quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Entre compadres

A cumpadragem é coisa muito séria por aqui, como diz o poeta Jessier Quirino. Muito mais que o jeito pelo qual uma pessoa se torna aparentada de outra através do ritual católico do batismo, esse parentesco por afinidade chega a ser maior que laços de sangue porque compadre é escolha; parente, não.

Um caso sequer não me lembro de um amigo convidar outro para batizar o filho e o escolhido arranjar desculpa para escapar do compromisso, do tipo: “Não sei se vou estar na cidade no dia...” “Quem sabe é melhor você chamar alguém da família...” Se isso acontecer, a encrenca é feia. É desfeita a ser resolvida a murros e tabefes, com direito do ofendido de invocar a legítima defesa da honra.  


Chicó Neto e João Grilo Neto – descendentes dos andarilhos da Taperoá dos anos 1950, de "O Auto da Compadecida" –, amigos desde as primeiras letras e números, eram bancários, quarentões, além de compadres e vizinhos no bairro de Manaíra, na orla de João Pessoa, até o começo do ano passado. Tão unidos que, sem o menor pudor, um dia João bateu na porta de Chicó com um pedido de risco cabeludo:
– Cumpade, me empreste o seu carro novo. Preciso dar um pulinho em Campina Grande e o meu tá na oficina desde a semana passada.  
– Opa, cumpade, tá aqui a chave! Mas tenha cuidado, viu? Dei só a entrada e ainda nem paguei o seguro.
– Não se preocupe! Bem cedinho, devolvo lavado e de tanque cheio.

Tarde da noite, ao retornar, João notou que esquecera o controle remoto com que abriria o portão da garagem. Parou então numa vaga no estacionamento público em frente ao apartamento de Chicó, que a tudo assistia pela brecha da persiana. Foi só João apagar as luzes que Chicó desceu com a chave reserva e reposicionou o carro uns 200 metros adiante. No dia seguinte, João mal pulou da cama e já foi devolver o veículo. Quase infarta!
– Por Deus, cumpade, eu juro que deixei o carro bem aqui! – choramingava apontando a vaga com outro carro. 

Chicó, derretendo de rir, vibrava com o troco. Troco porque, quatro meses antes, viajara em férias com Ariana e Suassuna (esposa e filha) e ao compadre confiou as chaves do apartamento. Chicó é daqueles que guardam por décadas cópias de faturas quitadas de água, luz, gás etc. Morria de medo de vazamento de torneira ou descarga. Seu freezer, inclusive, um primor de organização: camarão, lagosta, peixe, tudo embalado com etiqueta identificadora. 

No primeiro sábado, João promoveu uma farra memorável com algumas amigas e amigos. Depois de beberem e fumarem de tudo, zeraram o estoque do freezer. E ainda tiveram o descaramento de substituir o conteúdo das embalagens por pedaços de macaxeira, batata-doce e rodelas de inhame. 

Ao retornar cheio de fatos, filmes e fotos, Chicó decidiu oferecer um jantar aos amigos, inclusive o compadre. Minutos antes dos convivas chegarem, surtou ao descobrir o que havia descongelado com todo cuidado:
– Mulher! O miserável ainda escreveu nos sacos:  Macaxeira ao thermidor, Batata-doce gratinada, Inhame em rodelas com alcaparras... 

Voltando ao ataque de pânico de João com o "sumiço" do carro novo do compadre, semanas depois Chicó e Ariana lhe fariam uma breve visita, levando a afilhada para pedir a benção do padrinho. João, que nunca foi de se preocupar com visitas inesperadas, improvisou o baião-de-dois com as sobras de carne-de-sol e feijão-de-corda do almoço, enquanto, na sala, Chicó amolecia o pescoço com uma cerveja gelada. 

Comida na mesa, João senta-se em frente ao amigo e sugere: 
– Afrouxe a gravata, cumpade, tire os sapatos... – os quais, sorrateiramente, seriam trocados por um par quase idêntico. Ocorre que Chicó calça 41 e João, 38. Quando, após o jantar, a bexiga obrigou Chicó a procurar o banheiro, os pés se recusaram a entrar nos sapatos. 
– Mulher, meus pés incharam! Acho que a bebida tá me fazendo mal...

E sem videogame para matar o tédio de criança nessas visitas, a afilhada, sem querer, azedou o baião-de-dois para quatro:
– Padrinho, por que o pessoal do prédio vive dizendo que sou a sua cara?
– Esse povo fala demais, filha...

Duas semanas adiante, João seria transferido para Recife, seguro de que lá teria melhores oportunidades de crescimento profissional. Como nunca gostou de despedidas, foi-se num piscar de olhos com a facilidade dos solteirões.  

Bem próximo ao Natal, Chicó e Ariana vão ao Recife e, por acaso, reencontram João numa mesa às margens do rio Capibaribe, tomando chope com frango à passarinho no bar O Santo e a Porca, que fica na Casa Forte, bairro de atmosfera bucólica na zona norte da capital pernambucana. 

Algumas tulipas depois, num daqueles silêncios que fazem parte de toda conversa entre velhos amigos e compadres, João confere (a incerteza é a mãe de todas as insônias):   
– Nem toda besteira pode tirar o sono e acabar uma cumpadragem séria como a nossa, né cumpade?
– É verdade... – consente Chicó.

Calada até ali, Ariana encosta a cabeça no peito do marido, boceja e arremata:
– Vamos? Tô morta...

