quarta-feira, 29 de março de 2023

Sem motivo, juro!

Você não deve condenar os invejosos. No lugar deles, certamente também iria querer ser você, concorda? Se eu tivesse sido poderoso como meus filhos pensavam, rico como minha mãe achou que eu seria e irresistível como minha mulher ainda tem certeza de que sou, não vou negar: eu teria inveja de mim.

 

Você já ouviu falar na expressão inveja masculina? Pode parecer estranho à primeira vista e o motivo seria que esse sentimento sempre foi associado às mulheres. Nada mais sexista. É outra forma de colocar as mulheres em posição de inferioridade em relação aos homens.

 

Dito de outra forma, é como se a inveja não fizesse parte do acervo de emoções do homem, porque ele seria um ser “completo”. Não é assim. Manifesta-se quando qualquer pessoa se sente ameaçada diante da possibilidade, fantasiosa ou não, de ser preterida na escolha de determinado cargo profissional, ao ver a pessoa amada com outra, essas coisas. 

 

Enfim, estou seguro de que a inveja também é coisa de cabra macho. E nem preciso me reportar às cenas explícitas que testemunhei no mundo corporativo durante mais de 40 anos trabalhando numa grande empresa.

 

Acredite se puder, mas já fui alvo desse sentimento da pior forma possível: vindo de um dos maiores expoentes da música brasileira, praticamente uma unanimidade em termos de qualidade e sofisticação musical. 

 

Não vou citar o nome – você vai acabar descobrindo – para não reabrir feridas mal cicatrizadas no coração de um cara que sempre admirei, ainda inconformado com algo ocorrido há exatamente 10 anos. 

 




Talvez você o conheça como maestro, pianista, compositor e cantor, tão apaixonado pela Mata Atlântica que deixou transbordar todo o seu amor à natureza em belíssimas composições, que ganharam o mundo na voz de grandes intérpretes. 

 

Em 1962, eu tinha apenas quatro anos de idade, crescia no Sertão paraibano como qualquer moleque cabeçudo, desdentado e feio. Não sabia nada do que estava acontecendo no Rio de Janeiro quando ele e um certo poeta, amigo dele, batendo pernas na orla de Ipanema, se depararam com uma cena trivial: uma menina que caminhava pela areia a caminho do mar.

 

Digo trivial porque outras pessoas devem ter visto a cena e não enxergaram nada de mais, porém as curvas e os traços daquela menina flecharam o coração do invejoso e de seu amigo poeta, que decidiram ali mesmo compor uma canção para eternizar o instante no mais famoso bairro da Zona Sul carioca.  

 


A garota se tornaria nacionalmente conhecida somente em 1964, quando iniciou sua carreira de modelo trabalhando para revistas e agências de publicidade. Depois, chegou a participar de novelas de televisão e apresentou o programa “Ela”, nos idos de 1984. Atuou ainda como empresária e escritora de sua autobiografia.

 

Você deve estar curioso sobre o porquê o invejoso, que se mudou para o outro plano em 1994 – onde encontraria o seu amigo, desaparecido havia 14 anos –, teria inveja de mim, um reles bancário que nunca morou no Sudeste nem aprendeu a tocar um mísero instrumento musical, fosse cuíca, prato, reco-reco ou tuba.

 

Em verdade vos digo que tudo não passou de um lamentável mal-entendido por parte dele. Torço pela chegada do momento em que, pessoalmente, poderei explicar o ocorrido, mas que fique bem claro: que isso se dê daqui a 30 anos, no mínimo.  

 

Falando sobre ele, aliás, há pouco tempo a citada garota, numa entrevista na TV, revelou que foi pedida em casamento na época da criação de “sua” música. E confessou que ficou balançada com a proposta, mas teve medo. Ela contou:

 

"Ele era casado e eu falei: ‘Mas como?’. Ele disse que sua vida sentimental não estava muito boa e que não parava de pensar em mim. Eu, então, disse que não podia me casar com ele porque era virgem! Olha a minha inocência na época. Achava que ele queria se casar para tirar minha virgindade"

 


Pois bem. Há 10 anos, em pleno Carnaval de 2013, no Rio de Janeiro, eu fui apresentado a ela – agora, uma distinta madame, vivendo no eixo Rio/São Paulo –, a paixão mal resolvida do invejoso, que lá no céu deve ter movido os seus pauzinhos, invocando os privilégios conferidos aos músicos e poetas de boa vontade, para mergulhar nos pensamentos dos viventes aqui embaixo. E deve ter visto algo que lhe deixou furioso, transtornado.

 

Digo isso porque uma repórter-fotográfica, que por acaso registrou o nosso encontro naquela noite, cochichou nos ouvidos dela (eu ouvi!), querendo saber sobre quem estava do lado, talvez imaginando que a imagem pudesse render algum dinheiro junto às revistas de fofocas. 


Ela ficou calada. Mas o semblante risonho e enigmático certamente deixou o cara aborrecido. Sem motivo, juro! Eu já tinha uma garota (das praias de Alagoas) desde os anos 1970.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Segue o baile

Meu filho, hoje quarentão, outro dia compartilhou comigo a nova grade de aulas complementares de meus netos, ambos no 1º ano do ensino Médio de um colégio no bairro do Tatuapé, em São Paulo.


Não sou do ramo, longe disso, mas fiquei animado. E não só por conta da titulação rebuscada das cinco trilhas de aprendizagem no contraturno escolar de segunda a quinta-feira. Veja: Gestão de negócios e consumo sustentável; Paz, justiça e instituições eficazes; Saúde e bem-estar; Ação contra mudança global do clima e Escola de negócios: crescimento econômico global. 

