Que fim levou a caneta do flautista?
Com mais de 100 discos, fitas e compact discs gravados em nada menos que 60 anos de carreira, Altamiro Carrilho, junto com outros grandes instrumentistas - Armandinho, Dominguinhos, Paulinho Nogueira, Nivaldo Ornellas, Raphael Rebello, Wagner Tiso etc. -, dois anos antes havia participado do Projeto Tom Brasil, ação de marketing cultural que resultou na gravação e distribuição de caixas-brindes com obras primas daquele timaço de craques da Música Popular Brasileira.
Ao recebê-lo e conversar por mais de hora, percebi que, antes do famoso instrumentista, estava diante de um homem em paz consigo mesmo, ainda entusiasmado, aos 74 anos, com aquilo que fazia, espirituoso, bem humorado, além de protagonista de boas histórias.
Contou que certa noite, sofrendo muitas dores por força de uma apendicite aguda, teve que ir às pressas para o hospital particular mais próximo de sua casa, onde se submeteu a uma cirurgia de emergência. Até desfalecer sob efeito da anestesia, não pensava noutra coisa a não ser sobre como pagaria os honorários do cirurgião, dado que vivia financeiramente sufocado, como quase todos os músicos brasileiros.
A primeira pessoa que viu ao acordar foi o médico: “doutor, e agora, como vou pagar o senhor?” O médico, sorrindo, teria dito: “o senhor já me pagou há muito tempo e ainda lhe devo troco. Escuto seus discos desde criança e aprendi a gostar de música ouvindo sua flauta maravilhosa”. Óbvio, todo exagero deve ser perdoado quando se trata de gratidão.
Quando lhe dei de presente uma caneta de luxo com a logomarca do banco, recordou como tornou-se conhecido internacionalmente na década de 60, depois de apresentar-se em vários países: Alemanha, Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, México, Portugal e União Soviética, entre outros.
Numa turnê em 1963, Boris Trisno, um dos mais conceituados maestros russos, após assistir a uma extraordinária exibição dele em Moscou, afirmou que “havia visto um dos músicos mais afinados do mundo e um dos melhores solistas de flauta do planeta”. Resultado: precisou estender a permanência por três meses nas repúblicas soviéticas, por conta de vários convites recebidos para outros shows.
Numa turnê em 1963, Boris Trisno, um dos mais conceituados maestros russos, após assistir a uma extraordinária exibição dele em Moscou, afirmou que “havia visto um dos músicos mais afinados do mundo e um dos melhores solistas de flauta do planeta”. Resultado: precisou estender a permanência por três meses nas repúblicas soviéticas, por conta de vários convites recebidos para outros shows.
Um dia antes de retornar para o Brasil, o maestro o convidou para o café-dá-manhã, fechando a temporada de forma singular. O russo, encantado com o talento de um dos principais intérpretes de Brasileirinho, Um a Zero e Urubu Malandro, ofereceu-lhe uma velha caneta-tinteiro, “de estimação”, com inusitada dedicatória: “com esta caneta eu assinei o diploma de alguns dos maiores músicos de meu país; ela agora é sua.”
Ao desembarcar no Galeão, no Rio de Janeiro, ainda comovido com tudo o que vivenciara em terras tão diferentes da sua, Altamiro Carrilho tomou um choque quando percebeu que sua mala havia sido violada. Pior, à época ainda não havia câmeras de segurança para flagrar o gatuno que lhe furtou três camisas, duas calças, um par de sapatos e a velha caneta-tinteiro que, por precaução, escondera entre as roupas, temendo perdê-la se a trouxesse no bolso.
Decepcionado e triste, um dos mais importantes divulgadores do gênero musical de maior brasilidade - o choro ou o chorinho - tomou um táxi, seguiu no rumo de casa e, sem fome ou sede, trancou-se em seu quarto, onde chorou até esgotar seu estoque de lágrimas.
Que fim levou a caneta do flautista desaparecida há mais de meio século? Quando nos conhecemos, 35 anos depois do episódio no Galeão, Altamiro Carrilho acabou esquecendo na sala onde estávamos a caixinha, revestida de veludo azul, contendo a luxuosa caneta que lhe dei de presente. Para mim, agora faz todo sentido. "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem..." (Fernando Pessoa)
Que fim levou a caneta do flautista desaparecida há mais de meio século? Quando nos conhecemos, 35 anos depois do episódio no Galeão, Altamiro Carrilho acabou esquecendo na sala onde estávamos a caixinha, revestida de veludo azul, contendo a luxuosa caneta que lhe dei de presente. Para mim, agora faz todo sentido. "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem..." (Fernando Pessoa)
Em matéria de esquecimento eu tenho uma pós-graduada aqui em casa. Kkk
ResponderExcluirMais um belo texto e uma boa lembrança, um grande artista pelo talento e simplicidade.
Ainda bem que o YouTube está aí para que os mais novos possam, pelo menos, conhecer um pouco sobre quem foi esse artista fabuloso.
Excluirdepois de ler o seu texto ouvi pela internet as diversas apresentações dele. Muito Lindo!!
ResponderExcluirMuito bom !
ResponderExcluirOuço Altamiro há muitos anos. Tive o privilégio de assistir a um show seu, lá dele, aqui no Teatro Castro Alves. Acompanhava Ademilde Fonseca - aquela das 1.000 palavras por minuto.
