quarta-feira, 15 de abril de 2020

Dança da solidão

Sexta-feira, 13 de março. Dona Eulália, 81 anos, minha vizinha, teve que se desculpar na fila do supermercado porque vacilou na chamada etiqueta do espirro e da tosse e quase mata de susto um velho carrancudo e magricela que estava à sua frente: 
– Desculpe, meu senhor... Nem se preocupe. É minha rinite alérgica. Quando entro no ar refrigerado o nariz começa logo a coçar.

Soube disso por acaso ao encontrá-la no elevador de nosso prédio. Voltava do pronto-socorro ainda reclamando de dores na panturrilha (batata da perna, para alguns). Chegou a pensar em trombose, hipótese descartada pelo médico que lhe atendeu e recomendou apenas mais moderação nas atividades físicas. Caminhadas longas e danças já lhe pesam muito.

Aproveitei a oportunidade para tentar convencê-la a praticar o isolamento social que a Organização Mundial de Saúde vinha recomendando para os idosos, por conta do surto viral que dava as caras por aqui sem bater na porta e já querendo matar.

Para o seu próprio bem, procurei assustá-la ao alertar que poderia ser contaminada até pelos dançarinos a quem paga cachê todo fim-de-semana para lhe fazer companhia nos bailinhos da terceira idade. Fiz mais: recorri a alguns conhecidos em comum para que reforçassem a pressão, no sentido de protegê-la do vento mórbido que está repaginando o planeta.

Não adiantou. Pensionista de ex-funcionário do Banco do Brasil, com contas em dia e assistência médica de primeira numa terra de segunda classe, Dona Eulália é daquelas que acreditam que a confusão que está aí não passa de um complô da esquerda para derrubar os governos "patriotas" que subiram ao poder pelo mundo afora. 

Em seu fanatismo ideológico, com traços de fundamentalismo religioso, vive a espalhar pelas redes sociais coisas como: “(...) É a gripezinha anual de sempre... Vamos desmascarar esta corja da mídia...  Não podemos ficar a mercê desse bando de esquerdopatas... O povo não deve de jeito nenhum ficar em casa e perder o emprego (...)"

Apesar de vários filhos e filhas, ela optou por viver sozinha em seu canto, tendo por companhia apenas a tevê – não perde por nada o Brasil Urgente, apresentado pelo Datena –, o celular e um cachorro abusado da raça Dachshund, chamado Olavo – um neto dela o batizou assim porque se mete em tudo, late muito, mas só dá trabalho.

As rugas discretas e os cabelos brancos até que lhe caem bem e realçam a elegância. No auge da maturidade, continua bonita e, por isso mesmo, mais vaidosa que nunca. Não vai nem à padaria da esquina sem conferir a imagem refletida no espelho da porta de seu guarda-roupas.

Adora dançar, em especial um bolero lançado há 10 anos por Marisa Monte, do tipo “dois-pra-lá-dois-pra-cá”: 
“(...) Ainda bem 
que agora encontrei você, 
eu realmente não sei 
o que fiz para merecer 
você, 
porque ninguém 
dava nada por mim (...)” 

Com um sorriso enigmático no rosto, vira e mexe repete para as amigas que “os sonhos não envelhecem”. 

Sábado, 14 de março. Fiz o que pude para que Dona Eulália não se arriscasse tanto, mas ao pegar o elevador esta noite olhou bem dentro dos meus olhos e confidenciou: “Meu filho, é dançar ou dançar! Se não dançar todo sábado, danço do mesmo jeito: dói tudo, bate uma tristeza danada... E eu vou lá me acabar no tarja preta?”

Sábado, 21 de março. Hoje não saiu de casa nem para levar Olavo lá fora para demarcar território. Eram quase 11 da noite quando me ligou. Falava baixinho, cansada, queixando-se de febre, mal-estar geral, dor de cabeça, tosse seca, dor de barriga e perda de apetite.

