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Vidas reinventadas

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O que nos diferencia de outras criaturas do reino animal é a capacidade de lidar de forma criativa com os problemas do dia a dia. A eterna insatisfação com o que temos em mãos nos leva a descobrir novas ferramentas, novos materiais e objetos, que reinventam a todo instante o jeito como vivemos. Para o bem e para o mal, claro. Foi assim que apareceram alguns inventos que mudaram bastante a vida do ser humano na face da Terra: roda, vidro, papel, eletricidade, fotografia, lâmpada, plástico etc. Mas poucos foram tão importantes quanto o que junta algumas dessas descobertas e inventa o cinema. Importante porque o homem não evoluiu apenas provendo suas necessidades materiais. Cultivou também desde as cavernas o hábito de ouvir e contar histórias, inclusive através de pinturas. Vem daí o gosto por ler e escrever textos, ver filmes e até mesmo disseminar " fake news" nas redes sociais. Há gosto pra tudo. Não sou cinéfilo. Por preguiça, reconheço, não cheguei

O dia em que o mundo acabou

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Tudo aquilo que o ser humano ignora não existe para ele. Por isso, o universo de cada um se resume ao tamanho de seu conhecimento, dizia Einstein. Luiz, 4 anos, e sua irmã Eudócia, 8 anos  – minha mãe, tempos depois –, tomavam banho no Rio Paraíba, próximo à casa de taipa e de chão batido onde moravam no Sítio Jacaré, zona rural de Pilar(PB), quando Nina, a irmã mais velha deles, chegou aos gritos:  – saiam daqui, vão embora pra casa que o mundo vai acabar agora! De repente, o dia começou a escurecer, o calor diminuiu, os pássaros silenciaram, as galinhas buscaram os poleiros e duas crianças em pânico correram assustadas com o que viam. Luiz se cansou a poucos metros de casa e pediu ajuda à irmã, que o acolheu nos braços. Mas desfaleceu antes que Eudócia pudesse deitá-lo na primeira rede que encontrou.  – José, corre aqui que Luiz desmaiou! – gritou Carmelita para o marido ao ver a filha, de olhos arregalados, tentando reanimar o irmão. José, que ordenhava no

Millôr tinha razão

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O impagável Millôr Fernandes (1923 – 2012) dizia que “a única diferença entre a loucura e a saúde mental é que a primeira é muito mais comum”. Seria loucura minha duvidar de sentença tão lúcida. Isso só aumenta a certeza de que está em minhas mãos resolver um pequeno problema que me aflige desde moleque. Sei que se trata de compulsão mais difícil de superar do que o tabagismo. Eu, por exemplo, já não fumo desde abril de 1990. Se bem que até agora quando preparo meu cuscuz com ovos mexidos e café preto, bate saudade dos últimos tragos numa rede no alpendre da casa em que morava em Porto Calvo, Norte alagoano. O tal distúrbio, osso duro de roer, começa na infância e metade das pessoas em idade escolar vive às voltas com ele. Comigo foi exatamente assim. Surgiu entre dois e três anos de idade lá onde nasci, em Itabaiana, Agreste paraibano, terra muito bem descrita por seu filho mais ilustre, o músico e compositor Severino Dias de Oliveira, vulgo Sivuca, que resgatou da

Pode entrar que casa é sua!

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Terto negou até seus últimos dias que teria visto de perto o assassinato a tiros de um colega de trabalho em pleno expediente, sem esboçar qualquer reação, prosseguindo em suas tarefas de rotina como se nada tivesse acontecido.  Dizia que não foi bem assim. Não reagiu porque tomou um susto enorme quando deu de cara com o homicida ensandecido, arma na mão, ameaçando todo o mundo aos gritos, e temeu ser a próxima vítima. Isso aconteceu na metade do século passado, na agência do Banco do Brasil em União dos Palmares, a 70 km da capital alagoana. Naquela época, alguns conflitos do mundo corporativo ainda eram resolvidos à bala ou na ponta da peixeira. A lenda criada em torno do assunto já dura mais de meio século e tudo não passou de conversa fiada de quem, ao vê-lo sempre concentrado naquilo que fazia, espalhou que continuara datilografando partidas contábeis, alheio aos disparos  à   queima-roupa  e ao corpo ali  estendido  no chão. Antonio Tertulino Vieira, simplesmen