ResponderExcluirJá gostava de Altamiro por sua flauta ímpar. Nesse show ele cantou uma música (não me recordo qual) e descobri sua MARAVILHOSA VOZ além do exímio flautista que era.
E pra concluir: bom de conversa, contador de "causos" e de uma simpatia que chamava à atenção.
Pelo jeito, só não era muito afeto a canetas ou não tinha habilidade suficiente pra guardá-mas ... (Rsrs).
Nasser.
Já estava com saudade dos seus artigos. Mais um maravilhoso. Parabéns!
ResponderExcluirTentando poupar meus “leitores”, amiga, limitando-me a uma crônica por semana, se possível no sábado, dia nacional da leituras represadas. Rsrsrs
ExcluirPois é, Nasser, o amor pelo que fazia explica os 87 anos intensamente vividos por ele. Deve estar no céu puxando um chorinho com Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Waldir Azevedo etc., rindo de nós aqui nessa coisa esquisita que o mundo está se transformando.
ResponderExcluirQue linda história. Ela me fez recordar quando fui ver Altamiro no Teatro Paiol, no final "do século passado", pouco antes de você e eu trabalharmos juntos em BSB. Fui ao show dele num sábado. Gostei tanto que, na saída, já comprei ingressos para o dia seguinte. Voltei no domingo e curti novamente o espetáculo proporcionando por esse inesquecível músico. Suas histórias tem puxado o fio da meada de minhas lembranças. Andreola
ResponderExcluirBelo texto Hayton!
ResponderExcluirInfelizmente não tive a oportunidade de assistir a um show desse que foi um verdadeiro mestre da flauta.
O curioso é que a primeira vez que ouvi Altamiro Carrilho foi exatamente por meio dessa coleção mencionada no texto "Brasil Musical" com a nata da Música Instrumental Brasileira na época (lembro como hoje... tinha dezoito anos e insisti um bocado para meu pai comprar aquela coleção de 11 CDs que veio ofertada junto da correspondência do Banco do Brasil rsrsrs). Tenho até hoje esses CDs e são umas das preciosidades aqui da minha coleção. Me abriram um horizonte totalmente desconhecido no mundo da música, até então limitado apenas ao Rock e Heavy Metal..
Tenho alguns discos de vinil do Mestre e um deles está autografado.
Não sei se foi ele quem de fato assinou o disco, mas, com certeza, não foi com a caneta de Boris Trisno, nem com a caneta de Hayton Rocha.
Abraços.
Antônio.
Que maravilha, Antônio! De certo modo, também “sacrifiquei” meus filhos naquela época. Tínhamos uma casinha em Ipioca e, de 15 em 15 dias, no trajeto entre Recife e Maceió, eram “obrigados” a esquecer Capital Inicial, Legião, Paralamas, Cazuza etc. para ouvir “música de véi”.
ResponderExcluirVi algumas apresentações de Altamiro Carrilho pela TV. Era impressionante sua agilidade com a flauta, alcançando notas sempre perfeitas. Para muitos, um dos maiores flautistas de todos os tempos. Parabéns Hayton, você já nos brindou com detalhes inéditos de Luiz Gonzaga, agora, Altamiro Carrilho. Quem será o próximo?
ResponderExcluirUm abraço do Orlando.
Ainda não sei, amigo Orlando, mas posso garantir que em mais de 40 anos de carreira foram vários encontros com figuras interessantes que guardei na memória e nas anotações.
Excluir👏👏👏👏👏✍
ResponderExcluirTenho discos de vinis dele, e deles não me desfaço por dinheiro algum. Adorei saber da história do médico
ResponderExcluirMais um lindo capítulo da História da Música Popular Brasileira, visto a partir de seu olhar privilegiado por suas referências e interesses, e não apenas pela sorte. Altamiro é um sopro eterno de alegria.
ResponderExcluir“... um sopro eterno de alegria.”
ResponderExcluirSó um discípulo do mestre como você, Reco, para em poucas palavras dizer tudo sobre ele.
Me parece que "carinhoso" tbm era de sua autoria,como tbm outra pérola do chorinho "André de sapato novo". Suas músicas rigozijavam a alma...
ResponderExcluirNão, André, "Carinhoso" é de autoria de outro gênio: Pixinguinha. E o choro "André de Sapato Novo" é do saxofonista André Corrêa. Mas Altamiro Carrilho interpretava as duas de forma tão marcante que ambas pareciam ser de sua autoria.
ResponderExcluirPerfeita sua observação!
ExcluirPerfeita sua observação. A meiguice é minha companheira dileta.
ExcluirQuis dizer leiguice.
ExcluirParabéns, Hayton, pelo tom ameno mas denso da sua escrita. Torna-se um prazer lê-las. Ainda mais nós que conhecemos tão bem os palcos onde ocorreram.
ResponderExcluirAmigo Hayton, De volta da pescaria, tive a honra de ler mais uma bela crônica sua. Leitura muito agradável. E que time de músicos ...
ResponderExcluirTenho um pouco de conhecimento de Altamiro Carrilho através da coleção disco de vinil de meu irmão Enoch, como de muitos outros de sua época. São grandes músicos que não se esquece jamais.Parabéns pelo seu vasto conhecimento.São artigos maravilhosos!
ResponderExcluir....mais um belo texto. Cada vez mais penso que vale um livro!!!
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