  

Há quatro décadas, já membro, a contragosto, da “elite” pagante de mensalidades escolares, me indignava com a excessiva mercantilização da educação. No começo de cada ano letivo, cobrava-se dos pais de alunos desde rolos de papel higiênico até caixa de fósforos, passando por barbantes, bolas de isopor, canudos, garrafas, pregos, velas etc., numa lista interminável de materiais “escolares”. 


Ficava intrigado: se todos os alunos cumprissem aquela demanda, a escola teria de possuir um depósito bem superior à biblioteca, e precisaria de uns três empregados só para classificar, organizar e armazenar o material. Parece que não era o caso.

 

Cansei de me chatear também de ver meus filhos mexendo com as mesmas coisas que foram exigidas de mim 20 e poucos anos antes, como ler soletrando sílabas ou somar, diminuir, multiplicar e dividir na ponta do lápis, como se as calculadoras que surgiam fossem bugigangas dispensáveis.

 

Como acontecera comigo, deles ainda seria cobrado decorar que “atmosfera é a camada de ar que envolve a Terra” ou que “duas ou mais retas paralelas só se encontram no infinito”. E, heresia das heresias, que "todo número diferente de zero elevado a zero é igual a um". Não sei o que isso mudou minha vida ou a deles, salvo pensar na triste solidão das retas.

 

Na época, sonhava que a escola fosse além de noções de disciplinas clássicas como Ciências, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática. Queria tê-la ao meu lado auxiliando na formação humanística de meus filhos.

 

Queria que me ajudasse a ensiná-los a se sentar ao lado das pessoas que se sentiam vulneráveis, perdidas. A encorajar almas mais fragilizadas. A não se arrepender do bem que fizeram. A não guardar mágoas e ressentimentos, esse saco de pedras, mais ou menos pesado, que muita gente carrega nas costas. 


Poderia ter recebido boletins de avaliação de meus filhos em alguns "deveres de casa" como: Compaixão, Generosidade, Indignação, Inveja, Resiliência, Solidariedade etc. Quem sabe, daria tempo retocar projetos de gente em andamento.

 

Fotografia: Dedé Dwight

Só mais tarde me dei conta de que não se desenha por completo os filhos. Se muito, rascunha-se os traços básicos. Eles mesmos fazem a arte final a partir de suas conexões com o mundo.

  

Durante a pandemia, não tive febre, dor de cabeça, tosse seca ou qualquer outro sintoma da doença, mas tive meu delírio. Imaginei que, se sobrevivêssemos como nação à catástrofe sanitária, todo brasileiro com idade superior a 15 anos um dia estaria alfabetizado. 


No auge do meu delírio, vi Paulo Freire, um dos pensadores mais notáveis da história da pedagogia universal, explicando melhor às novas gerações uma de suas conclusões geniais: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.

 

Aprender a identificar notícias falsas e desinformação era tão importante quanto a Matemática. Tanto que constava do currículo escolar a disciplina obrigatória “Alfabetização midiática”. 

 

Exigia-se da molecada que editasse seus próprios vídeos, como forma de perceber como é fácil manipular informações. Em seguida, discutia-se como e quando certos textos foram escritos e quais eram os objetivos reais ou surreais. 

 

Desde cedo, já se aprenderia em sala de aula como assimilar notícias, enxergando a diferença entre o que veria nos aplicativos de mensagens e o que estaria nos meios de informação. Não teria como saber o que são fake news se não soubesse distinguir jornalismo de mídias sociais.

  

Aprenderia também que é bem menor o esforço do processo cognitivo (percepção, pensamento, linguagem, memória etc.) nas mídias eletrônicas, o que torna a meninada mais vulnerável às notícias falsas ou incapaz de identificar mentiras disfarçadas de verdades. 

 

Mesmo a criançada tendo crescido em paralelo à evolução das mídias sociais, isso não significa que saiba como identificar e se proteger da desinformação. Aliás, a fase de ebulição hormonal é justamente quando se está mais propenso a acreditar em meias verdades (ou mentiras completas!).


Repito, não sou do ramo, longe disso, mas fiquei animado com a grade de aulas complementares de meus netos. É mais um passo no tanto de chão que os brasileiros têm pela frente para construir uma nação decente, digna, digamos assim, de nossos bisnetos.

 

E segue o baile. Que essa molecada que está na pista acerte o passo e entre na dança com tudo. Senão dançaremos todos.



 

quarta-feira, 15 de março de 2023

Tá pensando o quê?

É, meu amigo “Charlie” – assim você era chamado, numa referência boba àquela velha canção popular, lembra? –, lá se foram três anos que suas cinzas foram lançadas sobre as águas de um braço da lagoa de Pituaçu, próximo ao condomínio onde você morava, na Bahia. 

 

A morte em si não melhora (nem piora) ninguém. Você, meu amigo, continua sendo uma das maiores reservas de caráter que conheci.

 

Apesar da dúvida quanto à existência de Deus. Afinal, você nunca engoliu essa história de “poucos com tanto e tantos com tão pouco” como desígnios divinosOu de suas esquisitices terrenas, algumas inexplicáveis. Por exemplo, detestava “barbudinhos vermelhinhos”, como você dizia.

 

Talvez resquício da primeira metade dos anos 1960, quando, vindo do interior paulista, você servia à Polícia do Exército no Rio de Janeiro. Ou porque, diferentemente de outras pessoas, você não tinha motivos para idolatrar Marx, Fidel, Guevara e outras barbas icônicas. 

 

Um dia, você virou bancário. Doeu, mas teve que renunciar ao cargo de professor universitário de educação física. Mais tarde, tornou-se um dos melhores analistas de projetos da empresa. 

 

E justamente nos anos 1970/80, quando o Brasil apostou alto na sobrevida do planeta Terra, criando o Proálcool, o mais bem-sucedido programa de substituição em larga escala dos derivados de petróleo. O álcool de cana, frente à gasolina, reduziria em 90% a emissão de gases do efeito estufa. 

