quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Embalos de um sábado à noite

Desde cedo dava para ver que o dia não acabaria bem após um desarranjo daqueles que acontecem de três em três anos, com chispas, faíscas e cólicas lancinantes, obrigando-me durante toda a manhã a não me afastar mais que 20 metros do banheiro. Aprendi a duríssima  pena que não se deve comer na rua com congestão nasal, resfriado. Que convém nunca esquecer de que antes da primeira garfada, olfato é sentido mais importante do que paladar. Qualquer animal sabe disso, menos os tidos como racionais.

 


À base de chá de camomila, soro caseiro, maçã e torradas sem fibras, fiz de tudo para me recuperar a tempo e não perder o casamento de uma velha amiga. De tardezinha, apesar das olheiras e da tontura resultante da dieta, lá estava eu belo e perfumado, de terno e gravata, sapatos engraxados e pronto para a noitada. Foi só chamar minha mulher, certificar-me de que estava de posse do kit “c”  (carteira, celular e chaves) e partir no rumo do Lago Sul.

Próximo ao local da cerimônia e dos cumprimentos aos noivos, embora fizesse aquele friozinho típico de julho no Planalto Central, já brotavam em minha testa algumas gotas de suor quando fui abordado numa blitz por um policial:

— Documentos, por favor...

— Boa noite... — respondi, ao repassar a papelada, seguro de que estaria no salão de festas em pouco tempo, com um banheiro limpinho, cheirando a lavanda ou eucalipto, à minha disposição. 

 

De nada desconfiei quando o policial que me abordou recorreu ao que parecia ser o líder da patrulha e começaram uma conversa cheia de gestos e olhares em minha direção. Aguardei o desenrolar da prosa ainda convicto de que os documentos estavam em ordem, embora uma parte importante de meu organismo, àquela altura, cobrasse celeridade no desfecho. Logo em seguida, os dois se aproximaram e o chefão foi direto ao ponto:

— O senhor não deveria ter feito isso... 

— Do que o senhor tá falando? — perguntei, já acionando o botão de culpa presumida que todos nós carregamos no subconsciente, mesmo sem motivo.

— O que significa este cheque aqui junto à CNH? 

 

Tive dificuldade em convencê-los de que, dois dias antes, para evitar que um colega de trabalho perdesse a chance de fechar a compra de um imóvel que negociava havia meses e que recebera ultimato para pagar a entrada, emprestara aquela quantia. Ele, inclusive, já pedira resgate de um investimento cuja liberação se daria em uma semana e, para não abrir mão dos rendimentos da aplicação financeira, solicitou-me antecipar o montante de que precisava, sob a garantia do cheque pré-datado, cruzado e nominal em meu favor. 

 

Prestes a ser injustamente acusado de crime de suborno — o que só agravaria o desarranjo contra o qual já se prenunciava o reinício de minha guerra visceral —, eu poderia, de molecagem, esclarecer aos policiais que uma "ajuda de custo" daquele tamanho só faria sentido se todos os estofamentos do carro, o porta-malas e o porta-luvas, estivessem abarrotados de cocaína e outras drogas alucinógenas como maconha, haxixe e ecstasy. Ou se escondessem armamentos pesados de uso privativo de traficantes e milicianos, com farta munição a granel. Afinal, além dos traços do arquiteto, até hoje tudo é possível sob o céu de Brasília. 

 

Poderia também ponderar o que se aprende em qualquer apostila básica de técnicas bancárias para concursos públicos: o cheque nominal, cruzado, só poderia virar dinheiro se fosse depositado numa conta bancária, em meu nome ou sob minha ordem. Portanto, seria pouco inteligente duvidar da quantidade de neurônios deles e pagar propina com cheque rastreável até por um velho bancário como eu, ali cada segundo mais apressado por conta de chispas, faíscas e cólicas lancinantes que reapareciam a todo vapor.

 

Com os embalos intestinais em franca evolução, lembrei-me de um conselho de um amigo meu, advogado em Alagoas, que certa vez foi abordado por um agente público que insistia em encontrar razão para lhe multar ou até mesmo reter o veículo, mas não conseguia. Ele só foi liberado ao dizer o que muitos querem ouvir quando se instala impasse nesse tipo de blitz

— Tá coberto de razão... Me desculpe! Em seu lugar, eu faria a mesma coisa. Com tanto bandido solto por aí, o que seria de nós sem profissionais como o senhor.

 

Optei, porém, por dizer a verdade: que não tinha, como de fato nunca tive, cofre onde pudesse guardar o cheque e preferi mantê-lo em lugar seguro e de fácil acesso (meu bolso), para não correr o risco de escondê-lo e não saber depois onde fora parar quando chegasse a data do depósito. 

