O trem chegou às oito e meia da noite na estação de União dos Palmares, Zona da Mata alagoana, num dia útil qualquer do final dos anos 60:
— Oxente, Açoite, o que cê tá fazendo aqui? — quis saber a dona da casa, surpresa com a inesperada visita.
— Acabei de chegar, dona Eudócia — respondeu, enxugando a testa na manga da camisa.
— Como é que cê veio?
— Tem dois dias que tô viajando.
— Quem deu a passagem?
— As irmãs do Cristo Rei.
— Tá com fome?
— Muita.
— Entre, sente.
— Tem sopa?
— Tem. Vou esquentar.
A molecada morria de medo de levar uma pedrada na cabeça, mas gostava, a razoável distância, de vê-lo a produzir com o vento um assobio ao girar uma pedrinha presa a um barbante, tirando finos cada vez mais próximos de sua própria boca.
Vinha daí o apelido. Açoite (chicote, chibata etc.) é uma trança de corda ou tira de couro presa a um cabo para fustigar animais e, em certos países, para castigar seres humanos por violação de normas instituídas por eles mesmos.
No auge da performance de Açoite, sempre aparecia alguém querendo quebrar o encanto:
— Tem juízo um homem desses?!
— Tem nada! — dizia o próprio Açoite, a piscar os olhos, em tique nervoso — Mas é melhor ser doido em Patos do que prefeito em Piancó.
E quando estava em Piancó ou Conceição, só “recalculava a rota” de seu GPS. Sobrava então para o prefeito de Patos.
Tinha outros problemas de saúde, claro, mas também foi diagnosticado como epiléptico pelo único médico da cidade de Patos. Na época, a epilepsia ainda era associada à loucura e até a possessões demoníacas. Com esse estigma, as crises convulsivas de Açoite — que não tinha meios para uso regular de remédios — assustavam a criançada no meio da rua.
Havia algumas mulheres que se aproveitavam desse temor para ameaçar os filhos: “Fique quieto, danado, senão eu chamo Açoite para te pegar!”
Quando dona Eudócia soube disso, teve pena e assumiu com Açoite o compromisso de lhe fornecer o remédio todo mês, além de garantir um prato de comida no almoço e outro no jantar, como já vinha acontecendo. “Ele chegou a engordar um pouquinho”, ela me contou.
Um dia dona Eudócia foi embora com seus filhos, acompanhando o marido, que fora nomeado subgerente do Banco do Brasil em União dos Palmares (AL), a 430 km do Sertão paraibano.
Açoite sentiu. Mas poucas semanas depois procurou a agência do banco em Patos para saber o paradeiro do marido de sua protetora. Em seguida, foi ao Colégio Cristo Rei, onde convenceu algumas freiras a arranjarem o suficiente para pegar o trem para Recife e, de lá, para Maceió. Assim, ficaria fácil chegar ao destino pretendido, a 70 km da capital alagoana.
Ilustração: Umor |
Naquela noite, depois da sopa e do banho com sabonete “de gente”, como dizia Açoite, pediu rede e lençol para dormir. Antes que caísse no sono, dona Eudócia quis saber:
— Gostou da sopa?
— Oh! Já tô pensando no pão com manteiga e café amanhã bem cedinho.
— Teve saudade da gente, foi?
— Foi.
— Por quê?
— A senhora cuida de mim. E os meninos não têm medo.
Uma semana depois, Açoite deve ter lembrado do balanço de rede no Sertão paraibano e ficou amuado pelos cantos da casa. Foi quando, com a ajuda de sua protetora, pegou de volta o trem, levando, além de um trocado, algumas caixas de Gardenal.
Como tantas outras pessoas que cruzam o nosso caminho, do jeito que apareceu, sumiu. Nunca mais se ouviu falar dele.
A crônica nos lembra os “Açoites” das nossas cidades, na minha Igaporã, Zé Bernardo e outros, que sempre encontram uma D Eudocia pelo caminho. Os Parabéns hoje são para D. Eudócia, que teve a oportunidade de praticar a caridade e fez.