 

Lembra daquele usineiro que, quando soube da aprovação do projeto de financiamento para implantar uma destilaria, quis agradecer pela velocidade do desfecho do estudo? Aquele mesmo que mandou alguém até a sua casa, levando, de presente, uma TV “do tamanho de uma parede”!

 

Ilustração: Umor

Puto nas calças, você subia pelos muros, cuspindo abelhas, pois nada fizera além do seu trabalho limpo, de rotina. E saiu aquele esbregue antológico no coitado do portador, antes de atirar a caixa de papelão no olho da rua, debaixo de chuva. “Tá pensando o quê, cambada de…”.

 

É, meu amigo, você era raro, singular. Pena que nosso convívio deu-se apenas entre 1983 e 1993, em Alagoas e na Bahia. Pouco? O bastante, agora percebo. 

 

Depois que se aposentou, você mantinha contato apenas com meia dúzia de amigos (e me escalou no time!), a quem brindava com múltiplos saberes sobre cinema, economia, esportes, literatura, música, política etc.    

 

Com os rancores e as dores do decorrer do tempo, mais adiante você passou a evitar polêmicas, sobretudo envolvendo política partidária, embora nunca tenha perdido a capacidade de se indignar.

 

Desiludido e pessimista com os rumos tomados pelo governo, você deixou claro aquilo que sentia: “esses barbudinhos vermelhinhos traíram miseravelmente as suas origens”. 

 

Não sei quem você apoiou nas eleições presidenciais de 2018, pouco antes de sua partida, mas dá pra imaginar. Pena que já não havia entre nós a mesma proximidade de antes, com o desvelo esperado no caso de antigos parceiros de copo, de crenças e de cruz.

 

Se existe outra dimensão onde o seu espírito esteja assistindo à novela que hoje se desenrola por aqui, dou por visto o tamanho de seu desencanto, vendo irmãos discutindo obviedades do tipo: será que existe mimo desinteressado, sem intenções ocultas, desde uma flor sem cheiro até uma gargantilha de brilhantes que se dê de presente a alguém?

 

Ou discutindo os porquês de um certo reino árabe oferecer, de mãos beijadas (no plural mesmo!), “bijuterias” no valor de R$ 16,5 milhões a uma rainha consorte, além de doar ao rei um estojo com caneta, relógio, abotoaduras, valendo cerca de R$ 400 mil. 

 

Ou o fato de a alfândega confiscar apenas o pacote mais robusto, em que pese o esforço do rei apaixonado, prestes a desocupar o trono, querendo liberar o presente oferecido à rainha consorte. 


Há quem diga que o amor, algumas vezes, não só é míope, como é mouco, mudo e estúpido.

 

Discute-se inclusive os porquês de milhares de súditos fanáticos tomarem chuva e sol, por mais de dois meses, em acampamentos nas portas de quartéis, a pedirem a Deus por um golpe militar em favor da família real.

 

Onde você estiver, meu amigo “Charlie”, imagino que já não veja tanta diferença assim entre os “barbudinhos vermelhinhos” e aqueles que se barbeiam todo dia, na maior cara dura (e lisa!). 

 

"Tá pensando o quê, cambada de..." – diria você, puto nas calças com o escândalo que temos pro jantar. 

quarta-feira, 8 de março de 2023

Amor que fica

Era comum, antigamente, a pré-estreia de filmes nas salas de cinema do interior. Algumas personalidades eram convidadas a pagar um ingresso especial para, em primeira mão, assistir aos filmes que entrariam em cartaz nas semanas seguintes.

 

Meu pai insistiu para que minha mãe fosse com ele à pré-estreia de Love Story, que se tornaria um dos maiores clássicos de bilheteria de todos os tempos. O filme narra o drama de um estudante de direito que se apaixona por uma estudante de música. Logo depois de casados – contra a vontade da poderosa família dele –, ela descobre que não consegue engravidar e que sofre de uma doença grave, irreversível.

 

Minha mãe, cansada da faina diária envolvendo nove crias, no escurinho do cinema não viu nem a abertura das cortinas. Acordou com o choro convulsivo de uma moça a seu lado:

– O que foi, filha, tá passando mal?  

– Que tristeza... – soluçava a moça.

 

Esses dramas não eram corriqueiros na União dos Palmares – berço de Jorge de Lima, o príncipe dos poetas, autor de “Poemas Negros” – onde morei no final dos anos 1960, dos 10 aos 12 anos de idade. Mas havia outras tragédias.

 

Lá, por exemplo, não tinha água potável, encanada. Duas vezes por semana, seu Jorge, um simpático cafuzo, parrudo e maneta – mutilou-se, ainda criança, na colheita de cana-de-açúcar – vendia água da cacimba de um sítio que arrendara. Também plantava verduras, raízes e criava galos-de-briga para apostas em rinhas tornadas clandestinas por Jânio Quadros.  

 

Certa vez, perguntei se poderia acompanhá-lo até a cacimba onde abasteceria suas latas para suprir uma casa próxima da minha. Não só permitiu como me ensinou a segurar firme na cangalha para não cair. 


Montado numa velha burra pelo de rato, chamada Mimosa, eu me sentia em completo êxtase, o próprio Django dos faroestes das matinês do Cine Imperatriz.

 

Fotografia: Afonso Loureiro

Seu Jorge também fornecia água destinada a outros usos domésticos, imprópria para consumo humano. Coletava-a no rio Mundaú, cujas águas serviam a lavadeiras, pescadores e vendedores ambulantes como ele. E me deixava vê-lo trabalhando. 