38 comentários:

  1. Há! Assistimos tantas vezes “O Auto da Compadecida" que lendo o texto “escutei” o sotaque de Chicó. Texto sensacional!

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  2. Já antevejo situações... curiosas?... no futuro, quando esse autor resolver contar tudo o que viu e ouviu no passado. Botem as barbas de molho!

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  3. Muito bom o Texto. Mas no meu tempo, comer Comadre era Pecado Mortal. O Padre de Diamante condenava o pecador a 100 Pai nosso e 200 Ave Maria.
    Abraços

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    1. Peraí, Franco Moura, ninguém sabe ao certo. Como disse João, “o povo fala demais”. A incerteza continua sendo a mãe de todas as insônias. Vai que...

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  4. Muito bom o texto, da gosto de ler e relembrando o “ Auto da Compadecida” fica ainda melhor.
    Realmente ser compadre é uma demonstração de consideração e respeito, mas, tem alguns casos que são deslizes, como dizem , “ só Jesus na causa”.

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  5. Acho que essa "cumpadragem" subiu no telhado. Ótimo texto para tratar também da cultura nordestina.

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  6. Outro fato que fazia estragos entre os compadres era negar aval. Vi muitos afilhados ficarem sem os padrinhos.

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  7. Muito Bom! Cumprade no Nordeste é o irmão que escolhe em vida, para até no caso de infortúnio, assumir as responsabilidades. No caso, foi além.

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  8. Mais um texto show de bola, Hayton.

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    1. Pena que nunca tenha existido o boteco “O Santo e a Porca”, nome de uma obra clássica do gênio.

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  10. Mais uma crônica "TOP"! Rindo aqui com as " suspeitas" do compadre...

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  11. Ariana e Suassuna: essa dupla de mãe e filha foi demais... kkkk. Mais uma divertidíssima crônica!

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  12. Mais uma boa crônica para amenizar com risos o meio da semana. Coincidentemente, estou lendo uma das obras do grande Ariano Suassuna e aqui relembrando de tantas outras.

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  13. A afilhada era parecida porque, sabe como é, né? Compadre é tão mais compadre que parente que até as feições se aproximam, kkkkkkkkkk. Adorei esse enredo matreiro.

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  14. Hayton Rocha acaba de lançar a nova Capitu! Kkkkk
    Maravilhoso texto! Tua imaginação está tão fértil que, além de acreditar no xingador de velório de uma crônica passada, já estava me preparando pra visitar o boteco O Santo e a Porca! Kkkkk

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    1. Se a criação do boteco foi uma licença ficcional, o endereço existe. Ali morou seus melhores anos o imortal Ariano Suassuna.

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  15. Olha que esse boteco "O Santo e a Porca" pode mesmo ser um sucesso nacional, hein? Quiçá internacional

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  16. Quando dois “sacanas” como esses se juntam, tudo pode acontecer, até mesmo envolvendo as benditas “Ariana e Suassuna”. Belo causo!

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  17. Mais uma pérola! Muiiiito boa. Já fico na expectativa da próxima.

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    1. Ai é a minha Comadre, kkkkkk
      Entretanto, sem nenhuma relação com o caso em questão.

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  18. Blz, Hayton! Tá parecendo que vc tem potencial e criatividade prá continuar o auto do mestre! Bela crônica.👏

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  19. Ariana e Suassuna, lembrei do bloco carnavalesco olindense Arriando Sua Sunga, duas homenagens hilárias ao querido autor paraibano.

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  20. Uma das mais tradicionais formas de "cumpadragem" do São João de minha infância era a de pular fogueira, levada muito a sério. Principalmente pelas "comadres" que evitavam namorar os "compadres".
    Hayton, cuidado para não se aprofundar muito em seu escritos, senão leitores como eu não conseguirão compreender o que se esconde nas entrelinhas.
    Parabéns!

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  21. Essas "armações" como a do carro, Lembra demais um grande amigo que tenho. Tem uma criatividade interminável, que volta e meia, algum amigo próximo é vítima..... rsrsrs

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  22. Muito bom! “Cumpadre” é irmão do ❤️ 👏👏👏

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  23. Mais um texto para a categoria dos indeléveis.
    Agora, quem conhece esse seu ar quase sacerdotal, nunca vai imaginar o quanto de sonsidão sua alma hospeda.
    Qualquer dia você vai ser obrigado a postar antes do início de seus textos, logo após o título - "esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança..." -, sob pena de começar a vir os processos com cobrança de idenização...

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  24. Meu caro escritor não há como deixar de dizer que você continua nos presenteando com suas crônicas. Sempre estão atuais mesmo que a narrativa se refira a personagens que já nos antecederam.

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  25. Agostinho Torres da Rocha Filho12 de outubro de 2020 às 09:34

    Reza o ditado popular que cumpadre é para acudir outro, especialmente quando se trata das questões mais íntimas. O texto retrata com muito bom-humor e criatividade a instituição do cumpadrio nordestino. Coincidência ou não, foi publicado na véspera da data em que se comemora O Dia do Nordestino. Parabéns, meu irmão!!! Mais uma ótima crônica.

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  26. Compadre e comadre sempre foi assunto de intriga... excelente crônica. Mas vale a história do compadre que chegou de repente e propôs pra comadre: fazer aquilo ou tomar café... e a comadre falou que não tinha pó... cada rolo. Mas às vezes compadre é igual passarinho: cai na arapuca e depois foge.

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