quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Os papa-figos e a nação do desassossego

Entre calçadas, escolas e quintais, vivi quase todas as traquinagens e safadezas de um curioso e impulsivo representante daquilo que o poeta paraibano Jessier Quirino chama de nação do desassossego.

Recuperei-me bem dos primeiros anos em que me botavam para dormir sob a ameaça de boi da cara preta ou de prisão num quartel, se não marchasse direito com minha cabeça de papel. A canoa quase virou, eu não sabia remar, mas ainda estou por aqui vendo meus netos crescerem.

 

Existe um malassombro, porém, que mexeu comigo e com toda uma geração de desobedientes: o papa-figo (contração de "papa fígados"), também chamado de “homem do saco” ou "velho do saco", que os mais letrados teimam em tratar como lenda do folclore brasileiro. Descobri mais tarde que a versão portuguesa "papa figos", uma ave, inspirou o rótulo de um belo vinho, bem mais palatável que o papa-figo tupiniquim.

 

Voltemos à suposta lenda do folclore brasileiro. Lenda coisa nenhuma! Lenda é boitatá, boto cor-de-rosa, caipora, curupira, lobisomem, mula-sem-cabeça, negrinho do pastoreio, saci pererê, essas coisas. O papa-figo, não. É concreto, assustador, dentro da cabeça de quem sobreviveu à sua fome. 

 

Para o antropólogo e historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), em sua obra Geografia dos Mitos Brasileiros (1947), “O papa-figo é como o lobisomem da cidade, que não muda de forma, sendo alto e magro... é um velho sujo, vestido de farrapos, com um saco ou sem ele, ocupando-se em raptar crianças para comer-lhes o fígado ou vendê-lo aos leprosos ricos...”

 

Ainda segundo Cascudo, “...em outras regiões é muito pálido, esquálido, com barba sempre por fazer. Sai à noite, às tardes ou ao crepúsculo. Aproveita as saídas das escolas, os jardins onde as amas se distraem com os namorados, os parques assombrados. Atrai as crianças com disfarces ou mostrando brinquedos, dando falsos recados ou prometendo levá-las para um local onde há muita coisa bonita...

 

Diziam que o papa-figo, após comer o fígado dessas criaturas indefesas, deixava ao lado dos corpos uma certa quantia para as despesas com o enterro dos restos mortais e para ajudar a família enlutada. Não seria de todo mau, portanto.

 

Mas existe quem garanta que toda essa conversa surgiu em meados do século XX devido a um surto da Doença de Chagas no Nordeste. Para enfrentar o flagelo sanitário, técnicos do governo federal teriam sido deslocados para as comunidades onde havia muitos enfermos. Como a punção do fígado era procedimento de rotina na necropsia dos mortos, aí começou o disse-me-disse.

 

Ilustração: Umor 

Olhe... Sei não, viu?! Pergunte a qualquer sobrevivente daquela época se esse cão dos infernos é real ou não. Duvido que negue e diga que se trata apenas de uma lenda que atormentava as cabecinhas fantasiosas da molecada desobediente aos pais e apressada em descobrir os cantos e encantos do mundo. 

 

Ultimamente, aliás, tenho visto muito papa-figo solto por aí, a degustar com azeite, orégano e sal o fígado de um rebanho inocente marcado a ferro e brasa para sofrer. Só mudou um pouco o jeitão de vestir-se e de camuflar intenções, ocultando fatos para proteger algum capataz ou mentindo ao lidar com um abominável gado novo que rumina no pasto. E sem deixar dinheiro para o enterro.

 

Tem papa-figo que tentou esconder-se no anonimato, operando como membro de um conselho paralelo à margem da pasta responsável pela saúde do rebanho de mais de 200 milhões de cabeças. Andou sugerindo inclusive minuta de decreto para que se mudasse a bula de remédios com ineficácia comprovada no tratamento de uma peste que ainda ameaça de extinção boa parte do plantel.

 

Outro fez de tudo para retardar o processo de compra de vacinas com visões conspiratórias e anticientíficas que comprometiam a imunização coletiva e a superação da peste. Pior, quis terceirizar a culpa pelo seu fracasso invocando o lugar-comum dos covardes: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. 

 

Teve ainda aquele que pressionava pela compra de um imunizante da Índia – onde a vaca é sagrada, mas o país é o maior exportador de carne vermelha do mundo –, via contrato com uma empresa “de fachada” que quase embolsa alguns milhões de dólares pagos antecipadamente. Se não fosse a intervenção de um vaqueiro assustado, para quem a decência ainda constitui valor a ser preservado entre os animais, teria gente rindo da gente até agora.

 

Houve até um papa-figo apeado de importante cargo executivo por corrupção e lavagem de dinheiro, esquema envolvendo a contratação de hospitais de campanha, compra de respiradores e medicamentos para estancar a peste que já dizimou nada menos que 615.000 cabeças.