 

Em pouco tempo, combinei com sitiantes das redondezas, ao lado de outros moleques, um preço justo para banhar cavalos e éguas: o direito de, antes do banho, suar cada animal em meia hora de galope no osso (sem selas nem estribos), tendo por cabresto apenas um laço de corda no focinho. 

 

De tanto levar os bichos pro rio, um dia arrisquei mergulhar mais profundo, voltar à tona e bater braços e pernas até a margem, vencendo o medo de ser engolido pela correnteza ou pelos redemoinhos.

 

Se não fosse seu Jorge, aprender a montar e a nadar teriam sido bem mais difíceis para mim.

 

Eu já não era de pescar ou caçar, como alguns amigos de rua. Tinha o hábito perverso de acertar calangos e lagartixas, aprimorando a pontaria com uma peteca (estilingue, atiradeira, balinheira, baladeira, badoque ou bodoque, noutros lugares fora de Alagoas). A ciência explica como crianças podem ser tão ou mais cruéis do que adultos.

 

Desisti do ofício de exterminador de viventes quando, no Beco do Coité, matei uma lavandeira (ou lavadeira-mascarada, noivinha), espécie de pássaro dócil que vive junto a rios e lagoas e vem com ingênua frequência ao chão em busca de comida. 

 

Pitôta, uma cabocla esguia e risonha que ajudava minha mãe, presenciou a crueldade e foi implacável comigo. Chorei litros ao ouvi-la dizer que “a bichinha estava lavando a roupa de Nosso Senhor”. 


Tangido pelo remorso, quebrei gaiolas e alçapão com que pegava canário, galo-de-campina e papa-capim nos sítios que havia à margem da estrada que dava pro Mundaú.

 

Pitôta era mãe solteira. Como se dizia, perdeu a inocência com Lamparina (a cara do cantor Ataulfo Alves!), músico e militar do Exército brasileiro que, todo ano, preparava a banda do Ginásio Santa Maria Madalena para o desfile de 16 de setembro, celebrando a emancipação política de Alagoas da Capitania de Pernambuco. 


Ele era casado. Nunca quis nada além de meia hora nos braços da mulher que me ensinaria, mais tarde, as primeiras noções de compaixão, de respeito ao meio ambiente.

 

Contei a seu Jorge da reprimenda de Pitôta. No quintal lá de casa, das cinco às seis da manhã, dia sim, dia não, ele bombeava água da cisterna para a caixa de distribuição que ficava sobre a laje. “Ela está certa!”, me disse.

 

Perguntei por perguntar se ele conseguiria levantar 30 kg com o braço decepado. Ao perceber que Pitôta já coava o café, fingindo não ouvir nossa conversa, gabou-se: “Levanto até com a cabeça da Mimosa”. 


Na hora, achei que se referia ao pescoço da velha burra pelo de rato. Enquanto isso, Pitôta se contorcia de tanto rir, aparentemente com conhecimento de causa. 


Hoje, penso que cochilei, perdi parte do filme, feito minha mãe na pré-estreia de Love Story, no Cine Imperatriz. Havia algo no ar além dos gaviões fazendo carreira.


Vai ver começou ali, ao pé da Serra da Barriga, berço do Quilombo dos Palmares, outra mimosa história de amor – o amor que fica! – entre duas figuras inesquecíveis para mim.

 

quarta-feira, 1 de março de 2023

Nao pegou bem!

Apesar de nunca ter visitado a República de Santa Cruz, meu espirituoso amigo Carnaúba, aposentado, morador da Massagueira, distante 15 km de Maceió, me disse certa vez que o melhor dos mundos é quando um comandante de um transatlântico conduz um barquinho entre as ilhas da lagoa Manguaba. E o pior, quando um piloto de teco-teco, numa emergência, é chamado para aterrisar um Boeing 747. 

 

Antiga colônia do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a República de Santa Cruz só obteve sua independência em meados dos anos 1930. Trata-se de uma das menores nações em extensão territorial da África. 

 

Além de ser banhada pelo oceano Atlântico, grande parte do território é coberta por savanas e possui belas paisagens naturais, sendo que as praias e os parques de animais (inclusive antas, jabutis, papagaios, quero-queros e veados) atraem milhares de turistas do mundo inteiro. 

 

A economia é incipiente, já que o país não consegue oferecer trabalho para a maioria da população (10 milhões de habitantes), razão de grandes fluxos migratórios para os vizinhos. A principal atividade econômica é a agroindústria canavieira, que ocupa 70% da população. O limão, a rapadura e a cachaça são os principais responsáveis pelas exportações do país – tudo junto e misturado, claro!

 


A destilaria estatal Caipirinha tem sido a grande mola propulsora do desenvolvimento, responsável pela moagem de toda a cana produzida no território nacional.  

 

Fala-se que Luisito “Onassis”, vencedor das últimas eleições presidenciais, só vai governar por quatro anos, como ele mesmo admite entre amigos, inimigos e correligionários. À sombra dele desde que foi fundado, o PNP – Partido Nacional Popular sabe que precisa de nomes para sucedê-lo. Quem largou na frente foi um certo Ernani Adady, seu ministro da Fazenda e virtual sucessor.   

 
O ministro, no entanto, acaba de disparar um tiro na própria canela, que pode lhe deixar manco na dura caminhada que terá pela frente: ele instalou o desassossego entre os participantes da PESC – Previdência dos Empregados de Santa Cruz.  

 

Em meio às recentes mudanças que promoveu na cúpula da destilaria estatal, ele tinha à sua disposição milhares de participantes, mas escolheu para presidir a PESC um com menos de 15 anos de carreira cujo maior mérito, cedido pela destilaria estatal, foi secretariar por uma década o sindicato dos trabalhadores de Santa Cruz.

