quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Será bem mais simples

O mundo inteiro ainda bate cabeça procurando um remédio eficaz para acabar de vez com a covid-19 – quando a vacina não resolve –, mas li outro dia que uma descoberta de pesquisadores brasileiros pode mudar o cenário. 

O pessoal da Unesp de Araraquara, São Paulo, revelou à comunidade científica internacional que o veneno da cobra jararacuçu, muito comum em nossas florestas, contém uma molécula com ação antiviral capaz de inibir em 75% a capacidade de multiplicação do coronavírus, dando tempo ao organismo infectado de criar anticorpos e neutralizar o avanço da doença.

O estudo é promissor, já está sendo testado em humanos e tudo leva a crer que o peptídeo é seguro mesmo em concentrações elevadas. Além disso, é fácil de ser sintetizado, o que simplificará a produção em larga escala. 

Já existem outras moléculas encontradas em venenos e secreções animais em remédios para tratar doenças humanas. Do veneno da cobra jararaca, por exemplo, vem o Captopril, droga para tratamento da hipertensão. Da saliva do lagarto monstro-de-gila é produzido o Exenatide, usado contra diabetes. E o Lepirudina, que vem da saliva de sanguessugas e outros lagartos venenosos, controla uma doença autoimune capaz de causar trombose, embolia pulmonar e infarto.


Li também – e esta é a parte “ruim” de gostar de ler – que, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), desmatou-se aqui na terra das palmeiras onde canta o sabiá mais de 8 mil km2 de florestas entre agosto de 2020 e junho de 2021, na maior devastação em uma década. 

 

Continuamos imbatíveis, portanto, nessa corrida sem freios, ladeira abaixo, rumo à extinção de fontes que até outro dia tínhamos como inesgotáveis para descoberta desses insumos farmacológicos.  


Se nada estancar a ganância dos chamados “agrotrogloditas” (como diz Elio Gaspari) e seus protetores de plantão, daqui a pouco só será possível a pesquisa com peçonhas e outras secreções obtidas no meio urbano.  

 

Comentava isso com um amigo quando ele me alertou que talvez seja chegada a hora de atribuir um novo significado para a figura da sogra no seio da família, buscando uma utilidade prática para o veneno que inocula nas veias de genros e noras.

 

Também defendeu que se faça algo a partir de cunhados e cunhadas, principalmente os formados em arquitetura, os quais, em momentos financeiramente inadequados, costumam sugerir reformas estruturais, paisagismos e repaginação de ambientes.

 

Chegou ainda a mencionar aquele tiozão imbecil (desculpando-se pelo pleonasmo) que se mete o tempo inteiro onde não é chamado, cujo veneno escorre pelas narinas de tanto azucrinar sobrinhos com idiotices a granel, além de empréstimos sem qualquer risco.

 

Risco, bem entendido, é a probabilidade de um evento esperado não ocorrer por conta de alguma coisa inesperada, extraordinária. No caso, não existe o menor risco: o tiozão não paga nunca! 

 

Compreendo a acidez de meu amigo, em decorrência, talvez, do pesado fardo de dissabores que teve (e ainda tem!) que engolir, mas não sou pastilha de Hidróxido de Alumínio nem gostaria de trafegar nesse delicado território das encrencas familiares. 

 

No meu caso, aliás, nunca tive do que me queixar em relação a minha sogra, que só me fez o bem enquanto esteve por aqui. Também não reclamo de cunhados e tios. Não convivo com eles a ponto de experimentar os desencantos da proximidade inevitável. O que também é ótima estratégia para eles. 

 

Disse-lhe, contudo, que vejo algum sentido na tese. Penso que cairia bem extrair secreções tóxicas de alguns seres urbanos que circulam por aí – uns possuem até o olhar frio e misterioso dos répteis –, sejam aqueles homens públicos que abusam do direito de infernizar a nossa vida, sejam os que já se arrastam de forma inapelável para a sarjeta da História.

