento formal e fique tudo na base do boca-a-boca ou do fio do bigode? Seria considerado um empréstimo de liquidez garantida ou a fundo perdido? Sei não...

 

É duro admitir que a mercantilização do corpo ainda esteja acontecendo no planeta em que vivemos, onde o dinheiro, pelo visto, não só continua falando alto, como também fazendo muita gente calar a boca. Literalmente, inclusive.

 

Como qualquer pessoa – exceto as quase perfeitas, que nunca as encontrei, mas devem existir –, penso que o ser humano talvez ainda tenha uma chance de dar certo. Noutra galáxia, quem sabe, devidamente reciclado. Feito lixo.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Por alguns punhados de dólares

 Menino ainda, ele saía do cinema nas matinês de sábado com um toco de cigarro de mentira no canto da boca, as pernas arqueadas e as mãos prontas para sacar revólveres imaginários, rolar os gatilhos nos dedos fura-bolos e disparar contra bandidos fantasmas. Na sequência, com o olhar gelado, soprava a fumaça do cano das armas e seguia adiante. Ao fundo, ouvia-se o assobio da trilha sonora de “Por um punhado de dólares”.

 


Para o menino, no Velho Oeste tudo se resolvia na bala ou na ponta do punhal. Lugar de ladrões ousados que saqueavam em plena luz do dia, ávidos por, nas horas de folga, violentar as donzelas mais formosas. Terra também de dançarinas ruivas e voluptuosas nos 
saloons e de caubóis de bravura indômita, inclusive contra pele-vermelhas que resistiam em desocupar áreas de garimpo de pedras preciosas. 


Ele cresceu. Aprendeu nos livros que o Velho Oeste era bem diferente daquilo que os filmes davam a entender.  Que, na verdade, as únicas terras ocupadas ficavam no Leste norte-americano até a metade do século 19, entre o oceano Atlântico e o Mississipi, rio de 6.270 km que corta o país, de Norte a Sul, em pedaço equivalente a um quarto do território atual. 

 

O avanço para além do Mississipi aconteceu apenas por volta de 1848, com a descoberta de ouro na Califórnia. Menos de 20 anos depois, surgiu a lei federal que concedia terras a quem se dispusesse a ocupá-las por pelo menos cinco anos. E a região começou a ser povoada. 

 

No começo, as cidades não tinham prefeituras, delegacias nem tribunais. Vem daí a lenda de matadores cruéis e baderna generalizada? Mas os assentamentos eram rigidamente controlados pelo governo, obrigando-se os pioneiros a remeter mapas e documentos propondo o reconhecimento de seus domínios. 

 

Depois, foram criadas regras locais, instituindo-se os poderes independentes e harmônicos entre si (legislativo, executivo e judiciário) para, segundo a teoria de Montesquieu, afastar o risco de governos absolutistas e evitar a edição de normas tirânicas. 

 

O menino virou sessentão grisalho, cheio de dores, dúvidas e netos. Já não acredita nas peripécias de Django, Pecos e Trinity no Velho Oeste. Aliás, ele me contava, outro dia, que está ultimando uma peça teatral sobre a disputa à prefeitura de próspera cidadezinha à margem do rio Mississipi. 

 

De cara, o autor me disse que qualquer semelhança com a realidade é absolutamente proposital. Concorrem ao cargo um ex-prefeito sentenciado (Django) e o xerife que o prendeu (Pecos), além do atual alcaide (Trinity), eleito há três anos como o paladino do combate à corrupção. 


Cada candidato é totalmente diferente dos outros dois, mas com o mesmo teor de acidez e sem qualquer pastilha de hidróxido de alumínio à mão. Nessa dança de lobos, só não vale botar a mãe no meio. Ela não tem culpa do que sobrou daquilo que pariu e mamou em seus peitos.

 

Há quatro anos, Django puxou cadeia braba por obra do xerife Pecos, que se jacta de haver recuperado para os cofres da prefeitura bilhões de dólares de corruptos confessos. Mas, confirmada a obtenção irregular de algumas provas, Pecos teve seus atos anulados pela Justiça, ensejando a libertação de Django.

 

Ao pé da letra, em julgamento restrito a um dos processos (de vários em andamento), as comportas foram abertas para uma enxurrada de anulações e prescrições, libertando-se inclusive outros condenados que, serelepes, já batem as asas por aí se passando por anjos de candura.

 

A Justiça, contudo, garante que o processo que deu origem à bagunça foi apenas transferido de jurisdição e que caberá ao juízo competente decidir se aproveita as demais provas existentes. Ocorre que ninguém na cidadezinha acredita nisso.

 

Pecos escondeu suas pretensões enquanto ostentava uma estrela no peito, mas logo topou se juntar ao grupo de Trinity. Expulso da panela numa briga interna de egos, é visto como traidor pelo ex-chefe e seus asseclas. E Django, na mão inversa com seus sectários, o acusa de tê-lo condenado apenas para evitar que vencesse as últimas eleições.


Corre então o boato de que eventual vitória de Django será atribuída à Justiça, que o teria recolocado no jogo apenas para inviabilizar a reeleição de Trinity. É aí que Pecos entra novamente em cena, ungido por donos de grandes jornais, ranchos e bancos, interessados numa alternativa ao duelo entre Django e Trinity. Torce pelo tipo de troca de tiros em que os dois caiam simultaneamente. Algo que a física tem dificuldade de explicar, mas comum naquele meio.  


O autor só não sabia ainda como encaixar na história o destino de bilhões de dólares recuperados de corruptos confessos. A quem devolver a dinheirama confiscada sem provas irrefutáveis dos crimes? Como utilizar numa finalidade justa e inadiável?