ResponderExcluirMuita humanidade
ResponderExcluirEssa empatia tomou um trem para endereço ignorado e está fazendo falta no mundo. Mais um fato que foi tragado pelos novos e assombrosos tempos.
ResponderExcluirEsse teve a sorte de encontrar quem dele cuidasse. Humanidade de outrora tornou-se açoite nos dias de hoje...
ResponderExcluirQue crônica bonita. Mostra o lindo ser humano que é dona Eudócia
ResponderExcluirQue bom, Fada! Você captou bem o espírito. Quis falar também dessas pessoas que nem percebem o quanto nos marcam, a ponto de nos lembrarmos delas meio século depois.
ExcluirA crônica me fez lembrar vários casos de minha cidade natal, em Pernambucano, onde também tínhamos diversos Açoites, com nomes diversos (Nelson doido, Gonga, Todo Feio, Zé da lata, Chico da Barra etc.), que tal qual citado no belo texto, da forma desconhecida como apareceram, também sumiram.
ResponderExcluirFausto era um doido lá de Crateús. Dizia-se que ele sabia o dia do aniversário de todos na cidade e vivia da caridade das Eudócias que visitava quando alguém da casa estava em celebração. Ao menos dos 6 filhos de minha mãe ele de fato sabia e hoje ainda lembro e espero sua visita todo ano, 50 anos depois.
ResponderExcluirConhecemos pela vida, em nossa trajetória vários "açoite", como também, um Padrinho/Madrinha, pessoas com um imenso coração humano, sempre acolheram e receberam gratidão a verdadeira manifestação de apreço e carinho. Além de orações. Eudocia exemplo.
ResponderExcluirA crônica exalta a bondade e a solidariedade de d. Eudócia, figura que conseguimos identificar, tal e qual o Açoite, em cada cidade por onde andamos ao longo da carreira no BB. Cada um de nós pode lembrar de tais personagens. O que é raro é esse espírito de doação que garante aos "Açoites" as refeições quentes de cada dia.
ResponderExcluirQue belo exemplo de complementaridade de almas. Emoção em estado puro!
ResponderExcluirEsta é mais uma daquelas crônicas cuja leitura, em certos trechos, dá um nó em nossa garganta, fazendo-nos parar pra respirar e depois recomeçar. D. Eudócia – guardadas as devidas proporções – repete o gesto de Santa Dulce aqui em Salvador-BA, acolhendo os desvalidos por pura generosidade e amor ao próximo, sem esperar nada em troca.
ResponderExcluirChorei de emoção, não vou negar.
Epilepsia não tem nada a ver com doideira, sabemos todos. Mas, como dizia um velho sábio mineiro:
ResponderExcluir.
"...Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou – que doideira – um louco de juízo."
.
Há um mistério em saber o porquê de certos "transeuntes" em nossas vidas. Alguns parecem vir como anjos, curando nossas chagas, acolhendo-nos no conforto de seu regaço; outros, tão somente passam, tais como viandantes irrelevantes em nossa faina diária; há, ainda, aqueles que nos parecem impor um carma, um fadário, fruto de débitos pretéritos ou do malvado acaso. Qualquer que seja o (a)caso, amar, menoscabar ou sofrer, mais das vezes, será resultado de como me comporto diante de cada vicissitude.
ResponderExcluirCaridade é a palavra chave, nesse belo relato sobre a vida de "Açoite"...
ResponderExcluirAh...
Se existissem mais gestos fraternos, muitos "Açoites" não morreriam no esquecimento...
Diria que esse "Açoite" é, de fato, uma "vítima da sociedade", não aqueles que se valem de valores alheios para gozarem a vida...
Forte abraço ..
Entristece-nos que os “Açoites” vão recrudescendo pelo mundo e cada vez mais desamparados e à margem da sociedade, na mesma escala em que o espírito de filantropia vai definhando.
ResponderExcluirPrecisamos de mais “Eudócias”, mais empatia; precisamos de olhos que ainda possam chorar e de mãos que ainda possam servir.
Parabéns, Hayton.