Gratidão que se multiplica

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Quase toda sexta-feira João Cardoso sentava na mesa de um bar qualquer e parecia incorporar o espírito de Vinícius de Moraes (1913 — 1980) ao garantir que quem já passou por essa vida e não viveu podia ser mais, mas sabia menos do que ele, porque a vida só se daria pra quem se deu, pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu.  Ele nasceu na Zona da Mata de Alagoas em março de 1949.  Viveu boa parte da vida fora de sua terra natal, até ser derrubado pelo  câncer em 2007, aos 58 anos, em Santa Catarina. O poeta estava com a razão: tristeza não tem fim; felicidade, sim. Conheci João Cardoso numa segunda-feira de fevereiro de 1977. Eu recomeçava a trabalhar no Banco do Brasil (agora como funcionário concursado) em São Miguel dos Campos, distante 60 km da capital alagoana. Estive fora pouco mais de um ano (desde o Natal de 1975), após o período como menor estagiário. Aos 19 anos, casado, esposa grávida, retomava a carreira trazendo no bolso coragem, deter

Os afilhados de Dona Canô

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Chegava à Bahia em maio de 1999, vindo de Pernambuco. Na primeira conversa com os gerentes sobre o papel do Banco do Brasil na virada do século 21, recorreu à questão filosófica que abre “Cajuína”, canção com a qual o filho de Dona Canô, a mais ilustre moradora do Recôncavo baiano, havia expressado sua angústia diante da morte do poeta Torquato Neto: “existirmos: a que será que se destina?” Achava absurdo que o volume de empréstimos concedidos no maior estado do Nordeste estivesse bem abaixo dos depósitos ali captados. Exportar essa diferença de recursos para estados mais desenvolvidos só iria ampliar o imenso fosso de desigualdades regionais no país. Como alertara nos anos 80 o ex-superintendente Nivaldo Alencar, a grande ameaça à sobrevivência do bancão seria perder a sua identidade  e "bradescalizar-se". Isto é, passar a fazer apenas aquilo que seu maior concorrente privado já fazia muito bem e a custos menores. Acabaria tornando-se  descartável. Mas o qu

Pelé não sabia de nada

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A última explosão genuína de felicidade de meu pai aconteceu na sala da casa em que morávamos na Rua da Vitória, em Maceió(AL), quando juntos vimos Pelé, aos 29 anos, no auge da maturidade esportiva, receber o passe de Rivellino sobre a grande área, saltar mais alto que o zagueiro Burgnich e cabecear no canto esquerdo do goleiro Albertosi, marcando o primeiro gol da goleada de 4x1 do Brasil sobre a Itália que garantiu a conquista da Copa do Mundo 1970, no México.  Era o tricampeonato mundial e a primeira copa transmitida pela TV, ao vivo,  para todo o Brasil.  Vários torcedores alagoanos comemoravam a conquista na Praça dos Martírios em junho de 1970, em frente ao Palácio do Governo, quando o governador Lamenha Filho,  entusiasmado com a vitória e com o “carnaval” fora de época, abriu mão da homenagem que iria receber — daria nome ao estádio em reta final de construção no Trapiche da Barra — e decidiu ali mesmo batizar a obra reverenciando o melhor jogador do mundo: estádio

E se essa história fosse outra?

Outro dia o presidente do  Banco do Brasil  requentou em forno microondas o debate sobre privatização ao declarar que se isso acontecer a empresa se tornará mais eficiente, embora reconheça que o tema não está na agenda do atual governo. Foi o bastante para reaparecer na mídia e nas redes sociais discussões acaloradas, cada lado com suas verdades inflexíveis.    A declaração me fez refletir sobre os graves problemas na educação pública brasileira, onde ainda existem crianças no 6º ano do ensino fundamental que não sabem ler nem escrever. Esse fato, inclusive, para mim reflete a atual estrutura educacional do país, caracterizada por um círculo vicioso que começa em baixa remuneração, passa por despreparo de professores e diretores, instalações precárias, evasão escolar, até omissão de pais na educação de seus filhos, como se essa tarefa fosse exclusivamente da escola.   Sem desmerecer o papel do banco na história do desenvolvimento econômico nacional, pode-se indagar: e se D. João VI,