 

O ventinho cada vez mais congelante da noite, contrastando com o suadouro que já me encharcava, deve ter soprado dúvidas sobre meu argumento, o que levou o chefão da blitz a perguntar se poderia telefonar ao emitente do cheque e averiguar a veracidade do que eu afirmara. Creio que minha resposta, de tão direta e honesta, acelerou o desfecho do caso:

— Por favor, faça isso, mas corra senão quem vai fazer algo urgente aqui sou eu... — disse-lhe, segurando a barriga, dando pista de que o mais comum dos apertos a que sujeito qualquer animal estava prestes a produzir seus efeitos líquidos em plena via pública.

 

Deu certo. Dispensado, fui-me embora e mal cheguei à toalete do salão de festas, fiz o que precisava e deveria ser feito. Lá dentro, aliviado, deu para ouvir a  marcha nupcial embalando o desfile ao altar de minha velha amiga, a quem mais adiante me expliquei por deixar para trás o melhor daquele 17 de julho de 2004: 

— Ninguém merece... — balançava a cabeça minha mulher, a caminho de casa, com pena de mim ou, o que é mais provável, a lamentar a perda dos embalos de um sábado à noite inesquecível. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Perdão, delegado!

Na primeira sexta-feira do ano, um Zé qualquer invadiu e furtou uma escola estadual no Morro Grande, zona norte da capital paulista. O furto só foi percebido na manhã de segunda-feira, quando os empregados chegaram ao local e ainda encontraram um bilhete, possivelmente escrito por ele.



Numa folha de caderno, com os deslizes gramaticais de quem não teve o ensino fundamental obrigatório e gratuito assegurado pela Constituição de seu País, ele fez singelo apelo: “Me desculpe mesmo, de coração, por fazer isso, não tive escolha, [foi] precisão [necessidade]”, diz trecho do recado, assinado por “desesperado”. 
E a mensagem prossegue, com o autor pedindo “misericórdia” e “perdão” ao “senhor Jesus”.


No boletim de ocorrência de furto e vandalismo, registrado no Distrito Policial, relata-se que uma porta foi arrombada e foram levados três televisores, um computador e uma panela de pressão. Enquanto apuravam extensão dos prejuízos, encontrou-se o bilhete com o pedido de desculpas ao lado de uma Bíblia. Além do furto, registrou-se ainda que todas as câmeras do sistema de monitoramento da escola foram quebradas.

 


Ao ler a notícia, pensei na hipótese do chamado furto famélico, praticado por quem, em estado de extrema penúria, é arrastado a contragosto pela mais elementar carência de todos os seres vivos: alimentar-se. Se configurado o estado de necessidade, tido como uma das causas capazes de excluir a ilicitude da conduta, não há, sequer, que se falar em crime. Tá lá no corpo do art. 24 estendido no Código Penal.

 

Pensei também na sentença curta e certeira do escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina: “a justiça é como uma serpente; só morde os pés descalços”. Há várias formas de se dizer isso, porém, para mim, ninguém o fez com tanto veneno e precisão. Na mosca! 

 

Quem é o delegado responsável pelo inquérito policial? Não sei. Certamente outro brasileiro – com nome, sobrenome e um pouco mais de sorte do que o autor do bilhete  que tentará por todos os modos descobrir a autoria do furto e como foi praticado. Tomará depoimentos, reunirá provas e fará seu relatório ao órgão encarregado de promover ou não a denúncia.

  

Aqui entre nós  e o resto do universo , o que representam três televisores, um computador e uma panela de pressão em terra de mensalões, sanguessugas, petrolões e rachadinhas? Que país é esse cujos homens públicos se aproveitam do pânico instalado por um monstro que já engoliu sem palitar os dentes mais de 211 mil vidas e, à luz do dia, roubam com sofreguidão em obras e compras emergenciais de bens e serviços?

 

O abominável vírus das trevas, que nos assombra desde o começo do ano passado, além de desmascarar a insensatez daqueles que subestimaram o seu potencial de letalidade, acordou aos berros um ancestral com múltiplas cepas variantes (admitindo-se que dormia, o que é controverso, reconheço) que se reproduz por aqui desde a descoberta e o sucesso do pau-brasil no mercado consumidor europeu: o vírus da corrupção. 

 

E em meio à avalanche de brasileiros infectados e mortos nos dias de hoje, escorrem pelo esgoto bilhões de reais em contratos investigados pelas polícias Federal e Civil e pelo Ministério Público, com indícios peludos de apropriação indébita, desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, prevaricação e outras práticas já corriqueiras.

 

Pois bem. Volto ao Zé qualquer – por certo, um dos 14 milhões de brasileiros na fila em busca de trabalho – que será identificado e chamado a depor sobre furto e vandalismo, ainda que, sem qualquer hesitação, tenha, na mesma hora, demonstrado arrependimento ao pedir desculpas, sobretudo às crianças, imagino, que ficariam sem os favores e os sabores da panela de pressão. Os aparelhos de televisão e o computador já não têm tanta serventia nestes tempos sombrios sem atividades em sala de aula. 