Liguei na mesma hora para uma de suas filhas, médica de família,  especialista em cuidados primários de saúde, com quem ela não falava havia meses – rusga antiga que ora esquenta, ora esfria. Contei o que ouvira e minutos depois ela chegaria apressada para socorrer a mãe.

Tive medo de me aproximar por conta das cautelas de que tanto se fala ultimamente. Meia hora mais tarde, vi quando a médica, com seu jeito seco de ser  – desde criança é assim, dizem – deixava o apartamento e entrava no elevador amparando a mãe, que carregava Olavo no colo.

Sábado, 28 de março. Passei a semana atormentado, me sentindo mal por não haver persuadido Dona Eulália a se resguardar nesses dias de escuridão, perplexidade e suspense. Ansioso com a falta de notícias, liguei para a sua filha:
– E aí, doutora, como ela está?
– Do mesmo jeito...
– Testaram?
– Não foi necessário.
– O que ela tem?
– Saudade das amigas, dos bailinhos, da padaria... Passa já.

Menos mal. Ainda bem que solidão não cura com remédio. Vai que aparece algum leigo querendo usar a caneta para propor tratamento à base de cloroquina e a coitada acredita. 

44 comentários:

  1. Confesso que li com muita apreensão com medo do final da história ������ Temos muitas "Dona Eulália" por aí que são bem difíceis de convencer kk Compartilhando ����

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  2. Como diria aquele outro seu amigo, esse Olavo é do "baralho" (e não mora nos States of América...). Minha sogra também tem um Dachshund, mas ela, também com seus 80 outonos de vida, anda quietinha no seu isolamento social. Mais uma deliciosa crônica pra iluminar estes dias e noites.

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  3. " D. Eulália", sem esse " Olavinho" aí lógico, continua muito muito bem. A máscara não permite que use o batom do qual se orgulha desde os 14 anos, e os vestidos esperam pacientes pendurados no guarda-roupa o dia de voltarem a bailar...ISSO LOGO VAI PASSAR!!! ( Para quem sobreviver ao terrorismo)

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  4. A teimosia do nosso grupo tem algumas variáveis a mais que teimosia dos jovens. Logo tudo passa e a dança continua, a vida? Depende de outras teimosias.

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  5. Quanta poesia e generosidade para descrever um momento disruptivo de nossa História. Dona Eulália encontrou seu jeito de continuar participando da vida, de viver sua gerontolescência. Seja com autonomia de ir no mercado, seja com rebeldia de dançar a dança da vida. Tenho compaixão pela cegueira ideológica, que já vi também em gente pelas outras bandas da régua. Todo extremo carrega em si mesmo a exclusão de tudo que diverge, ou não habita em sua bolha. No prédio onde moro tem um bom grupo de Eulálias que se reúnem no térreo e adoram trocar matérias entre si, recebidas de Robôs peversos. Quando volto da caminhada elas e eles me chamam e me atualizam. Uma das últimas conversas, antes de vir pra Paraíba, foi que isto tudo que ocorre é no mundo é um golpe pra derrubar o Brasil e tomar a Amazônia, pois que não aparece nada na Argentina. Eu os escuto com misericórdia e educação. Nem tento discutir nada, pois que estão em processo de lavagem cerebral. Retruco o que escuto com um bom dia, falo que as flores da quadra estão belas, ofereço máscaras que comprei para que eles se protejam. Recebo como resposta que não precisam, e que ainda sou muito jovem, que estou assustado por acreditar na mídia comunista. Olho pra cada um deles com um olhar de saudades, sabendo que no Plano Piloto em Brasília a doença já matou muitos. Torço para ainda estarem lá, propagando estas sandices, quando eu voltar. Fico com raiva de torcer por isto. Mas, sei que eles não eram assim. Apenas adoeceram. E não foi do Covid, foi do Extremid. Transmitido por grupos do ZAP.

