quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Melhor deixar pra lá

Outro dia dei com os olhos numa notícia na internet que me deixou bastante curioso: “Wanessa canta música romântica de Katy Perry para Dado a caminho de retiro tântrico”.

 



Antes de saber o que seria retiro tântrico, quis conhecer melhor as figurinhas citadas e descobri que Wanessa, 39 anos, é cantora e compositora, cria da dupla Zezé de Camargo e Luciano. Dado, 42 anos, de profissão incerta, ignorada e não sabida, é filho de grandes artistas: Carlos Eduardo Dolabella (falecido) e Pepita Rodriguez. E Kate Perry, bem, não vem ao caso. Ela só entrou no caso com a música romântica.

 

“Mais não informo porque não me foi perguntado”, diria o sábio Google, deixando nas entrelinhas, entretanto, que o mencionado garotão puxara cadeia por conta de agressão física e insultos a ex-esposas. Na aldeia do culto à misoginia, não falta quem diga que elas fizeram por merecer. Ou que ele tem boa chance de uma carreira política de sucesso.

 

Logo me veio à cabeça coisas indizíveis sobre o programa dos pombinhos apaixonados. Nem sei se tenho querosene na lamparina para clarear certas modernidades socialmente aceitas à revelia do que pensam ogros como eu. Mas imaginar é livre, e você nunca é confrontado sobre isso.

 

Num rasgo de devaneio, imagino meu avô, o velho Zé de Brito Jurema, espécie de clone analfabeto, carrancudo e matuto de seu genial conterrâneo Ariano Suassuna, a desmontar de sua égua defronte à casa de chão batido em que morava, no Brejo paraibano, fazendo um curioso convite a minha avó Carmelita:

– Mais tarde, vosmecê quer ir comigo num retiro “não-sei-o-quê-lá” ali no sítio do outro lado do rio?

– Que marmota é essa, Zé? Tá me achando com cara de quenga? Isso parece negócio do Tinhoso ou de comunista safado!

– Oxente, mulher, o dono do sítio é gente boa, meu amigo. Deve ser coisa de primeira…

– Pois vá vosmecê com sua égua!

 

Diante de minhas conjecturas, o velho inspira fundo, cerra os dentes e pede de joelhos ao Criador para reencarnar de novo. Quer pegar o netão aqui num canto de cerca para levar uma prosa de pé-de-ouvido, seguida de uns croques e umas quatro lapadas no espinhaço, de cinturão ou chibata.


Desisto. Melhor deixar isso pra lá.

 

Confesso que não me sinto confortável em pedir ao Criador que me dê a oportunidade de experimentar essas saliências modernosas de hoje em dia. Prefiro, por exemplo, tomar chá de hortelã da folha miúda com roscas de farinha integral, às quatro da tarde, sentado no sofá ao lado de minha velha namorada, comentando cenas do excelente seriado This is us (Amazon Prime Video).

 

Ele, certamente, ficaria chateado comigo e se recusaria a admitir que me fez à Sua imagem e semelhança. Por coisa bem mais simples (uma maçãzinha de nada, no lanche), aliás, ficou bravo com Adão, a ponto de expulsá-lo do Paraíso com Eva e a criançada, no primeiro despejo extrajudicial de que se tem notícia. Está claro que a fúria de Caim veio daí!

 

No entanto, com minha mania de associar tudo aquilo que vejo, escuto, provo ou toco a canções populares, ao reler a notícia desconfiei de que retiro tântrico não seja coisa tão nova assim. 

 

Há quase 30 anos, a banda Mamonas Assassinas trouxe ao lume (como dizem nossos irmãos lusitanos) a ingênua Vira-Vira, com sotaque e tudo, cujos versos nos permitiam fechar os olhos e imaginar, mesmo com carência de detalhes, o que estaria acontecendo numa casa portuguesa (ouça aqui).

 

A letra de Vira-Vira foi inspirada numa anedota do inesquecível Costinha (1923–1995). Conta a história de Manoel, um gajo convidado para uma espécie de retiro da época. Por não saber exatamente do que se tratava, ele pediu a Maria, sua esposa, que o representasse no encontro. Na volta, toda dolorida, a mulher acabou sendo vítima de assédio moral (gozação) por parte do marido.

 

Na dúvida se devo ou não escrever sobre o assunto, achei prudente ouvir uma especialista no assunto, por telefone. Ela me diz que retiro tântrico nada mais é do que um encontro de pessoas em imersão transcendental num lugar aconchegante e silencioso, por alguns dias, onde cada uma se reconecta com sua essência, com as fontes primárias geradoras de vida, recarregando as baterias na base de meditação profunda e massagens (inclusive nas partes íntimas, com todo respeito, claro!). 

 

Tudo indica ser algo em linha com “Mens sana in corpore sano”, secular citação latina do poeta romano Juvenal. Às vezes as pessoas descrevem de forma rebuscada as coisas mais simples.

 

Ainda assim, resolvi deixar isso pra lá, nada escrever para não criar constrangimentos em almas mais sensíveis. Vai que uma delas, mais afoita, se anima e pega uma virose nessas aglomerações. Eu não me perdoaria.

31 comentários:

  1. ADEMAR RAFAEL FERREIRA2 de novembro de 2022 às 04:25

    Depois dessa sugiro a realização de um "retiro harmônico " não no sentido musical e sim na perspectiva harmoniosa entre pessoas que se dizem humanas. Vamos lotar praças, estradas e ruas com quem queira viver em paz.

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  2. Uma excelente crônica !
    Mas agora preciso saber sobre essa tal imersão transcendental…
    Será qur não se corre risco de agogsmrnto nessa aventura ?