Decidiu pedir minha opinião. Não sou mais bancário nem especialista no tema, mas propus que a grana seja direcionada para a compra, em verdinhas, de um lote de vereadores reconhecidamente sem-vergonhas. É preciso assegurar a governabilidade do próximo governo. 

 

O autor gostou da dica, porém ainda luta para encontrar interessados na produção do espetáculo teatral. Talvez consiga montá-lo abaixo da linha do Equador, onde, dizem, não existe pecado, mas os ladrões continuam saqueando em plena luz do dia.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Tiro por mim… Muda tudo!

Já se foi o tempo em que, de tardezinha, mesmo nos bairros mais nobres das grandes cidades, era costume as vizinhas se darem boa noite, levarem cadeiras de balanço para as calçadas e baterem com gosto a língua nos dentes, retirando as aranhas da garganta, a falarem de tudo e de todos enquanto aguardavam a janta. 

Vivemos em casulos domésticos desde antes da pandemia, o que tem nos isolado cada vez mais. Grades ou telas nas janelas não conseguem mitigar o tédio de almas carentes de calçadas e quintais, engolidas pelo uso desmedido de celulares e pela programação da TV divulgando da forma mais cruel a barbárie da hora. 

Tiro por mim, aqui debruçado sobre uma triste constatação no fechamento do balanço de meus atos e omissões durante o ano. Moro há tempos em prédios residenciais e, afora os cumprimentos inevitáveis e protocolares no elevador ou na garagem, não me recordo de haver trocado três palavras com vizinhos sobre algo de fato relevante, capaz de propiciar retorno reflexivo mútuo.  

 

Ilustração: Umor 

Nunca contei a meus vizinhos, por exemplo, de minha hipertensão arterial ou do déficit pulmonar crônico de que cuido com extremo zelo e custo para retardar ao máximo a aventura de uma internação hospitalar. Mas também nada sei (nem procurei saber!) da possível agonia deles com aluguel em atraso, disfunção erétil, frustração profissional, ingratidão de filhos, menstruação atrasada, queda de cabelo, risco de desemprego ou suspeita de chifre. É a indiferença recíproca escorrendo pelas frestas das portas.

 

Quando morei pela primeira vez na Bahia, no começo dos anos 90, certa noite ouvi gritos que vinham do hall de elevadores. Uma moça aflita, na casa dos 25 anos, estapeava a porta de meu apartamento, a pedir por tudo que a abrisse. Tinha hematomas em um dos olhos e sangue nos lábios, machucados. Acabara de ser espancada por um sujeito que escapuliu correndo pela escada de incêndio sem dizer uma só palavra.

 

Fiz o que pude para aliviar as dores da visitante e de um filho de três ou quatro anos que a tudo assistia, perplexo, sem derramar uma lágrima sequer até cair no sono. Ela não quis, de jeito nenhum, prestar queixa na delegacia, apreensiva com as consequências para o agressor. Ainda não se falava em Lei Maria da Penha para tratar casos de violência doméstica, mas já era bastante difundida a terapia aplicada por outros presos aos que se faziam de valentes com mulheres e crianças indefesas. 

 

Uma semana depois, encontrei o casal na recepção do prédio. Aparentemente, ficaram constrangidos quando me viram. Estavam de mãos dadas, trocando arrulhos e olhares. Soube mais tarde que o marido ficara inconformado, naquela noite, com a proposta recebida de sua mulher, que se dizia apaixonada por uma amiga querida e pretendia partir, levando consigo a criança, mesmo abrindo mão de direitos sobre os bens do casal. Não sei o rumo que o caso tomou.  

 

Dez anos adiante, já morando em Brasília, uma colega de trabalho, que também chegara do Nordeste trazendo na bagagem hábitos atávicos como compartilhar com vizinhos iguarias feitas em casa (canjica, pamonha, fatias douradas ou rabanadas etc.), estranhou bastante algo que lhe aconteceu. 


Em sinal de predisposição à boa vizinhança, ela quis aproximar-se de sua vizinha de andar oferecendo metade de um bolo cremoso de milho verde com coco ralado que havia preparado. 

 

Decepcionou-se. No dia seguinte, viu o embrulho que havia oferecido atirado na lixeira do subsolo. A vizinha, desacostumada com esse tipo de mimo, provavelmente temeu envenenamento ou coisa parecida e o descartou. Ainda bem que restaram dois dedos de lucidez: não cometeu a insanidade de doar o pacote à faxineira, se desconfiava de seu conteúdo. Também não sei do desenrolar dessa história.

 

Mas nem tudo está perdido. Em Alagoas, sei de uma viúva que, aos 83 anos, morando sozinha por opção (apesar de matriarca de uma prole de nove filhos, 23 netos e 24 bisnetos), nunca se acostumou a cozinhar exclusivamente para si própria. Quase todo dia minha mãe compartilha seu almoço com os empregados do prédio onde reside, recebendo em troca cuidado e gratidão. 

  

Tudo bem, a exceção não conta! O mundo precisa – a partir de mim, reconheço – de mais gente aprendendo a lidar com o vizinho de porta, de prédio, de rua. Mesmo nesta época do ano, onde paramos para refletir sobre o que se fez ou deixou para depois, passamos uns pelos outros com o desdém de nossos silêncios, de nossa cara incrustada de convicções inabaláveis.


 

Penso que a meta fatal de alguns deprimidos – não é o meu caso, que fique bem claro!  somente é atingida porque falta um vizinho na hora mais solitária que pare por dez segundos, olhe bem dentro de seus olhos e lhe deseje, genuinamente, um ano novo feliz. Muda tudo!