 


Todos esses, para evitar, após a morte, o inescapável voo sem escalas em direção ao quinto dos infernos, poderiam criar para si um providencial pitstop: uma temporada no purgatório, oferecendo, para remissão de seus pecados, gotas de sangue, saliva e suor. 

Sei que será difícil extrair suor de escamas. Suor é coisa que essa gente só vê quando escorre no rosto dos menos aquinhoados pela sorte que lhe serve no conforto de ambientes refrigerados à custa do suadouro alheio.  


Outro problema é saber se haverá no purgatório espaço suficiente para abrigar tantos candidatos ao estágio. Se não houver, viria aí uma nova temporada de corrupção e mentiras, com compra e venda de vagas no mercado futuro. Tudo em dinheiro vivo, lavado e enxaguado (como diria o bem-amado Odorico Paraguaçu), sem nota fiscal e, ninguém duvide, com transmissão on-line via redes sociais. 


Será bem mais simples cuidar do que resta das florestas.  

 


31 comentários:

  1. Nesta belíssima crônica encontra-se o enredo do remake da novela "Cobras e Lagartos".

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  2. Talvez o método mais eficaz já criado de evitar o COVID-19 seja passar longe dos noticiários das redes de televisão. Tenho quase certeza que um estudo sério revelará que foi ali o epicentro da Pandemia.

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  3. A natureza nos dá tudo, Hayton. Entretanto, os agrotrocloditas a massacram de maneira avassaladora!!!

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    1. Colocar os agricultores nesse rol evidência um total desconhecimento do AGRO. Quem destrói a natureza é o criminoso. O empresário rural é quem sustenta esse país há muitos anos. E ainda coloca alimentos na qualidade e na quantidade suficientes a disposição de todos,

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    2. Faltou assinar o questionamento. Falha nossa.

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    3. Perdoe Jez Agra, Antônio Carlos, se ele não se fez entender, mas acho que não faz alusão a agricultores na acepção do termo. Faz, isto sim, àqueles que se passam por agricultores mas se assemelham aos trogloditas, um povo desprovido de qualquer princípio de eqüidade ou justiça. Vivia, reza a História, sob o jugo autoritário de um rei incapaz de corrigir sua personalidade congênita. A certa altura, se insurgiram, depuseram o rei e exterminaram a família real. Povinho safado, ruim de tanger, da pior espécie…

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    4. ANTONIO CARLOS CAMPOS3 de outubro de 2021 às 05:48

      Como pertencente a classe dos Agricultores, aqueles que antes de tudo são os grandes Ambientalistas desse país, não podia deixar de fazer esse comentário. Não tive também a intenção de passar um pito em ninguém, mas apenas esclarecer os fatos. Tamo junto!

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  4. Você expôs o veneno do mundo com esse texto. Perfeito! Ah, esqueceu das madastras e padrastros. Kkkk

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  5. Caro amigo, a fila da sarjeta já dobra a esquina. Viva a ciência! Viva a Arquirtetura!

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  6. Mais uma crônica bela e rica de informações 👏👏Pois é, as cobras realmente perniciosas não estão nas matas e sim nos gabinetes refrigerados.

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  7. Muito bom!
    Ainda bem que deixei para ler após a caminhada, pois passei em lugar ermo com mato a capinar e, quem sabe, não poderia pular de lá uma jararaca qualquer e pimba duma mordida. Não sei se o inoculante desta escamada serve para cura de alguma das minhas comorbidades. Mas caso seja só venenoso, teria a opção de reforçar os pulmões com uma chupada, no ferimento se frise, pois se diz que a sangria para esses casos é um santo remédio. Diferente do veneno de um monte de cobras que teimam em não nos deixar em paz.

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  8. Mais uma crônica na jugular, com riquíssima perspicácia.