 

A pronta decisão do Zé qualquer de se desculpar, pressionado apenas pela própria consciência, deve ser filha do propósito de não reincidir. Talvez isso, quem sabe, desperte no delegado a sede por um copo onde se misturem, ainda que em doses mínimas, cautela, compaixão, coragem, intuição e senso de justiça. Sem gelo, claro. 

 

Se o delegado levar em conta as sutilezas e o contexto em que os vacilos foram cometidos, reconhecerá que não há, sequer, que se falar em crime. Dará o assunto por encerrado e lavará as mãos com álcool em gel. No máximo, aconselhará o Zé qualquer a não se envolver com certas figuras públicas que circulam por aí livres e leves – afinal, pouco pesam as tornozeleiras que serpenteiam alguns pés muito bem calçados. 

 

E se aceitar um conselho do enxerido aqui, que mete a colher numa caçarola cujo desfecho parecia fadado a repetir-se, o delegado deveria pedir desculpas por amolar mais um sobrevivente – não sem arranhões!  da caridade de uma minoria que o detesta. 

 

Arrepender-se e pedir perdão, delegado, não tem nada a ver com humilhar-se. É gesto de gente grande. Gente que não quer só comida, quer saída para qualquer parte, quer prazer para aliviar a dor. Quem sabe possa até inspirá-lo a doar à escola uma nova panela de pressão


Aí basta torcer para que a Máfia da Merenda, velha conhecida na região, não meta a sua colher imunda no caso, furte a panela nova e o que resta de esperança nos que têm fome desde criança, inclusive de justiça.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Capiba que cupim não rói

Na virada do ano novo, meu amigo Francicarlos Diniz, jornalista e escritor, postou nas redes sociais:

 

“Em busca do seu ninho 

 

Há 23 anos, morria o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa, o eterno "Capiba".

 

O maestro pernambucano gravou mais de 200 composições, entre boleros e inesquecíveis frevos-canção que tantos carnavais animaram. 

 

Repórter da revista "Fenabb Notícias", escrevi o texto... em homenagem a Capiba, publicado na edição de fevereiro de 1998. 

 

Os discos de Capiba sempre fizeram parte da antiga radiola da minha casa. Suas canções ainda hoje ecoam na memória dos meus tempos de criança vendo minha saudosa mãe, animadíssima, cantando e dançando músicas como "Oh, bela”. 

 

"Bela é ver o passarinho / Oh! Bela / Indo em busca do seu ninho / Oh! Bela / Todo mundo se amando / Com amor e com carinho / Uns sorrindo, outros chorando de amor...”. “

 



Com o encolhimento de três bancos tradicionais que operavam em Pernambuco – Bandepe, Banorte e Mercantil – nos anos 1996/97, o Banco do Brasil buscava ocupar o vácuo. Se dependesse de alguns gerentes de sua rede de agências, eu estaria até agora às voltas com almoços e jantares com potenciais clientes, tentando convencê-los a migrarem seus negócios para o bancão.

 

Ocorre que nunca fui de almoços e jantares fora de casa, apesar das necessidades de relacionamento público-social dos cargos que ocupei. Não queria encurtar ainda mais o convívio com a mulher e os filhos. Pensava, por isso mesmo, em como fazer o que deveria ser feito, mas de forma objetiva, juntando mais interessados numa mesma oportunidade. 

 

Grandes instrumentistas como Altamiro Carrilho, André Geraissati, Armandinho, Dominguinhos, Hermeto Paschoal, Paulinho Nogueira, Nivaldo Ornellas, Paulo Moura, Raphael Rabello, Wagner Tiso etc., haviam participado, em 1995, do Projeto Tom Brasil/BB Musical, ação de marketing cultural patrocinada que resultara na distribuição a clientes de caixas-brindes (coletânea de 11 CDs, gravados ao vivo no Sesc Pompeiacom obras primas daquele timaço de craques da MPB instrumental

 

Como o prédio mais tradicional do bancão (ao lado da ponte Buarque de Macedo, sobre o rio Capibaribe, no lendário bairro do Recife Antigo) possuía na cobertura auditório com pé-direito alto, poltronas confortáveis, palco, iluminação e acústica excepcionais, nossa equipe desenhou uma espécie de pocket show, seguido de bebidas e canapés, onde traríamos a cada evento um daqueles instrumentistas. Azeitaríamos, assim, sempre na última sexta-feira de cada mês, o entrosamento com pelo menos 60 convidados especiais no mesmo momento de descontração.

 

Deu certo durante algum tempo, como quase tudo na vida. Um dia, Capiba aceitou nosso convite e, meia hora antes da abertura, lá estava ele sentado na primeira fila do auditório, com dona Zezita, musa com quem era casado havia quase quatro décadas. Conversávamos à espera dos demais convidados. A atração da tarde-noite seria Armandinho, instrumentista, cantor e compositor baiano filho de Osmar Macêdo (da lendária dupla Dodô e Osmar), idealizador do trio elétrico. 