 

O ministro jura que o presidente indicado para o fundo de pensão possui as qualificações necessárias para o exercício do cargo. Possui mestrado em História, com ênfase em catequese, conquista espiritual, Mesoamérica, concepções de história e cosmogonia das elites tribais em fontes coloniais. Não entendi bem, mas deve ser coisa boa!

 

A escolha, óbvio, reacendeu os temores de uso político da destilaria estatal, inclusive de seu fundo de previdência, que esteve envolvido em denúncias de fraudes, aparelhamento partidário e má gestão há poucos anos. 

  

Para o ministro, no entanto, tanto faz um homem, um jabuti (o bicho não sobe em árvore; quando lá, é enchente ou mão de gente!) ou um papagaio minimamente treinado para ocupar a presidência da “Caipirinha” ou da PESC. São instituições que, segundo afirma, se modernizaram nos últimos anos com a implantação de várias camadas de controle no processo decisório através de colegiados, imunes a deslizes individuais de conduta. 

 

Os aposentados e pensionistas da PESC discordam. Temem que essa conversa mole não passe de uma crença inoculada no imaginário coletivo, aflorando em metade da população o lado “Velhinha de Taubaté”, personagem do cronista brasileiro Verissimo que ficou conhecida nos anos 1980 por “acreditar no governo”. 

 

Quando soube da notícia, lembrei-me de um ex-ministro brasileiro (cuja nomeação, no começo dos anos 1990, deixou nítida a importância que o então presidente da República dava ao Ministério do Trabalho), autor de três frases memoráveis:

– “A cachorra é um ser humano, e eu não hesitei” (sobre o uso de carro oficial para levar sua cadela ao veterinário).

– “O salário do trabalhador sempre foi imexível e continuará imexível” (neologismo oferecido a um repórter que o questionava se o plano econômico do governo afetaria a massa salarial).

– “Penso muito durante meus momentos de solidez” (sem comentários).

  

No presente caso, não vai pegar nada bem, mais tarde, o atual presidente da República de Santa Cruz argumentar que não sabia de nada. Que andava mais preocupado em discutir a relação entre a Rússia e a Ucrânia. Afinal, a melhor guerra continua sendo aquela que se evita. 

 

Ah, claro, isso de governar "somente" por mais quatro anos é conversa para eleitor dormir. Está para ser descoberto o antídoto para a ambição humana. E buscar a reeleição continua sendo a mais cristalina e natural ambição daquele que detenha o poder. 

 


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Cinzas de uma Quarta-feira

Nestes catárticos dias de Carnaval pós-Covid-19, lembrei-me do líder político russo Vladmir Putin, que vira e mexe ameaça apertar o botão e deflagrar a terceira e definitiva guerra mundial, determinando o fim da aventura humana na Terra.

Fotografia: Dedé Dwight


Não sei a quem pretende assustar. 

 

Dos mais velhos, como eu, corre o risco de ouvir algo como “já aperta tarde!”. Afinal, ficar por aqui assistindo à onda de catástrofes naturais (ciclones, dilúvios, epidemias, incêndios, deslizamentos de barreiras, terremotos etc.) e antinaturais, como irmãos famintos na fila do osso na porta de açougues em busca de sobras dos mais favorecidos, talvez o confronto generalizado nos poupe inclusive da tristeza do noticiário.

 

Dos mais novos, nem sei se ouvirá alguma coisa, dado que têm preocupações mais substantivas (para eles!) como o alucinógeno da hora, a coreografia da vez ou ouvir de novo “Zona do Perigo”, o pagodão de Leo Santana que me tortura os ouvidos há dias, mesmo de janelas fechadas.

 

E tem ainda a turma da meiuca, faixa intermediária entre 35 e 55 anos, que está na correria, acasalando, procriando, tentando contornar diferenças com seus rebentos em intermitente ebulição hormonal.


Na expectativa de ascensão profissional (ou maiores lucros), essa turma também não está nem aí para o possível Armagedom – segundo a Bíblia, a batalha final de Deus contra a sociedade humana injusta e perversa.

 

Ao lembrar de Putin, me veio à cabeça, como contraponto, o saudoso Lobão, um ser iluminado que tornou inesquecível, há 22 anos, uma Quarta-feira de Cinzas como hoje.

 

 

Lobão, Carnaval e Cinzas

 

Apareceu lá em casa em outubro de 1995. Meus filhos haviam convencido o avô a "financiar" a compra de um filhote poodle. Na loja, optaram pelo mais quieto e frágil da ninhada. “Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome pra lhe dar”, diria Chico Buarque. Mas nada que amor, carinho, vacina e ração de boa qualidade não pudesse resolver.

 


Quando fomos morar em Pernambuco, em 1996, a cada duas semanas levávamos Lobão – homenagem ao vilão de “Os Três Porquinhos”, de Walt Disney – para a praia de Ipioca, em Alagoas, onde filhos e sobrinhos o desafiavam simulando afogamento, ao que aquele magricela corajoso reagia nadando contra a maré até “resgatar” todos os seus “amigos”.

 

Na véspera do Carnaval de 2001, já estávamos morando no Planalto Central, depois de nova temporada na Bahia, quando minha mulher tanto insistiu que embarcamos para Recife para assistir ao “Galo da Madrugada”, que prometia arrastar um milhão de foliões pelas pontes e ruas da cidade no dia seguinte, Sábado de Zé Pereira.

 

Deixamos Lobão em um canil no Lago Norte até a Quarta-Feira de Cinzas, quando voltaríamos, mas fomos obrigados a retornar às pressas no domingo, após a notícia de que havia desaparecido. Da hora que pousamos em Brasília até a terça-feira de Carnaval, vasculhamos cada pedaço daquela região a sua procura, sem sucesso. Como último recurso, resolvemos distribuir cartazes e faixas do tipo “procura-se” no raio de 10 km do local de onde sumira.

