– E aí, Nozinho, o motor tá bom mesmo?
– Vai-te lascar! Eu mexo com isso desde menino e lá vem você perguntar besteira?
– Calma! Perguntei por perguntar...
– Pois me pague, pegue o carro e vai-te embora daqui...
Nozinho era assim, um paraibano que mais parecia esculpido numa tora de pau-ferro, com acabamento à base de machado. A natureza caprichou no design e na acidez. Era conhecido lá em Itabaiana como “Biliro” (de bilro, peça de aço ou madeira usada para confecção de renda, graças à silhueta esguia e a cabeça volumosa).
Mecânico e motorista de mão cheia (sem largar o volante!), apesar de enxergar menos que morcego ao meio-dia, seu par de óculos com lentes esverdeadas era tão icônico que ganhou o apelido de “Sprite”, gozação com sua forma nada refrescante de ver o mundo. E mesmo sem saber ler nem escrever, detinha saberes que deixavam muitos doutores comendo poeira na estrada.
Do tipo que nunca levava desaforo nem pra oficina, talvez fosse sua forma de navegar nas águas turbulentas de uma sociedade que valoriza mais as letras do que a sabedoria de vida. Ou porque gostava de encrenca, se questionassem suas teses sobre inovações tecnológicas “desnecessárias” nos automóveis. “Pra que pé esquerdo se não tem mais pedal de embreagem? Não serve nem pra apagar cigarro ou matar barata!” – dizia dos veículos automáticos.
Me lembrei dele ontem enquanto lia sobre o Vision Pro da Apple, aqueles óculos de realidade virtual com preço pra lá de salgado, acima de R$ 17 mil. Apple que resolveu se fazer de desentendida e não quer chamar o brinquedinho de “metaverso”, talvez para não embarcar na mesma nave que o bilionário Zuckerberg e sua turma da Meta (empresa que atualmente controla as redes sociais), que até agora não decolou.
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Reprodução/Redes Sociais |
Se estivesse entre nós, Nozinho desdenharia desse “computador espacial revolucionário”, com a autoridade de quem, desde o começo dos anos 1970, já fazia mágica juntando peças do motor de um carro como quem brinca de Lego. Diria que esse negócio de realidade virtual não passa de conversa pra jumento cochilar ruminando na sombra.
O homem era tão brabo que, numa prova de habilitação para dirigir veículos de carga, ao invés de identificar as peças de três motores em caixas distintas (de fusca, chevette e caminhão), misturou tudo, desafiando a lógica do teste. “Só jegue não sabe fazer!” – esculachou. Em seguida, com a perícia de um relojoeiro, montou os motores e saiu do recinto, não sem antes oferecer à banca avaliadora, que o reprovara por ser analfabeto, conselho de especialista em chaves de fendas e de bocas: “Vão tudinho tomar bem no 'mei' da arruela!”
Acreditem, rola lentamente até hoje na Câmara dos Deputados, em Brasília, projeto de lei para alterar o Código de Trânsito Brasileiro, permitindo aos iletrados tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e, pelo menos, mudar o patamar de miséria.
Há coisa de 20 anos, num domingo, enquanto Nozinho bebia e contava seus casos no boteco, um de seus sobrinhos achou de recordar do que a irmã dele (sua mãe) fizera poucos meses antes: a saga de uma gata grávida e o destino cruel que lhe foi reservado.
Eu, calado no meu canto, prestava atenção ao que dizia o sobrinho, que nos comoveu a todos, entorpecidos por várias cervejas naquele começo de tarde.
– Não quero essa gata aqui de jeito nenhum! – teria decretado a dona da casa.
– Mamãe... É só enquanto ela melhora, engorda um tiquinho… Tava passando fome na rua.
– Nem venha com essa conversa mole! Suma daqui com ela, agora, ou deixe que eu mesma vou dar um jeito nisso!
Nozinho, que tinha a irmã como segunda mãe e, por isso mesmo, estava cada vez mais curioso, cobrou pressa no desfecho. Balançou a cabeça ao ouvir que a empregada doméstica fora encarregada de misturar cacos de vidro na comida da grávida, para que, contrariada com a hospitalidade, sumisse.
– E você, infeliz, deixou matar a bichinha? Por que não procurou outra pessoa pra tomar conta dela? – apelou o tio, contrafeito.
– Como, tio? Se demorasse, levaria uns cascudos, uns tapas… Só deu tempo de pedir a moça pra quebrar os cacos maiores em pedacinhos e torcer pra coitada escapar, fugir, sei lá…
Acontece que a gestante seguia firme, barrigão arredondando, à espera inocente do dia sublime.
– E aí… Escapou? – indagou o tio, com dó da gata, vendo o lado do sobrinho, mas também procurando entender sua irmã.
– Morrer não morreu, tio, mas apareceu lá em casa uma ninhada de filhotes, tudinho de óculos verdes!
Nozinho se levantou num pulo só e partiu com tudo pra cima do moleque, que escapuliu ligeiro feito um gato, morrendo de rir.
Se fosse hoje, era bem capaz de o gaiato dizer que os bichanos chegaram ao mundo cada qual com seu Vision Pro da Apple, prontos pro espetáculo das sete vidas. E o tio, com a delicadeza de um beliscão de alicate, mandaria o “'fidirapariga' tomar no 'mei' da arruela”. Mesmo com todo respeito que tinha pela irmã.