 

Às seis, como anfitrião, subi ao palco para agradecer a presença de todos, esclarecer o objetivo do encontro e detalhar a programação. Naquele instante, achei que cairia bem reconhecer publicamente que nenhum de nós, funcionários da empresa, traduzia melhor o amor à MPB instrumental e o respeito aos músicos deste país do que a figura mítica que ali se encontrava na primeira fila do auditório, colega aposentado havia alguns anos.

 

De repente, fora do script, aparece no palco Armandinho com uma guitarra nas mãos e executa um solo maravilhoso de “Oh! Bela!”, o frevo-canção de autoria de Capiba mencionado por meu amigo Francicarlos Diniz. Em seguida, sob aplausos, Armadinho emenda com “Vassourinhas”, composto por Matias da Rocha e Joana Batista em 1909, conhecido no Brasil inteiro como o mais perfeito frevo de ruas e clubes, autêntico hino do carnaval pernambucano. 


Timidamente, Capiba apenas sorria e acenava. Parecia pressentir que, no último dia de 1997, a semente voltaria à terra, fechando o ciclo. O passarinho voltaria ao ninho da eternidade.

 

Recordo que em nossa conversa antes do pocket show, eu quis saber qual teria sido a obra que mais lhe dera prazer compor. Tinha quase certeza de que ele me falaria de “Maria Betânia”, imortalizada na voz de Nélson Gonçalves, em 1943:

 

“Maria Betânia

Tu és para mim

A senhora do engenho.

Em sonho te vejo

Maria Betânia

És tudo que eu tenho...”

 

Não era. Como todo pai, disse que canções são como filhas e não havia predileção de sua parte, mas lembrava com carinho da origem da marcha de blocos “Madeira que cupim não rói”, muito cantada nos dias de Carnaval do Recife e de Olinda.

 

“Madeira do Rosarinho

Venha à cidade sua fama mostrar

E traz, com o seu pessoal, seu estandarte tão original.

Não vem pra fazer barulho.

Vem só dizer,

E com satisfação,

Queiram ou não queiram os juízes

O nosso bloco é de fato campeão.

E se aqui estamos cantando esta canção,

Viemos defender a nossa tradição.

E dizer bem alto

Que a injustiça dói.

Nós somos madeira de lei que cupim não rói.”

 

Se já gostava dessa marchinha carnavalesca simples por conta daquela nossa breve conversa, passei a admirá-la ainda mais quando a ouvi pela tevê, há sete anos, no velório de Ariano Suassuna, numa homenagem ao escritor, dramaturgo e professor, que costumava usá-la em suas aulas-espetáculo como símbolo da resistência popular contra os maus tratos a suas raízes culturais.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Mamulengos

Na última cena do documentário “Vinicius” (2005), de Miguel Faria Jr., brilhante reconstituição da vida e da trajetória artística do poeta, compositor e diplomata Vinicius de Moraes, seu amigo Chico Buarque gargalha alto ao lembrar de comentário feito pelo Poetinha sobre como gostaria de reencarnar: “Do mesmo jeito que sou, levando a mesma vida, mas com um pinto um pouco maior!”. 

Gaiatice pura numa conversa pra lá de etílica entre gênios. Ambos, certamente, sabiam que o tamanho padrão do pinto (quando pronto para ciscar, dizem os especialistas no tema, varia de 10 a 16 cm) nunca foi nem será decisivo para a apoteose dos prazeres. “Todo o corpo é um órgão sexual, com exceção talvez das clavículas”, garante Verissimo, outro gênio.

 

Pois bem. Notícia recente sobre as sequelas a longo prazo da covid-19, veiculada no MedRXiv (site que distribui versões preliminares de artigos sobre ciências da saúde), diz que a doença pode diminuir o tamanho do pênis. O trabalho investigou as consequências que o vírus pode deixar no corpo das pessoas e foi conduzido com mais de 3 mil pacientes de 56 países. Além de 3% dos homens terem relatado diminuição no tamanho de seu órgão genital, 15% deles relataram algum tipo de disfunção sexual e 11% discorreram sobre dor nos testículos.  


Nestes tempos viróticos em que praticamente perdemos o direito de nos sentarmos à mesa de um bar, sem risco de contágio, para discutir possíveis soluções para os problemas da cidade, do país ou das mudanças climáticas que aceleram a extinção de todas as espécies vivas, resolvi ouvir a opinião de alguns amigos sobre o assunto, via WhatsApp

 

O primeiro deles mostrou-se preocupado ao dizer que “Não sabia que a doença pode causar invisibilidade”. Outro, não menos moleque, fingiu espanto: “Ah, não! Era só o que me faltava!”. O terceiro, delirou legal: “Pois é... ficar reduzido a 20 cm vai ser de lascar...” O quarto, foi mais prospectivo: “Já tô imunizado, então... É o fim da picada!”. Desisti. Ninguém leva a sério mesmo a pesquisa científica por aqui, a começar pelos caciques e pajés encastelados nos poderes constituídos na Ilha de Vera Cruz, terra abençoada e bonita por natureza.