Açoite me fez voltar no tempo e, coincidentemente, lá para União dos Palmares-Al. No final da rua onde morava, na rua do Cangote, tinha figura parecida, o Geraldo ou Geo. Não gostava de tomar banho, não tinha um dente na boca, mas comia e engolia tudo e minha mãe era sua protetora e eu, depois que passei a trabalhar no Banco sempre lhe dava um trocado.
ResponderExcluirFicava na porta lá de casa me esperando ir almoçar. Só ia embora com o dindin no bolso. Recordar é viver.
Figura esquisita esta. Mas, esse mundo de meu Deus é pródigo em gerar criaturas por vezes errantes, estranhas em si. Como os Açoites da vida. Cumprida meio sem sentido, da forma que dá. Quanta riqueza há por trás de figuras assim. Que chegam a fazer parte da formação de tantos e tantas. Ora exercendo medo, ora fascínio. Porque, caso bem pensado, é uma grande e indecifrável incógnita. Ninguém lhe adivinha o querer. Que brota naturalmente, como que nascido do nada. Mas que provoca medo, isso é verdade. E o desvario de uns esquenta o coração penitente dos benfeitores, os outros. Mas não passa em branco. Serve até de mote para um escrito supimpa como este que vimos.
ResponderExcluirPoxa, queria saber mais do Açoite!
ResponderExcluirIdentifico-me com a história: minha mãe também era uma espécie de protetora dos desvalidos que apareciam no nosso “esconderijo”.
Mas eu tinha medo!
Bela crônica Hayton, parabéns! Leve na sua essência, mas que retrata a solidariedade, como a de Dona Eudocia, a humanidade na sua abrangência e relembra o perfil de Açoite pessoa cujas características nao são difíceis de se encontrar em nossas cidades, a exemplo dos saudosos Pilhinha e Neres na minha Penedo, cuja passagem por aqui, independente das comorbidades que lhes afligiam, marcaram singelamente entre nós suas passagens, até ingênuas, mas repletas de bondades interiores.
ResponderExcluir.....simples e cotidiana feito a vida!!! Muito legal meu caro!!!
ResponderExcluirCertamente Açoite está a cuidar quietinho, do jeito dele, na rede de Eudócia, a proteger sua protetora, que carinho de coração a gente não esquece não. Salvei Eudócia!
ResponderExcluirQue beleza de narrativa, Hayton! Sobre Açoite, fiquei com a impressão que fez-se de louco para suportar as agruras da vida. Em verdade, um homem de sensibilidade apurada que um coração amoroso como o de D. Eudócia pode acolher e fazer dissipar o medo. Não só o medo do próprio Açoite, mas também dos próprios filhos, sendo esta, para mim, uma prova inequívoca do respeito que tinha por aquele homem sofrido.
ResponderExcluirAçoite fez parte da minha infância e adolescência. Diziam - e eu acreditava - que ele tirava a barba (muito rala) com aquela pedrinha amarrada a um cordão, que girava em alta rotação. Mas era um "doido" muito sabido e inofensivo.
ResponderExcluirEsse "anônimo" sou eu, ÍRIO MEDEIROS DA NÓBREGA, natural de PATOS-PB, que conheceu praticamente todas as pessoas folclóricas da região e, em particular, os "doidos".
ExcluirAcoite tambem foi parte da minha infancia e tambem frequentou bastante a nossa casa em Patos, onde minha mae o alimentou varias vezes. Mas que exemplo de coracao puro, acho mesmo que foi um anjo de alguma forma, pois tocou o coracao de muitos.
ResponderExcluirDe um lado o Açoite, ser humano castigado pelo destino e a vagar pelos sertões buscando as poucas pessoas capazes de lhe proporcionar o que provavelmente tanto lhe faltava, o amor.
ResponderExcluirDe outro, o próprio amor, Dona Eudócia, fazendo o bem sem olhar a quem.
Ainda hoje muitos Açoites perambulam pela vida. Mas como nos fazem falta donas eudócias…
A morte continua sendo um
ResponderExcluirMistério, a causa mortis também, não sabemos o que pode vir nos próximos segundos, minutos e vamos segurando nas bengalas químicas e prolongando nossa estadia por aqui.