 

Na tarde de terça-feira veio o telefonema do canil nos avisando de que ele fora encontrado, ainda no sábado, por um garoto que se divertia com um jet ski no Lago Paranoá. Lobão bem que tentou atravessar aquele "oceano nada pacífico" no rumo da Asa Sul, onde morávamos. Muito debilitado, com todas as articulações lesionadas pelo esforço feito, com infecção intestinal, permaneceu horas debaixo de uma cama onde residia o garoto que o abrigou, praticamente sem alimentar-se, até ouvir alguém chamá-lo pelo nome familiar aos seus ouvidos, descrito nos cartazes e faixas. 

 

De volta para casa, recuperou-se rapidamente. E a notícia da aventura correu pela Super Quadra Sul 114, na manhã de quinta-feira pós-Carnaval, onde um intrépido Lobão cuidava de remarcar seu território a cada poste que encontrava pela frente. Logo, viu-se apelidado pelos porteiros e zeladores do prédio de “Gustavo Borges”, nadador olímpico brasileiro medalha de prata nos 100 metros livres nas Olimpíadas Barcelona 1992 e nos 200 metros livres em Atlanta 1996, que participou de quatro Olimpíadas.

 

Vítima de edema agudo de pulmão, decorrência de uma gastroenterocolite bacteriana, o velho e destemido Lobão – que já vinha recebendo cuidados especiais na condição de cardiopata e nefropata - tombou no Verão de 2013, aos 18 anos de idade. Foi sepultado com "honras militares e salva de tiros" no quintal de nossa casa, no Jardim Botânico, em Brasília, onde viveu seus últimos dias.

 

Eu sabia que desagradava algumas pessoas naquele tempo, mas juro que estava sendo absolutamente justo e sincero quando afirmava: “Quanto mais conheço o ser humano, mais admiro Lobão!”. Ele nunca foi ingrato, dissimulado, grosseiro ou desleal conosco. Mostrava-se sempre agradecido pelo carinho que recebia, era fiel, solidário e transparente. Um ser do bem, que tornou inesquecível o Carnaval de 2001 e, anos depois, deu o tom acinzentado definitivo, da cor de sua pelagem, à “Síndrome do Ninho Vazio” que se instalava em nossa casa.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Nunca se sabe

Tive a sorte de poder bater papo por 15 ou 20 minutos com alguns personagens de nossa história contemporânea. Isso, claro, por conta de algumas funções que exerci durante mais de 40 anos numa grande empresa brasileira.


A lista é boa e vai do universo artístico-cultural (Altamiro Carrilho, Armando Nogueira, Capiba, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Dona Canô, Gilberto Gil, Herbert Vianna, Ivete Sangalo, Jaguar, Jessier Quirino, João Barone, João Carlos Martins, Lulu Santos, Maria Gadu, Roberto Carlos, Samuel Rosa, Zeca Baleiro e Ziraldo), passa pelo campo esportivo (Bernardinho, Buglê, Cafu, Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Guga, Nalbert, Pelé, Roberto Dinamite, Tande, Zé Roberto Guimarães e Virna), até a classe política (ACM, Marco Maciel e Miguel Arraes). 

 

Conversas que me renderam alguns textos publicados neste espaço. Escritores cascudos, reconheço, produziriam coisas mais interessantes, mas não tiveram o privilégio de assistir (de camarote!) aos fatos, ainda por cima recebendo salários e benefícios rigorosamente em dia.

 

Eu deveria me dar por satisfeito com aquilo que o acaso me reservou de ganhos indiretos, mas é natural querer um pouco mais. E andei pensando sobre quem poderia ter conhecido e não tive oportunidade. Tarde demais? Nunca se sabe.

 

Volto à adolescência, no início da década de 1970. Naquela época, destacava-se em Alagoas o “conjunto” LSD – Luz, Som & Dimensão, sob a batuta de um cantor e guitarrista que embalava as noites mornas de sexta-feira, na AABB Maceió, com os hits do momento. 

 

Antes que Djavan despontasse com seu primeiro álbum (lançado em 1976, o disco trouxe canções como “Flor de Lis” e “Fato Consumado”), vacilei e perdi a chance de conhecê-lo. Era acanhado demais para puxar conversa com o ex-armador do juvenil do CSA, que jogava ao lado de meu amigo Zabelê.

 

Bem mais adiante, se já me conhecesse, não seria tarefa tão complicada perguntá-lo em que praia andou catando palavras tão simples para tecer sofisticadas construções poéticas como:

 

“... Só eu sei as esquinas por que passei... Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar?”

 

“... Vou andar, vou voar, pra ver o mundo. Nem se eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo...”

 

“... Num dia triste, toda fragilidade incide. E o pensamento lá em você, tudo me divide...”

 

“... Viver é todo o sacrifício feito em seu nome... Por ser exato, o amor não cabe em si. Por ser encantado, o amor revela-se. Por ser amor, invade e fim...”

 

Outro que eu gostaria de conhecer é o escritor e jornalista Ruy Castro. Autor de vários livros, entre eles biografias essenciais (Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha; O Anjo Pornográfico, sobre Nelson Rodrigues; e Carmen Miranda – Uma biografia), esbanja ao mesmo tempo um estilo leve e duro, mordaz e sutil, em textos bem-humorados sobre comportamento, futebol, política e história, que me fazem refletir e rir. Muito.


Todas as vezes em que me meto a escrever, penso no que me diria se estivesse a meu lado. Quem sabe me daria dicas cruciais, até mesmo para não brincar com coisa séria, pôr um ponto final no que ando fazendo e desistir de minhas exclamações, interrogações, reticências e vírgulas nada essenciais.