 

Pilhéria à parte, para mim a notícia pode ser uma lamparina a clarear a escuridão em que mergulhada parte dos habitantes da Ilha, que diz não pretender vacinar-se. Egoísta, para não dizer outra coisa, essa turma sabe que não haverá imunidade coletiva ao vírus até que a porcentagem de vacinados atinja no mínimo 70% dos indivíduos. Mas precisamos ser realistas: é querer demais exigir que um exército de mamulengos veja o mundo de uma forma que sua ignorância não permite compreender.



Mamulengo, para quem não recorda, é uma espécie de boneco típico da Ilha de Vera Cruz. Embora de origem controversa, dizem que o nome deriva de mão molenga ou maleável, ideal para criar movimentos no teatro de fantoches. Um ou dois manipuladores, operando por trás das cortinas ou como ventríloquos, dão voz e trejeitos aos fantoches. 

 

Outro candeeiro que poderia iluminar a Ilha, quem sabe, seria aparecer uma nova notícia sobre as sequelas a longo prazo da covid-19, dando conta de que a doença acarreta disfunção erétil irreversível. Isso, por certo, levaria mais alguns membros da trupe de mamulengos a reverem a posição de não se imunizarem por sugestão de "sábios" de crenças político-religiosas que difamam cientistas, professores e médicos, num espetáculo inescrupuloso de horrores que se arrasta há quase um ano. 

 

Sei que uma minoria de habitantes da Ilha de Vera Cruz, como acontece noutras terras consideradas desenvolvidas, é autoritária, cínica, desonesta, elitista, fofoqueira, interesseira, machista, moralista, racista, safada ou violenta. Uns, inclusive, empilham vários desses predicados, se orgulham disso e se sentem muito bem com o desenrolar da barbárie. E lutarão com unhas, chifres, mentiras e dentes, contra os eixos encarnados do mal que, juram de pés juntos, querem dominar o mundo e degustar com orégano e sal o fígado de suas criancinhas indefesas e apavoradas.

 

Sei também que essas pessoas têm conhecimento de que, hoje, quase 50 países já imunizam suas populações contra o novo coronavírus, inclusive porque novas cepas já se espalham com fome e sede de anteontem. Mas querem desde já marcar posição numa guerra política agendada para 2022, como se houvesse amanhã sem uma ampla campanha de vacinação que acelere a retomada da economia, da geração de emprego e renda, das aulas nas escolas e universidades, numa aldeia desigual com dezenas de milhões de almas confusas feito baratas em dia de faxina. De novo, é querer demais que um exército de mamulengos veja o mundo de uma forma que sua ignorância não permite alcançar.

 

Se a lamparina ou o candeeiro a que me refiro não iluminar a escuridão em que tateiam todos, restará a alguns (os de sempre, claro!) apagar a luz, bater o portão e cruzar a fronteira. Afinal, como diria o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, será "o fim do mundo, a ponta da praia, o fim do asfalto civilizatório, o atropelo da razão".

 

Tá chegando a hora de dar o braço, ou não, à seringa. A Ilha de Vera Cruz, abençoada e bonita por natureza, pode acabar repleta de mamulengos de verde-amarelo, flácidos e mal dotados. E assumir de vez sua inegável, mas hipocritamente desmentida, incompetência para lidar com assuntos cruciais como saúde pública para, quem sabe, propor sua anexação a algum país rico como a Argentina ou o Chile.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Juntando os cacos

Há menos de três semanas ela e eu traçávamos planos modestos para a noite de Natal de um ano pra lá de medonho, ano que não acabará tão cedo em nossas cabeças torturadas pela agonia de cada dia.

Tudo dentro do que planejamos, comida apenas para um casal resignadamente confinado há nove meses: frango com recheio de quatro queijos, arroz de lentilhas, cuscuz marroquino e batatas ao murro. Ela e eu, pela primeira vez em quase 49 anos de mútua tolerância, sem pais, irmãos, filhos, netos nem amigos por perto, diante de nossa ceia de Natal, tocados pela esperança de que duas picadas em cada um de nós possam redesenhar este cenário com cores, sons e cheiros diferentes no ano que vem. 

Nem a pressa ditada pela fome de quem almoçara ao meio-dia me impediu de, antes da primeira colherada, esquentar os pratos no forno por volta de nove da noite. Enquanto isso, conversávamos com filhos e netos debruçados nas janelinhas do aplicativo de encontros virtuais dos dias de hoje, satisfazendo, no que possível (imagem e som), o desejo de revê-los em carne, osso e pele.

 


O celular me alertou de que, rapidamente, transcorreram quinze minutos. Entretido na prosa, demorei-me, se muito, mais dois ou três minutos, certo de que nada de relevante aconteceria em tão pouco tempo. Esqueci de que havia preaquecido o forno, a 200 graus centígrados. 

 

De luvas, ao retirar os pirexes, o primeiro deles explodiu em minhas mãos, espalhando frango, molho, queijo derretido e estilhaços de vidro de tudo que é tamanho sobre o que havia nos arredores: outros pratos, fogão, pia, chão da cozinha, da sala de jantar, além de minhas canelas cada vez mais finas e lisas.