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    1. Seu comentário, como sempre, dá à crônica uma dimensão maior do que ela possui. E aguça a curiosidade das pessoas a relerem com mais cuidado, nestes dias de ansiedade, controvérsia e esperança. Valeu, Ricardim!

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  6. Ricardim, excelente comentário.
    Hayton, bela e generosa abordagem.

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  7. Achei até que conhecia D.Eulalia. Difícil de convence-lá.

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  8. Assim como Perpétua, achei que tbm conhecia D. Eulalia. Rsrs

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  9. Ainda bem que o final foi feliz. Conheço um bocado de idosos que não acredita na Pandemia e foge para ir à padaria ou fazer caminhadas.

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  10. Essa "dona Eulália" me parece familiar, acho que a conheço. Ainda bem que, apesar da tosse seca e outros sintomas que mais parecia ser o da COVID-19, era apenas saudades da sua rotina. Por falar em "Ainda bem", considero que dona Eulália tem um excelente gosto, pois essa é uma das músicas mais belas cantadas pela Marisa Monte. Parabéns, dona Eulália por ser como é e pela saúde! Parabéns ao autor da crônica.

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  11. Excelente crônica, além de contemporânea. Parabéns, Mestre.

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  12. Mas para muitos, como no caso, a sensação é aquela de se ficar o bicho pega... Existem pessoas que são sempre ativas e talvez não fiquem em casa para não bater solidão. Essa mata muito mais. Estava ansioso pelo final e já torcendo muito pela Dona Eulália... Tem que ficar em casa mas não pode morrer por causa disso... é o trilema: ficar, sair ou adoecer?

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  13. Enxergo várias "Donas Eulália" nessa senhorinha aí

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  14. Excelente crônica, Hayton. Muito bem escrita e com um desfecho surpreendente. Abraço do Sidney.

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  15. Nunca soubemos o que pode acontecer amanhã.
    Agora temos certeza.

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  16. Boa conclusão para toda expectativa do seu relato. Que Deus ilumine Dona Eulália e você com toda sua família.
    Abraços.

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  17. Não canso de repetir que a leveza e energia de seus textos fazem a gente "viver" a aventura neles descrita. É como se estivéssemos na adolescência, torcendo pelo final feliz nos filmes que assistíamos, principalmente os de cowboy, onde o "mocinho" era o nosso herói.
    Particularmente, sempre tive alguma simpatia velada pelos rebeldes. Certo que a rebeldia sem causa, por si só, não faz sentido, mas, não fossem eles, os rebeldes e contraventores, certamente estaríamos na caverna até hoje.
    No caso em tela, Dona Eulália, que já tinha a minha admiração pela força, garra e estoicismo perante a vida - valores que reconheci por sua descrição em crônicas anteriores -, passa a ser agora mais que uma pessoa comum, uma verdadeira personagem, digna também de outros escritores.
    Enfim,alem de "DARWINISTA" convicto e assumido, acredito também firmemente numa coisa que "inventaram", chamada MARCADOR GENÉTICO.Talvez isto explique você.
    Quem sabe um dia eu possa ter a ventura de levar um papo - pra não esquecer da baianidade num momento tão doloroso da perda do nosso MORAES -, com a DONA EULÁLIA - as maiúsculas são indispensáveis aí.

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  18. Fosse eu um goiano, diria: agora você pulou o corguim com essa crônica! Já tem estoque pra um segundo livro. Alguma coisa me diz que essa sua vizinha é a D. Eulália da Capadócia, minha intuição não costuma faiá!

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  19. Hideraldo Dwight Leitão15 de abril de 2020 às 16:34

    Que prazer de leitura. Somos todos Dona Eulália, só aprendemos quando é muito tarde.

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  20. Tive que voltar aqui. Sou dos que não gostam de revisar textos que escreveu pois, no meu caso, fazendo -o, tenho compulsão de mudar quase tudo. Assim, verifico só se há erro de digitação e despacho. Revendo agora o comentário que postei acima vi o crime inafiançável que cometi. Quis escrever transgressores e postei contraventores. A diferença está longe de ser semântica,bem o sei. Perdôe então, é decrepitude da memória de um corôa vivo, conquanto sem corona.