 

Reprodução: Redes Sociais


Dois caciques em suas respectivas tribos. Posso até imaginar que Djavan, no fundo, esconde uma alma vascaína, da mesma fonte de energia de onde emanou Paulinho da Viola e Aldir Blanc. Ruy Castro também. Poderia, aliás, escrever a versão definitiva da linda e inclusiva história do Vasco, com as tintas de sua paixão pelo social.

 

No campo político, gostaria de conhecer alguém que defenda uma tese bastante simples com a qual eu e você, leitor, nos identificamos totalmente. 

 

Quando uma criatura eleita esquecesse dos compromissos de campanha, o eleitor poderia revogar seu próprio voto (exercício do direito de arrependimento), anulando-o, via internet, no site do TSE. E se, em até 120 dias da posse, um razoável conjunto de decepcionados fizesse a mesma coisa, a figura perderia o mandato.

 

Sabe-se que eleições existem também para remissão de pecados, isto é, ninguém se obriga a votar de novo em quem desonra compromissos. Mas por aqui essa lógica nunca funciona. A memória é curta e fugaz.

 

Uma vez no picadeiro, sob os holofotes, o palhaço ri da plateia e se reelege sucessivas vezes, submetendo-se, se tanto, à habitual dança de poltronas entre cargos legislativos e executivos, federais, estaduais ou municipais.

 

Acontece que a criatura que gostaria de conhecer ainda não veio ao mundo. E nem sei se vai nascer, crescer e arejar o cenário político, antes que o País ingresse de vez com um pedido de recuperação de múltiplos órgãos perante o Juízo Final, sem muita chance de sucesso. 


Tarde demais? Nunca se sabe. Mas, enfim, não estou proibido de sonhar. Até os mortos, imagino, sonham que a vida continua.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

O jogo das coisas que são

Esta semana meus primeiros netos completaram 15 anos. Mesmo de longe, acompanho a odisseia deles desde a época em que o tempo se media – e se celebrava! – em gramas, até que a fé na vida suplantasse a dúvida e o medo. 



Hoje, vê-los sorrindo é suficiente para reabastecer o meu tanque de esperança e seguir viagem. Sem pressa.

 

Vingou a vida, brotou o avô que hoje conta histórias. Como esta compartilhada neste espaço há mais de três anos.

 

 

A vida pede passagem

 

Em sua crônica “Antes que eles cresçam”, o escritor e poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna foi muito feliz ao dizer que “(…) O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco (…)”

 

Com apenas 27 semanas de gravidez, Renata teve que se submeter a uma cesariana bem antes da hora para receber meus primeiros netos, Breno e Camila. O rompimento acidental da bolsa, aliado à perda de líquido, a colocava com os filhos em extremo risco de infecção se nada fosse feito.

 

Ao nascer, cada bebê pesava menos que 1 kg e ambos poderiam ser transportados numa caixa de sapatos. Eram o que chamam de prematuros extremos. Médicos dizem que bebê que nasce antes das 36 semanas é considerado prematuro. Antes de completar 28, como meus netos, é prematuro extremo – os órgãos já estão formados, mas são muito imaturos.

 


Na agonia daquelas primeiras horas, para mim foi um tiro no pé recorrer a experts no assunto em busca de maior conhecimento. Fiz isso e entrei em pânico ao saber que prematuros extremos têm maior taxa de mortalidade e podem apresentar problemas na visão, dificuldades na alimentação e para respirar, além do risco de contrair infecções, dada à imaturidade do sistema imunológico.

 

Meu filho Leopoldo e sua mulher, Renata, viveram semanas de angústia e incerteza, de luta e esperança. Após o parto, durante o Carnaval de 2008, foram 46 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI neonatal) do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, com toda sorte de intercorrências.

 

Breno não amadurecera por completo o aparelho respiratório e teve até pneumotórax. Camila, o aparelho digestivo. A ponto de, por muito tempo, não digerir sequer uma gota de leite materno.

 

Toda noite pedia em minhas orações que ficasse conosco pelo menos uma das crianças para que o sofrimento de todos não fosse tão pesado, como se a dor pudesse ser repartida, atenuada, se o pior viesse a acontecer. No desespero, não sabia nem rezar direito. Deus que se virasse para entender pedidos tão confusos.

 

Foi quando Zé, um velho amigo mineiro, dotado de muitos saberes, mas leigo em ciências médicas, perguntou como estavam os recém-nascidos e compartilhei com ele aquilo que se passava, inclusive minha pouca fé na sobrevivência dos dois. Então me disse algo mais ou menos nessa linha: “Não fique tão preocupado... a vida quando brota faz de tudo para vingar...”

 

Arrepiei. Impressionou-me o fato de um ateu convicto como ele ter feito um milagre naquele instante: reabastecer meu estoque de esperança, que já andava na reserva. Quando a gente muda o jeito como encara as coisas, o que vemos acaba mudando de lugar.

 

A vida pedia passagem. Já era Páscoa quando Breno e Camila finalmente chegaram em casa, com saúde e em paz. Hoje, quase 12 anos depois, continuam muito bem, a viverem agora em São Paulo no auge da pré-adolescência, com as cores, os amores e os humores da hora.

 

Semana passada toquei no assunto com Zé. Indaguei se, após tanto tempo, ainda recordava de nossa conversa, ao que respondeu que lembrava sim, perfeitamente. Disse ainda que cada vez que vê fotografia dos gêmeos, conscientiza-se do “milagre”, como que reafirmando a força e os mistérios da vida, insondáveis para nós.

 

Garantiu de novo que há coisas que não dominamos, não podemos racionalizar. Que não podemos querer ter o controle de tudo. A vida tem seus caprichos e desígnios. Essa seria sua beleza!