 


Não sou bombeiro nem especialista em resistência de materiais, mas creio que a causa provável do estouro tenha sido o acúmulo de gordura fervendo num dos lados do recipiente, que estava desequilibrado na única prateleira do forno. A roldana da segunda prateleira quebrou-se há três ou quatro meses e resolvi não consertá-la, por enquanto, para evitar terceiros na bolha asséptica em que se transformou o apartamento na quarentena. Quando chacoalhei e quis distribuir o molho no refratário como um todo, devo ter provocado um choque térmico. 

Na hora, me veio à cabeça tentar dar um jeito na situação e aproveitar o que fosse possível de nossa tão cheirosa e esperada ceia de Natal. A julgar pela aparência crocante do frango borbulhando no chão da cozinha, eu não via a menor chance de ali existir ativo o já nem tão novo coronavírus. Logo, quem sabe fingindo que nada ocorrera...

 

Mas existiam cacos de vidro por todos os cantos no raio de dez metros do epicentro da explosão, inclusive em meus pés onde brotavam gotas de sangue. A primeira providência de minha mulher foi passar água e sabão nos ferimentos, seguidos de algodão e desinfetante. As luvas que eu usava certamente me protegeram de ter que ir a um hospital para suturar algum corte mais profundo, com todos os riscos de contágio que nos assombram nestes tempos traiçoeiros e sombrios.

 

Ela e eu, pela primeira vez em quase 49 anos de mútua tolerância, sem pais, irmãos, filhos, netos nem amigos por perto, tivemos que nos contentar com as sobras requentadas do almoço, com o nada luxuoso reforço de algumas fatias de pão com manteiga na chapa. Era o que tínhamos para o jantar, isso duas horas após intensa atividade braçal-natalina à base de vassoura, pá, aspirador de pó, água sanitária, desengordurante, pano, rodo e alguma paciência que ainda nos resta. 

 

Logo, matávamos o que nos estrangulava aos poucos – a fome! –, quando pensei: quantas pessoas dariam um dedo (mindinho, vá lá que seja!) para comer aquilo que jogamos no lixo, independentemente do risco de ingerir estilhaços de vidro ou de contaminar-se com a sujeira do chão? Mas como sair e procurar alguém se lá fora uma besta-fera invisível e cruel ainda nos espreita e obriga a ficar em casa? Daria para argumentar com a desgraçada que era Natal ou teria que entornar o caldo de vez, partir para a briga e ver em duas semanas o resultado disso? O medo de nocaute no primeiro assalto me venceu.

 

Voei mais alto em minhas elucubrações e me perguntei: quantas pessoas dariam um rim para ter ao lado a sua cara-metade que essa ventania que varre o mundo carregou sem piedade para bem longe daqui, sem direito nem mesmo a merecidos adeuses? Muitas, imagino, ainda que essas pessoas tivessem que passar pelo mesmo sufoco que passamos neste Natal, ela e eu, juntando cacos de vidro por todos os cantos, agora no raio de vinte metros do epicentro da explosão, numa luta que parece não ter fim. 

 

Vidas e vidros que seguem. “Vai que dá certo ano que vem”, diz um velho conhecido meu que, toda noite, me encara no espelho e me cobra coragem e fé para juntar os cacos e seguir adiante no dia seguinte.

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Acerto de contas no Natal

Quando comecei a me dar conta dos pecados do mundo – no catecismo preparatório para a primeira eucaristia, em Patos (PB) –, logo percebi a facilidade com que se profanava certo mandamento bíblico: “Não cobice a casa de outro homem; não cobice a sua mulher, os seus escravos, o seu gado, o seu jumento ou qualquer outra coisa que seja dele”.



Não havia escravos, gado ou jumento em minha casa 
– havia, isto sim, uma escadinha de crianças! 
, mas via que meu pai despertava um misto de curiosidade e inveja. Franzino, compenetrado a maior parte do tempo, de riso difícil e usando lentes grossas que destoavam de seu rosto miúdo, ele não era exatamente um Adonis ou Apolo, deuses da beleza na mitologia grega. Porém, quando passeava pelas calçadas de braços dados com minha mãe, bonita, risonha e mais alta que ele, atiçava a cobiça desmedida de alguns profanos. Ou de muitos.



Em 1967, eu tinha entre oito e nove anos quando voltava da bodega com uma encomenda de minha mãe e passava em frente à casa de um rapazote alto, magro, cara cheia de espinhas, sobrinho do prefeito da cidade, e dele ouvi: “lá vai o filho do bicho!”. 

O pai do provocador, por sinal, mulherengo, pé-de-cana, que estufava os peitos ao ser chamado de “Bala”, trabalhava no mesmo local que meu pai, embora não fossem próximos. No calor da ofensa, tentei revidar com um chute nos raios do pneu da bicicleta de meu agressor, mas o cascudo que levei lateja até hoje num ponto equidistante entre as minhas orelhas.