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    1. Em cima da Terra e debaixo do Céu, Sr. Anônimo, tudo é possível ultimamente.

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  3. Excelente crônica, meu caro amigo Hayton!

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  4. Em tempos de redes sociais, se brincar, é possível até que tenham imagens do tal retiro pra circular. Em outros tempos nem saberíamos que a cantora e rapaz formassem um casal. Se, por um lado, a notícia não serve pra nada, por outro, já serviu pra aguçar curiosidade sobre o que se passa num retiro desses.

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  5. A assessoria de imprensa do dito casal tem feito um excelente trabalho de mantê-los em evidência (e a Malta das redes sociais ama “shipar” casais) desenvolvendo a tese do “garoto bonito amargurado que fez merda na vida foi curado por um chá de priquito.” O Rehab (retiro espiritual) é só parte do procedimento operacional padrão. Beijos Dedé

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  6. Sim, chega uma época em que você torce para não ser confrontado com determinadas oportunidades.

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  7. ABEL DE OLIVEIRA MAGALHAES2 de novembro de 2022 às 08:29

    Mesmo sendo dia de finados, lá está a crônica da semana.
    Pensei que odres era erro. Estaria no lugar de sogro. Ficaria sem sentido. Busquei o santo Google. Lá estava a explicação, inclusive a ilustração.
    Quero realçar a minha permanente admiração pelo cumprimento do dever, ainda que espontâneo.
    Detalhe: O texto estava lá já de madrugada, porque um leitor registrou o seu prazer às 04:300h.
    Tudo isto é digno de louvor. Parabéns!
    Bom dia . Grande abraço.

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  8. Ahhhhh, que delícia de crônica (no bom sentido, é claro, kkkk). A mente é mesmo uma cousa insana. Quando se vai deslindando a estória a mente vai deslizando por partes...da crônica (diga-se) e tudo vai ficando mais claro depois desse prazer indizível de ler essa bela montagem de textos a partir de uma simples notinha de internet. Valeuuuuuu!!!

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  9. D. Carmelita é que sabia das coisas!
    Gradim.

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  10. Excelente, Hayton. Passagens hilárias. E obrigado por iluminar a minha mente obtusa, pois quando deparei-me com a notícia nas redes há dias atrás confrontei-me com as mesmas dúvidas, afinal quem seriam os personagens e o que seria o tal retiro? Abraço, Aldo

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  11. Mundo virado de ponta-cabeça e muita modernidade. Difícil de acompanhar essa geração, cada dia uma loucura é tida como novo normal e, junto, dicionário ampliado....

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  12. Excelente crônica Hayton! Mais risos que sustos com o texto.

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  13. Hayton, eu não poderia perder a chance de provocar: a Wanessa é mesmo cria de Zezé de Camargo e Luciano? Pensei que fosse do Zezé e da Zilu. Ou será que a família já fazia “retiros tântricos” 40 anos atrás (sem trocadilho)?

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    1. Cria no sentido musical, Serginho. Zezé não deve ser dado (ou Dado?) aos vira-viras transcendentais da Terra de Santa Cruz. Ao que suponho, claro!

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  14. Cerca-lourenço temático dos mais competentes, meu caro escriba. Cuida, cuida!
    E eu que achava Rehab nome de banda de rock, coisa assim...

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  15. Genial direcionar os leitores à música dos Mamonas:"Pegaram na minha bunda e não comi ninguém." Felizmente os da minha geração não eram chegados a esses Retiros, pelo que saiba.

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  16. “Cautela e Canja de galinha não faz mal a ninguém” ... Melhor deixar quieto mesmo... kkkkkkkkkk

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  17. "Nem a PAU, Juvenal!" Creio que, depois desta crônica, tenha encontrado a explicação pra uma expressão utilizada num comercial de um presunto na tv.

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    1. Boa referência caro amigo Silas….cada bela crônica lida, é uma viagem tântrica nos recônditos pensamentos.

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  18. Gargalhamos aos montes com este escrito. Sagaz e, ao mesmo tempo, libidinoso. Com tantas passagens que aguçam os sentidos. Principalmente aqueles mais primários, que dizem respeito à satisfação dos desejos carnais. Com um toque de comédia portuguesa, embalado pelo Vira-vira. Só Hayton mesmo. Com sua pena sempre atenta aos detalhes mais escondidos e particulares. Uma delícia de ler.
    Roberto Rodrigues

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  19. Cássia Eller falou: O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou. Nem aqueles poucos que estão "mens sana"...

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  20. Primeiro texto que li. Virei fã. Muito bom!

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  21. Ri muito. Você não perdoou nem Adão e Eva no retiro, quero dizer, no paraíso! Marina.

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  22. Essa crônica sua me leva a reflexões que, aliás, venho sempre fazendo.
    Gostei muito do "modernidades socialmente aceitas".
    Realmente, hoje a coisa tá num liberou geral e eu, que consegui me livrar definitivamente de preconceitos, aceito-as com tranquilidade, viva a vida, cada um que seja feliz como melhor lhe aprouver.
    Só fico meio encucado, vez em quando, com uma imaginada situação - e se virar obrigatório???
    Vida que segue...

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  23. Outra excelente crônica amigo Hayton! não me acostumei ainda com a modernidade dos dias atuais.

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  24. Melhor uma crônica tântrica que o retiro. Afinal vamos pela segurança. Virá vira com virose é mais perigoso ainda.

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  25. Amigo Hayton.
    Tem coisas que é melhor deixar pra lá, para não poluir nossa mente. Será o fim ou virá coisas piores? Penso que neste terceiro milênio as transformações virão.
    Abraços

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  26. Caro Hayton, mais uma excelente crônica, dispensa comentários. Um abraço

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