 

"...Todos nós dançamos numa melodia misteriosa, entoada à distância por um músico invisível...", diria o físico Albert Einstein (1879 – 1955).

 

Era madrugada. Fui para a varanda e deitei na rede, a esperar o sol nascer, rever fotografias de Breno e Camila na linha do tempo e a ouvir Caetano Veloso: “(...) o tempo não para e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são, é o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão (...)”

 

Logo depois o sol nasceria na hora certa, maduro, como sempre acontece. Na leveza do primeiro sono, cheguei a ver o vulto de meu velho amigo Zé emergindo das águas da praia de Pajuçara, em Maceió, a cantarolar: “(...) Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar (...)”

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Uma estrada e a lua branca

Triste de quem não conserva nenhum vestígio da infância, pontuou certo dia o poeta Mário Quintana. 

Entre oito e nove anos de idade, todo sábado eu ouvia os discos (em especial os de Luiz Gonzaga) que meu pai punha na radiola enquanto encerava nossa casa. Ficava imaginando os cheiros, as cores e os sons do Sertão onde comecei a me despertar pro mundo. 

 

Tudo era simples. Quando dei por mim, tinha decorado Estrada de Canindé, no linguajar de meus avós maternos (clique e escute): 

 

“Ai, ai, que bom,

Que bom, que bom que é

Uma estrada e uma caboca

Cum a gente andando a pé.

Ai, ai, que bom,

Que bom, que bom que é

Uma estrada e a lua branca

No sertão de Canindé.

Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié.

Quem é rico anda em burrico,

Quem é pobe anda a pé.

Mas o pobe vê nas estrada

O orvaio beijando as flô,

Vê de perto o galo campina

Que quando canta muda de cô.

Vai moiando os pé no riacho…

Que água fresca, nosso Sinhô!

Vai oiando coisa a grané,

Coisas que, pra mode vê,

O cristão tem que andá a pé”.

 

Um dia, quando crescesse, faria longas viagens de carro, parando aqui e ali para comer e beber, conhecer lugares e pessoas, ouvir e contar histórias, essas coisas.

 

Enganei-me. Fiz muitas viagens durante a minha jornada profissional, porém apressadas, mais preocupado com a hora da partida e da chegada do que com o caminho em si.

 

Hoje, não me animo a cair na estrada. Alguns sustos entre Alagoas, Pernambuco e Bahia, mexeram comigo. O medo de cochilar ao volante e acordar no purgatório desbotou a coragem e a paciência. 


Passei a viajar menos, de carro. Depois que me aposentei e até antes da pandemia, me acostumei ao corre-corre e ao vozerio de aeroportos, ao barulho das turbinas, a ver o chão lá das nuvens. 


Perdi o direito de ver o orvalho molhando as flores, ou o galo-de-campina mudando de cor, “coisas que, pra mode vê, o cristão tem que andá a pé”, como cantava Gonzagão.

  

Outro dia puxei conversa com meu querido amigo Carlos Bicca, o mais nordestino dos gaúchos, com quem compartilho caros momentos desde 1996, quando nos vimos (no plural, porque alcança Cristina e Magdala, minha mulher), pela primeira vez, no Recife.

 

Bicca me disse que nunca lhe agradou estar entre quatro paredes, mas a necessidade falou mais alto, pelo menos até que pudesse trocá-la por algo mais precioso: o tempo, de preferência ao ar livre. Tanto que se transformou em maratonista dos bons, depois dos 50 anos. 

 

Contou que gosta de estrada desde criança e que nunca escondeu isso nem dele mesmo. Para desassossego de quem se senta no banco do carona, ele garante que “o melhor caminho entre dois lugares é sempre o que tem mais serras, curvas e estradinhas...” 

 

É mais um fã de Niemeyer, para quem “se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o que faz o concreto buscar o infinito”. 

 

Depois que se aposentaram, Bicca e Cristina caíram na estrada numa Mercedes Sprinter (com “casa” montada sobre os chassis), levando Maya, cadela de pelos dourados, da raça Labrador, no auge de seus 10 anos.

 

Fotografia: Carlos Bicca

Nos últimos três anos e meio, a experiência de “viver sobre rodas, ao invés de ancorados nos alicerces de um endereço fixo", forjou dois minimalistas convictos, nômades e felizes. Aprenderam a desapegar de coisas, a compartilhar quase 100% da mesma rotina, a suportar estoicamente a saudade dos netos, a compreender que “todos os dias são especiais e tem valido a pena cada quilômetro de estrada percorrido juntos”.

 

Fotografia: Carlos Bicca

E como o viajante da Estrada de Canindé, “oiando coisas a grané”, Bicca virou exímio fotógrafo. Vive provando aos amigos, nas redes sociais, que nem arame farpado retira a beleza de uma cerca. "Fotografar me poupa de explicar com palavras o que vejo". Mas não fotografa. Faz autorretrato – só ele enxerga daquele jeito.

 

Tocado por uma inveja benigna, eu quis saber qual teria sido o lugar mais impressionante que conheceram. O casal não titubeou: Paso San Francisco, na Ruta de los 6 miles. “Cruzamos a Cordilheira dos Andes a quase 5.000 metros de altura... É uma estrada mística para motociclistas, pouquíssimo utilizada por veículos de maior porte como um motorhome”, disse Bicca.

 

Agora quer explorar um pouco mais a América do Sul. Conhecer também alguns rincões escondidos do Velho Continente, a bordo de uma autocaravana que adquiriu em Portugal, em sociedade com outros casais que conheceram em Brasília.

 

Como ainda me sinto “criança” – apesar das dores e dos desencantos da hora –, me pego aqui pensando em viajar um pouco mais. Afinal, coragem é a cor que cada um escolhe para colorir os dias que restam da grande viagem.

 

Quem sabe um dia, quando crescer.