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  9. Como alguém já falou: " Quando eu morrer e me tornar um ser de luz, já tenho a listinha dos que voltarei pra eletrocutar"!!!Kkkkkkk

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  10. Muito bom, como sempre 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

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  11. As cobras ainda se aproveita alguma coisa para salvar o ser humano, mais tem ser humano principalmente grande parte dos nossos politicos,não se aproveita nada:e ainda matam. Bela Crônica meu amigo !

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  12. Fontes de veneno não vão faltar. Rsrs

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  13. Parece que o veneno salvador, a exemplo das jararacas,está minguando. Já o veneno daqueles que fustigam os menos favorecidos brota cada vez de modo mais intenso.E assim caminha a humanidade...

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  14. O caminho traçado pelo texto é comparável com um passeio de barco num final de tarde nas águas do Pantanal, sem a fumaça das queimadas. Belo.

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  15. Texto eclético e, como sempre, bem escrito! Nota-se que demandou pesquisa! Muito bom!

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  16. Caro amigo Hayton, você fez um belo passeio, fazendo enaltecer as cobras "de verdade". Aliás, tudo na natureza tem sua finalidade para que se preserve o equilíbrio.
    Ao mesmo tempo, você acertou uma sutil "varada" nas "cobras da vida". Essas, sim, pouco contribuem para a sobrevida da humanidade.
    Forte abraço.

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  17. Como disse o Diniz, louvo a pesquisa exaustiva e enriquecedora.
    Adorei a referência ao Hidróxido de Alumínio. Não sei por que, mas fui tentado a associar com certo “medicamento” receitado por alguns médicos “sêniores” durante a pandemia! Hahaha

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  18. Ansioso para lê a crônica, desta quarta, fico feliz com mais este presente.

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  19. Hahahahaha
    Sei não! Melhor desenvolver os antídotos, para depois manipular tais humores e secreções.
    Acidentes acontecem!

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  20. Mais uma pérola, e desta vez com um cabedal de informações científicas de causar inveja aos doutores de plantão.
    Sutilíssima a homenagem aos tios e cunhados, sem deixar de se proteger com a referência à recíproca.
    Por fim, a sábia e verdadeiramente insofismável insinuação de que não pode haver veneno mais destruidor que aquele que o ser humano é capaz de produzir.
    Seus textos vão nos viciando - meu consolo é saber que deixarei de acessá-los antes que você deixe de produzi-los, afinal sou um seminovo já bem rodado...

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  21. Já estamos recebendo de volta o que temos feito com a natureza. Tempos mudaram demais. Meteorologia que nos diga. Infelizmente a tendência é piorar. Que pena. Mas a coisa da sogra é verdade. Nem precisa outra cobra.

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  22. AGENOR FRANCISCO DOS SANTOS2 de outubro de 2021 às 19:49

    A sua habilidade com as letras e a perspicácia com que foca os temas, já começa a deixar saudade nos leitores "seminovos" que pensam que partirão antes de você, como disse o Carlos Volney!!1 rsrsrsr Parabéns pela qualidade e profundidade dos seus textos! (Salvador-BA).

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  23. O seu artigo é digno de chegarmos a conclusão de como o tempo é capaz de mostrar as inversões que precisamos nos adaptar. Quando criança (hoje tenho 7.1), constantemente ouvia meu pai dizendo: “cuidado ao andarem pelos campos, pois lá existem muitos bichos peçonhentos - ele evitava até falar a palavra cobras”. Coitada das cobras. Pelo seu relato, noto que no século 21, temos que nos preocupar é com “alguns seres urbanos que circulam por aí - uns possuem até o olhar frio e misterioso dos répteis” e, ao mesmo tempo cuidar do que resta das florestas. Florisvaldo - São Paulo

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  24. Li gostei e compartilhei! Gostaria ter essas suas crônicas na minha rádio faladas por voce. São exelentes para uma radio. Mesmo que não seja a minha, pense.

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  25. Em poucas linhas disse tudo! Muito bem …
    Abs 👏👏👏👏

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