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  21. Quantas Eulálias existem no nosso Brasil!!!! Não bastasse as nossas próprias confusões, a informação, a desinformação, o disse-me-disse e os interesses de alguns, produzem outras tantas!
    Ainda bem que a "nossa" tem a dança a seu favor e consegue colocar o Olavo no colo!

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  22. Agostinho Torres da Rocha Filho15 de abril de 2020 às 17:39

    Ótima crônica!!! Mais atual, impossível. Cheia de suspense e com um final feliz. A protagonista, então, deve ser paraibana da gema.

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    1. Eu digo pra Hayton que isso foi o resultado dos tempos do Jortebol.

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  23. Seus cuidados com o próximo inspiram nossa solidadriedade. Valeu pela crônica.

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  24. F - A - N - T - Á - S - T - I - C - A
    Crônica deliciosa que deve ficar pra história. Boas histórias nesses dias de Coronavirus. Covid 19, registre-se. Já viu né? história é história.

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  25. Amável escritor, como sempre vc escreve muito bem. Dá prazer ler as suas crônicas. Vc dá leveza e um certo romantismo aos acontecimentos. Vejo toda a cena, como se estivesse lá. Amei a d.Eulália, ela tem vitalidade e alegria de viver.
    Muito bom.

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  26. Sem contar com a sua solidariedade, Hayton, dona Eulália é difícil de se convencer da opinião dos outros. Determinada, muito comum nessa idade. Parabéns por mais uma crônica saudável para esses dias de quarentena; fico conferindo os dias de suas crônicas saírem do forno. "Ainda bem" que o desfecho não foi ruim, graças a Deus. Logo, logo, dona Eulália voltará a vida dela normal. Deus é pai.
    Um forte abraço e até a próxima.

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  27. Bela crônica! Ainda bem que meus pais estão seguindo as regras do isolamento. Pense num suspense até chegar num final feliz. Ufa!

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  28. Muito bom! A sensação é de que conheço alguns personagens. Soam familiares.

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  29. Eterno chefe e amigo, de todas as crônicas que vc publicou, esta parecia uma película de Alfred Hitchcock... mas que nada, um final digno das antigas novelas de Janete Clair... Parabéns!

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  30. Dona Eulália tem personalidade. Lembra-me claramente alguém...

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  31. Prezado Hayton, além de nos oferecer o prazer da leitura de mais uma gostosa crônica, nos mostra também que é possível apontar aspectos de nossa tragédia política cotidiana com pertinência, adequação, precisão e elegância. Aguardo a próxima!

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  32. Diferentemente daqueles que precisam trabalhar diariamente para levar o pão à prole numerosa, Dona Eulália poderia ficar tranquilamente isolada em seu lar. E não o fez, mesmo recebendo o se sensato conselho.
    Esse texto mostra quão difícil é entender os segredos da alma.




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  33. Ainda bem que minha mãe aos 93 anos não é como dona Eulália. Ela segue direitinho o isolamento social. Tem a companhia de minha irmã e neta que já passa dos 18 anos.

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  34. Nunca soubemos como será o amanhã.
    Agora temos certeza!

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  35. Típico caso em que a “intromissão” é um gesto de amor, de carinho! Sigamos atentos aos nossos amigos e vizinhos como a senhora do relato! Parabéns Hayton!

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  36. Dona Eulália é uma exceção pra sua idade, imagina essa energia acumulada pelo isolamento...

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  37. Muito Bom, Este momento esquisito que estamos atravessando, Dona Eulália traz uma energia diferenciada. É a Vida.

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  38. que este momento que estamos vivendo possa passar o mais rápido possível e apenas fique crescimento calor humano nas famílias

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  39. Dona Eulália conseguiu manter um tesouro durante sua existência: a alegria de viver.

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