 

O mundo praticamente acabou durante quase dois anos mas, aos poucos, os sobreviventes saem de cavernas para explorar novas possibilidades. E se frustram quando percebem que foi duro ter caminhado tanto em vão, que a engrenagem já sente a ferrugem. 

 

Com a chegada de novas eleições ano que vem, os papa-figos de sempre (e suas crias) já se movem à espreita de novos garrotes e novilhas, no desassossego de uma nação que marcha de chocalho para o brejo. Ou, quem sabe, para o matadouro.

35 comentários:

  1. Considerando que o brejo secou, pela falta de chuvas e em função das queimadas, a caminhada é na direção do matadouro. Se tiver sorte levarão um tiro de ar comprimido, seguindo a tendência normal é na cacetada mesmo. Vamos acordar boiada?

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  2. Triste é verificar no rebanho, após um bom período de reflexão, com a travessia desgastante, sofrimento, perca da vida e qualidade desta, integrantes do rebanho que se alinham, discutem, apostam na vida de gado..........

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  3. Sutil porém perfeita análise do momento que vivemos. Parabéns. Realemtne os tempos são difíceis... e ainda temos onze abutres togados ditando as regras e não há o que fazer a respeito. O pior é a falta de esperança.

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  4. ANTONIO CARLOS CAMPOS1 de dezembro de 2021 às 07:25

    Realmente,tudo que foi dito com maestria e detalhes cruéis, é verdadeiro. A forma das mães conseguirem recolher a criançada, de dia ou de noite, era tocando o terror. Quando mais indisciplinada a criança, maior a dose de terror. O tempo, também cruel, foi dissipando o possível da cabeça dos viventes. No meu caso específico quase tudo passou, restando apenas aquele medo persistente do escuro. O Arsenal de combate é grande: velas, fósforos, lanterna e lampião de LED na cabeceira da cama. Aliás, nem podemos chamar de medo; é pavor mesmo.

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  5. Espetacular....
    Leve e motivadora de reflexão de nossa dura realidade.

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  6. Análise perfeita, serve tb para reflexão da boiada com argola nas narinas

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  7. Já tinha ouvido falar do Papa-figo, acho que lendo o Pasquim. Acho que ele vai ganhando outras caras mesmo, à medida que a gente cresce.
    Nossos medos estão ali o tempo todo, com ameaças novas, que trazem novos desassossegos, e talvez a gente seja só isso eternamente: uma criança a se tremer pelo que está a bater em sua porta.

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  8. Brilhante a descrição dos medos que nos impunham e que muitos de nós espalhamos até hoje.
    Pra certa gente, falta imaginação. Ressuscitaram até o papa-figo que come criancinhas, que andava fora de moda! Sem falar no jacaré malvado que fica dentro de nós, dissimulado, esperando só a gente tomar vacina pra tomar conta de nosso corpo todo!

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  9. Muito consiste a análise sobre o que ocorre em nossos dias. Que contribua pra despertar do transe aqueles que ainda não tiveram a sorte de acontecer.

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  10. O pior é que agora nem dentro de nossas casas com a luz ligada, portão fechado e banho tomado estamos seguros com os novos papafigos.

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  11. Excelente crônica Hayton. Ressuscitaram o papa-figo!

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  12. Pois é!
    Morro de “medo” dos papa-figos modernos (o antigo, nem conheci; não estava entre os ogros de minha região, na minha época).
    Muito bom!

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  13. E achávamos que ao sair da infância, regada a tantos monstros imaginários, os teríamos apenas na memória e em nossos sonhos. Ledo engano. Eles tomaram forma concreta, de carne e osso, transformando-se em pesadelos reais.

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  14. Olá... Mais uma vez somos levados à reflexão... Concordo com a existência desses tais "papa-figos", nas formas como descritas. Entendo que são muitos e, muito maior, é a legião de seguidores (ou apoiadores...) dessas tantas "histórias" que nos são impostas por todos os meios possíveis... É muito difícil para nós, "pobres mortais", tirarmos conclusões justas, pois são tantas as inverdades proferidas...

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  15. Espetacular análise dos momentos vividos sofridos das boiadas manobradas. Lembro de uma recusa de um dos mais famosos monstro travestido de político em negar as construções de hospitais e priorizar as faraônicas construções de currais em formatos de estádios de futbol. As boiadas existem mas precisamos divulgar direito quem são os donos das cabeças manobradas. E por falar em boiadas a JBS está aí financiando o maior criador de boiadas.

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  16. Esqueci do papa-figo, talvez tenha sido porque eu sou transplantado do figado. Talvez porque eu acredite que o ator principal dessa macabra história esteja voltando para nos colocar no país dos horrores.

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  17. Essa relação de semelhança entre fatos distintos e fantasmas que povoaram nossas vidas, mostra-nos a todos que o papa-figo está entre nós e com muita fome de abarrotar o saco. Ainda bem que uma luz no fim do túnel brilha cada vez mais forte, indicando que o vilão e suas crias estão com os dias contados, ou melhor, com uma grande parte do seu rebanho abatido.
    Muito boa e com muita precisão a crônica. Como sempre, amigo Hayton…!

