Semana passada resgatei aqui breve conversa que tive, há 20 anos, com o jornalista Armando Nogueira, quando lhe ofereci, em vão, mote para que escrevesse acerca de “rostos do futebol”. Dei exemplos, citando os ex-jogadores Edmundo (“É a cara do sujeito atormentado, confuso, furioso, a ponto de explodir...”), Sávio (“Triste, depressivo, parece que vai desabar no choro a qualquer momento...”) e Dodô (“Vive rindo com as sobrancelhas o tempo todo...). Achei que seria relativamente simples para quem, como ele, conhecera figuras marcantes no universo do futebol, como Heleno de Freitas, Manga, Garrincha, Pelé e Marinho Chagas.
Alguns leitores e leitoras que me cotam bem acima de minhas próprias convicções me lançaram o desafio de desenvolver o assunto sugerido lá atrás ao mestre da crônica esportiva. Um deles, inclusive, em mensagem à parte, propôs que ampliasse o tema para “traços da personalidade de ídolos do esporte em geral, a partir da expressão fisionômica sob a pressão da disputa”.
De cara – sem trocadilho! –, lembrei-me do sorriso largo e pleno de Daiane dos Santos ao aterrissar de um perfeito duplo twist carpado. E do olhar glacial e oscilante de Mike Tyson, no canto do ringue, com as pálpebras apertadas, cubando sua presa antes do bote fatal. Lembrei-me também das orelhas de Michael Phelps, feito asas de um caça supersônico ajustando-se às correntes de vento na iminência do mergulho definitivo. E ainda do jeitão debochado de Usain Bolt, antes de partir como um míssil em direção à linha do horizonte.
Por preguiça de pensar ou sei lá o quê, contudo, atenho-me ao futebolzinho que vejo desde os anos 70, ao vivo ou pela tevê. E alerto que meus conhecimentos de psicologia igualam-se pelo rodapé com os saberes primários de certas figuras públicas que, sem o menor pudor, desconhecem o tamanho da poltrona em que sentadas e da encrenca histórica em que podem se meter.
Limito-me a uma abordagem meramente especulativa, daquelas de arquibancada no intervalo de uma partida ou de mesa de boteco onde quase tudo se sabe. Nenhum rigor científico. Tudo a ver apenas com o hábito de rabiscar bocas e caras, enquanto usava telefone fixo, antigamente, para ordenar os pensamentos.
Filósofos gregos importantes dedicaram-se ao estudo das aparências. Aristóteles e alguns de seus discípulos, por exemplo, chegaram a elaborar teorias sobre como as feições de alguém refletiam seu estado de espírito. “Cabelos macios são indícios de covardia, enquanto fios mais grossos são um sinal de coragem”, afirmavam. O atrevimento, segundo eles, podia ser lido numa pessoa com “olhos brilhantes, bem abertos e com pálpebras injetadas de sangue”. Já um nariz largo, como o focinho de uma vaca, era visto como indicativo de preguiça. Ideias próprias de sábios de uma época e de beócios de hoje (para ficarmos na mesma geografia).
Descobriu-se, por exemplo, que as pessoas com níveis mais altos de testosterona tenderiam a ter rostos mais largos, com bochechas maiores, e personalidade mais assertiva, até agressiva. A relação entre o formato do rosto e a dominância era algo bem aceito, tanto num macaco-prego – quanto mais larga a sua cara, mais chances ele teria de ocupar o topo na hierarquia do bando – como no ser humano.
Pois bem. Dos que vi jogar futebol, ao vivo ou pela tevê, impressionava-me o rosto fleumático, soberano, dominador de figuras cintilantes como: Ademir da Guia, Alex (ex-Cruzeiro e Palmeiras), Beckenbauer, Carlos Alberto Torres, Falcão, Figueroa, Pelé, Pirlo, Roberto Menezes (ex-CRB), Seedorf, Sócrates e Zidane.
De outro ângulo, apesar do indiscutível talento, notava o semblante frágil, conformado, avesso a protagonismo, de craques como: Bebeto, Dirceu Lopes, Iniesta, Jorge Mendonça, Kaká, Luizinho (ex-Atlético/MG), Messi, Modric, Sávio, Silas, Valdo e Zé Carlos (ex-Cruzeiro).
No vértice final de meu triângulo, retratos de uma loucura mal disfarçada em anjos tortos, leves ou furiosos, como: Dadá Maravilha, Diego Maradona, Edilson, Denner, Djalminha, Dunga, Éder, Edmundo, Marinho Chagas, Pepe (ex-Real Madrid), Serginho Chulapa e Vampeta.
De uns tempos para cá, com cirurgia plástica e outros procedimentos afins, tornou-se mais complicado, à distância, especular sobre o rosto humano. Além de alterar a história esculpida na face, as mexidas nos traços originais podem interferir na personalidade. Diz um amigo meu, cirurgião plástico, que “uma leve mudança no ângulo do nariz transmite arrogância ou brejeirice”. E que, com frequência, escuta coisas como: “agora, sim, tenho o meu verdadeiro nariz”.
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“Cabeças grotescas”, de L. da Vinci |
Vê-se agora nos estádios, apesar de vazios, um desfile de rostos desfigurados por retoques cosméticos, cortes e pinturas de cabelo e sobrancelhas, tatuagens no pescoço e piercings em orelhas, línguas e narizes – guardados a contragosto apenas durante as partidas –, num desfile de gosto duvidoso que atiça a disputa entre egos inchados e motiva torcedores a reverenciar algumas cabeças grotescas, tanto pela arte que praticam como pela forma de se pavonear. Às vezes, mais pela segunda do que pela primeira.
Nunca se disse a Bruno Henrique, Cristiano Ronaldo, Daniel Alves, D'Alessandro, Gabigol, Guerrero, Ibrahimovic, Neymar, Sérgio Ramos etc., que, de perto, os olhos sempre serão janelas abertas da alma. Que, de forma mais humilde e madura, podem expressar suas histórias de vida, alegrias, coragem, força, espiritualidade, independência, poder e riqueza. Hoje, eles já nem se imaginam noutro patamar em relação aos colegas de profissão. Têm certeza disso.
Anda difícil enxergar o que vai na cabeça e no coração de figuras dessa cepa. Quer dizer, na cabeça, nem tanto. Armando Nogueira deve rir de mim, talvez comentando com outro cronista genial como ele: “Este rapaz não leu o que você escreveu, meu querido anjo pornográfico, quando disse que só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu”.
O pior é que li.