 

Quem virou uma onça ao me ver chegar chorando foi minha irmã. Tomou as dores e pegou o rumo da casa do covarde. Ele assoviava na calçada como se nada tivesse acontecido quando levou uma pedrada nas costas. E enquanto o infeliz recobrava o equilíbrio após o susto provocado pelo ataque, ela já voltava de alma leve por vingar o irmão agredido. 

 

Pouco adiantou. O assédio duraria meses, pois quase toda semana minha mãe me mandava na bodega para comprar algumas coisas e, necessariamente, eu teria que passar pela porta do marginal. Sendo ele bem maior e mais forte que eu, o achincalhe era inevitável, às vezes morrendo de rir com uma récua de comparsas: “lá vai o filho do bicho!” 

 

Nunca contei a meu pai porque tinha certeza de que ele nada faria. Era de índole pacífica, avesso a conflitos de toda ordem. Eu ainda correria o risco de ser acusado de criar confusão no meio da rua e pagar caro por isso. Na época, pais e filhos viviam próximos, mas em planos paralelos, distintos. Ainda bem que se aproximava a data em que deixaríamos de vez a Paraíba para morar em Alagoas. 

 

O tempo passava e, antes da mudança, ganharia corpo em minha cabeça calejada de croques um acerto de contas sem chance de represália. Vira o desgraçado com os de sua laia numa aposta (espécie de disputa de pênaltis) na calçada. Um deles chutava uma bola três vezes de certa distância enquanto o outro buscava defendê-la; em seguida, trocavam de posição. No final da disputa, o vencedor recebia do perdedor um cruzeiro novo ou coisa que o valha. Dá para imaginar quem saiu de bolso cheio?

 

Pouco antes do feriadão em que partiríamos (Natal de 1967), costurei no capricho, com pedras e areia dentro, uma bola de plástico, velha e furada, e me sentei no meio-fio à espera do momento em que o delinquente apareceria. Quando ele deu as caras, a bola já estava a alguns metros de onde me posicionei como se fosse goleiro e o cutuquei: “ganha cinco se fizer o gol!”. Só vi com o rabo de olho o chutão e o barulho da queda da criatura, estatelando-se na calçada. Enquanto isso, voei para dentro de casa – era corajoso, mas nem tanto! , pois não pretendia criar confusão na rua e, claro, desapontar meu pai. Saí apenas no sábado, bem cedinho, olhando de um lado e de outro, direto para a Rural Willys em que minha família pegaria a estrada.

 

Voltei a Patos (PB) quase 35 anos depois, próximo do São João de 2002. Revi o colégio onde aprendi a ler, escrever, rezar e pecar, na mesma rua onde morei por mais de cinco anos, mas sumiram todos os conhecidos de infância. Soube de alguns que se envolveram em arruaças com drogas e tiveram fim prematuro e melancólico. Do meu carrasco, porém, nada me foi dito, nem procurei saber. 


Sabia que, às vésperas daquele inesquecível Natal há mais de meio século, profanara outro mandamento bíblico quando executei minha gloriosa despedida. Se comparada ao bullying, porém, nada mais que um pecadilho venial. Tanto que recordo de quase tudo com insuspeito prazer, exceto de algo importante: se o valentão conseguiu marcar o gol. Se não, estamos quites. Se fez, escapuli sem pagar a aposta. 


O acerto de contas, se não prescreveu, estaria em aberto. Agora, só no Juízo Final. 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Desonestos

Há oito anos viralizou nas redes sociais um vídeo em que o atleta espanhol Ivan Fernandez abriu mão de vencer a prova de cross country de Burlada, em Navarra, mas até hoje é enaltecido por sua honestidade durante o evento. Abel Mutai, atleta queniano, que tinha tudo para ganhar a corrida, parou no lugar errado, achando que alcançara a linha de chegada. Ivan Fernandez, que vinha em segundo lugar, podia ultrapassá-lo e conquistar a prova, mas optou por alertá-lo sobre o vacilo e o incentivou a confirmar a sua vitória. E algo que deveria ser padrão no ser humano acabaria virando notícia.


No começo deste viral e inesquecível 2020, circulou nas redes sociais outro vídeo contendo novo gesto digno de nota, por coincidência envolvendo outro esportista espanhol. Aconteceu durante uma partida de futsal em que o jogador Francisco Solano, do FS Cartagena, ao ver o seu adversário sofrer uma lesão importante numa disputa de bola com ele, optou por não marcar o gol quando já estava diante do goleiro. Chutou a bola para fora da quadra e a vida seguiu adiante. 

 

Nos dois casos, pela rapidez com que escolheram o que fazer diante das circunstâncias, não me pareceu que assim reagiram porque lhes seria mais vantajoso perder do que ganhar com a repercussão do gesto. Ainda que, intimamente, possa ter havido alguma dúvida nesse sentido. Nunca se sabe. 