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  18. Ainda bem que o papa-figo da crendice popular era materialmente inofensivo.Os de hoje, travestidos de políticos, especialistas, juristas e mais alguns "istas", espalhados aos quatro cantos e brotando como ervas daninhas, além de subtrairem o pão massacram o emocional dos mais necessitados.
    Parece que, mesmo a sociedade ao acordar, o pesadelo continua e a esperança fica desconstruída.

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  19. Estamos vendo que o folclore está virando, de crença, uma dura realidade.

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  20. Hayton, parabéns! Gostei muito da metáfora com os papa-figos que estão assombrando o Brasil inteiro.

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  21. Hayton, geralmente seu texto ou me leva a rir ou me faz chorar! Hj lacrimejei...é triste a certa altura da vida ver este País, tão belo e grande, minguar em todos os sentidos! Prá onde caminhamos? Próxima semana, sem choro?
    Tiberio

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  22. Adorei faz parte da minha infância e adolescência.

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  23. Agostinho Torres da Rocha Filho1 de dezembro de 2021 às 17:31

    De fato, papa-figo não é apenas uma lenda, mas uma realidade assustadora, tanto no passado como no presente. Não esqueçamos, porém, da figura do papangu, que me atormentou na infância e insiste em tirar o meu sono nos dias atuais. Eu só não consigo identificar quem é quem hoje no cenário político brasileiro, mas espero que possamos expulsar essas assombrações de nossas vidas o quanto antes. Que venha 2022!

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  24. Excelente crônica! Analogia perfeita com a qual estamos vivenciando.

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  25. Eu já tinha ouvido falar na figura do papa-figo, mas a crônica mostrou de forma clara como o desgraçado comia fígados das crianças. Na minha cidade existia o tal "comiolo", um homem que tarde da noite circulava pelas ruas catando pessoas para comer-lhe seus miolos. Que medo na época. Mais um bela crônica da coleção publicada pelo Hayton.

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  26. Perfeito, Hayton! Voltei à infância, onde hoje posso dar risada dos meus medos! Voltei à realidade e está difícil sorrir...

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  27. No Brasil de hoje se correr o papa-figo pega se correr o papa-figo come. Só nos resta orar e votar por dias melhores...

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  28. Cara, você chocou com esta - e era necessário que alguém fizesse isso.
    Ninguém, rigorosamente ninguém conseguiu sintetizar com tanta precisão as raízes da tragédia que ainda vivemos e vivenciamos.
    Você conseguiu buscar em nosso folclore mais primitivo a inspiração pra definir o quadro dantesco por que passamos - sem perspectiva firme de dele nos livrarmos - e resume com uma contundência que nos faz meditar sobre nossa incapacidade de reagir.
    Os mais consagrados "escribas' invejariam você ao acessar essa verdadeira e brilhante tese.
    Vida longa a você - com a manutenção da energia nuclear dessa mente...

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  29. Gostei, Hayton, excelente! Vamos enxotar esses "
    papa figos!"

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  30. Povo marcado...Povo feliz...e os papa-figos seguem assombrando...

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  31. Adorei, e lembrei de algo recente. Ocorre que ontem estive num dermatologista renomado aqui do DF. Fui catucar uma pereba, no lábio, para ver se tem semelhança com a doença que mamãe chama de CA. Quando tiro a máscara, para que ele faça a investigação, tranquilizo-o dizendo que já tomei vacina, e até a dose de reforço contra Covid. Ele, aí solta na telha a seguinte frase: "Problema teu, que se vacinou". Bem, como não é bom discutir com barbeiro, com navalha na barba, nem tampouco com médico, com lente na tua boca, recuperei-me do inédito. E esperei o veredito de que era uma pereba de aparelho ortodôntico. Mas, confesso-lhes que aquela informação que o doutor papa-fígados me deu, foi acolhida sem nenhuma expressão de afeto. Eu queria mesmo era sair dali, imediatamente. Ele ainda quis me vender uns tratamentos rpa eu ficar com o rosto mais jovem, mostrandro a ele mesmo como modelo, do alto de seus 67 anos. Desconversei. Aprendi a não discutir com este povo. Tudo maluco. Esta postura de um prestador de serviços que não se vacina, além de anacrônica e negacionista, ainda coloca em risco aos seus clientes. Tua crônica é perfeita. E, o mais cruel é que se antes os papa-fígados faziam aquilo para exumar cadáveres. Os de hoje, com suas Terras Planas - da Academia de Ciências Olaviana, criam mortos-vivos. Pessoas cujo único sentido na vida é defender as loucuras de um mito, e seus mito-liderados, e contam orgulhosas que se tornarem caçadoras de comunistas. A minha única vingança, neste caso, foi denunciar este atendimento nos comentários do APP de marcação de consultas. Foi a minha forma de também estragar o fígado dele.

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