 

Existem outros vídeos em que atletas internacionais colocam o respeito ao próximo acima da vontade de vencer, algo raro por aqui. Mas já vi muitos lances fora do Brasil em que também se pecou pela falta de ética, como o gol La mano de Dios marcado por Maradona contra a Inglaterra na Copa 86 e a cotovelada de Pelé no rosto do zagueiro uruguaio na Copa 70. São fraudes enaltecidas até hoje por muitos argentinos e brasileiros, inclusive da elite intelectual dos dois países, pela “genialidade” dos protagonistas. Também já vi atletas alemães, franceses, turcos, ingleses, italianos e paraguaios simularem pênaltis, marcarem gols ilegais, cuspirem nos adversários e otras cositas mas.  

 

Sábado passado, no estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, Yuri Alberto foi destaque na vitória do Internacional por 2 a 1 sobre o Botafogo pelo Campeonato Brasileiro. O atacante marcou o gol da vitória aos 24 minutos da etapa final, gerando grande polêmica. Aproveitou-se de um suposto vacilo (gesto no piloto automático) do lateral-direito adversário para interceptar a bola e tocá-la na saída do goleiro botafoguense, desempatando a partida. 

 

De costas, o árbitro não viu o lance e recorreu ao assistente de vídeo para validar o gol. Para os botafoguenses, a intenção de seu jogador era entregar a bola ao goleiro para que cobrasse a falta. É natural o atleta de futebol fazer isso com os pés como fazem com as mãos os de basquete e vôlei. Tanto que, se reiniciasse o jogo com um chute direto ao gol no Internacional, a cobrança seria nula porque executada fora do local da infração. Yuri Alberto, autor do gol, resumiu: “A partir do momento que ele parou a bola e tocou, o jogo tá valendo... Então, eu finalizei e acabei marcando... Para só depois ver o que a arbitragem iria marcar”. Pra fechar, só faltou uma genuflexão dando graças aos céus pela esperteza.

 

O tal jeitinho brasileiro já foi objeto de toda sorte de estudos psicológicos e sociológicos. Desenvolveu-se nesta terrinha abençoada e bonita por natureza um jeito meio estúpido de ser e de resolver problemas com engenho, safadeza e arte. Dizem que isso seria herança dos períodos de exploração iniciados com os europeus, quando as relações patriarcais substituíram o “ser” pelo “ter”, impondo a astúcia e a embromação para conseguir poder e fortuna.  

Com a malandragem entranhada da orelha direita ao dedão do pé esquerdo, cruzando o coração em fatos e omissões, quase todos querem levar vantagem em tudo. Transigem com coisas sérias como sonegar impostos, furar filas (do banco ao aeroporto, passando pela do transplante de órgãos, até a da vacina que está em formação), burlar sinais de trânsito, jogar lixo nas ruas e estradas, ofender minorias, maltratar animais, destruir bens públicos, seguros de que não dará em nada. Ou, se muito, acabará em pizza e Coca-Cola. Diet, para não engordar.

Claro que a sem-vergonhice existe no mundo inteiro! Ainda estão fresquinhos os escândalos históricos envolvendo multinacionais felpudas como Arthur Andersen, Facebook, Lehman Brothers, Nissan, Volkswagen etc.; as mentiras descaradas que Trump com sua halitose espalhou durante o seu mandato, inclusive para justificar a derrota nas últimas eleições norte-americanas, os escândalos que sacudiram o governo do Japão no final do ano passado, entre outros. Na outra ponta, também continuam vivinhas algumas historietas tropicais de garis, faxineiros de banheiros públicos e arrumadoras de quartos de hotéis que encontraram sacolas de dinheiro e devolveram aos donos.

Ao ler Câncer, eu? – Memórias alegres de um medo profundo, Editora Fontenele, obra brilhante de autoria de Sérgio Riede, me chamou à atenção este pequeno trecho por ele transcrito, do escritor russo Dostoievski: “Nas lembranças de cada homem há coisas que ele não revelará para todos, mas apenas para seus amigos. Há outras coisas que ele não revelará mesmo para seus amigos, mas apenas para si próprio, e ainda com a promessa de manter segredo. Finalmente, há algumas coisas que um homem teme revelar até para si mesmo. E qualquer homem honesto acumula um número bem considerável de tais coisas. Quer dizer, quanto mais respeitável é um homem, mais dessas coisas ele tem.”

Afinal, quem de nós sempre fez a coisa certa mesmo que ninguém estivesse vendo (ou filmando)? Será que somos diferentes e não fazemos parte da nação do jeitinho? A autocrítica, individual e coletiva, é ponto de partida para estar bem colocado na fita de chegada no novo normal que queremos. Quem de nós nunca foi desonesto que me atire pedras. Sem máscara.  

O peso do sim e o doce da culpa

Ilustração: Uilson Morais (Umor) Durante anos, os ovos carregaram o rótulo de vilões das artérias. Um só — dos grandes, de gema graúda — vin...