quinta-feira, 16 de maio de 2019

Memória de minhas surras tristes


Apanhar de cinturão tornou-se uma experiência inesquecível para mim. Não apenas pela dor física, mas porque nenhum de meus irmãos apanhava tanto quanto eu e isso abalava a confiança que deveria haver em quem me batia.

Não se falava em "bullying" no Sertão da Paraíba nos anos 60. Se muito, em menino buliçoso, danado. Meu passatempo favorito naquela época, não nego, era torrar a paciência dos irmãos mais novos com apelidos, caretas  e cutucadas nos redemoinhos de cabelo do topo da cabeça deles. Por isso, imagino, apanhava tanto.

Não devia ser fácil para meus pais, sobretudo aos sábados e domingos e durante as férias escolares, manter o sossego numa casa com sete filhos entediados (os últimos nasceriam em Alagoas), todos com menos de 10 anos, a arengar do jardim ao quintal disputando brinquedos, a abrir e fechar a geladeira ou o filtro d'água na cozinha.

Levei tantas surras que aprendi a retaliar com pequenas maldades. Na única vez em que testemunhei uma discussão mais áspera entre meus pais, havia experimentado mais uma, logo cedo, por um motivo besta qualquer. À noite, antes de dormir, minha mãe costumava checar se estava tudo em ordem nas redes em que os filhos dormiam. Ao vê-la entrar no quarto, arranquei a casca de uma ferida antiga, o suficiente para brotar um filete de sangue no joelho e tingir de encarnado o lençol.
– Acorde, meu filho, o que é isso? – alarmou minha mãe.
– Foi a fivela do cinturão de papai.  – respondi, descaradamente fingindo dor e sono.
O coitado ainda tentou argumentar que não era doido a ponto de bater no filho com a fivela, mas, em voz alta, ela disse por mim tudo aquilo que eu não ousaria dizer, sob pena de mais uma pisa memorável.

Já havia sido castigado uma vez por conta de minha curiosidade sexista. Aos cinco anos, no Jardim da Infância do Colégio Cristo Rei, em Patos(PB), não sabia se freira era homem ou mulher. Irmã Priscila não pintava unhas, não usava batom como minha mãe, nem tampouco se tinha ideia do tamanho de seus cabelos. Resolvi tirar a dúvida lhe puxando o véu e minha saliência foi devidamente punida quando cheguei em casa. 

Outra surra inesquecível aconteceu numa manhã de domingo. Ao tentar escapar para não levar mais chibatadas, pisei de propósito dentro da lata de lavagem – sobras de comida estocadas ao ar livre, no quintal, para alimentar os porcos de uma vizinha – e corri para a sala de jantar, lambuzando tudo, para desespero de minha mãe que acabara de limpar o chão. E ainda existe quem duvide se crianças conhecem estratégias de manipulação psicológica.

Como a crônica de mais uma surra anunciada, ficaram na memória algumas sentenças:
– Vou contar pro seu pai quando ele chegar do trabalho, ouviu?
– Se correr vai apanhar mais, cabra safado!
– Não quero escutar nem mais um pio, ouviu?
– Se apanhar na rua dos moleques, vai apanhar de novo em casa!

Eu me perguntava até virar adulto: por que meu pai, cidadão de bem, amante de livros, cinema e música, que nunca sofrera um beliscão ou puxão de orelhas sequer de Tio Enoch – irmão mais velho com quem morava em Caxias(MA) –, recorria a cinturão de couro para "educar" os filhos? Logo ele, meu primeiro ídolo, referencia em quem me espelharia pro resto da vida! 

Não chegamos a conversar sobre o assunto depois que cresci. Morreu antes. Jurei a mim mesmo que faria diferente quando chegassem os meus filhos: nem palmadas na bunda. Parece que deu certo.

Se ele soubesse dos "pequenos saques" que eu fazia na bolsa de minha mãe para poder ajudar na compra de camisetas e bolas dos times da Rua Bossuet Wanderley, em Patos(PB), por exigência dos moleques mais velhos da vizinhança, aí sim é que teria motivos de sobra para umas boas lapadas no meu espinhaço. Não sabia.

Também não sabia dos banhos e das pescarias na “Ilhota” e na “Terra Cavada”, no Rio Mundaú, em União dos Palmares (AL), quando acabei "íntimo" da ancilostomíase (amarelão) e da esquistossomose (barriga d’agua, doença do caramujo). Se soubesse, é provável que o couro de minhas costas ficasse bem mais curtido.

De tudo restou a certeza de que a maior parte das surras que levei aconteceu por motivos banais, sem maior gravidade. Meu pai nunca soube dos mais sérios, inconfessáveis e obscenos. 

Mas não conseguiu da última vez que tentou. Em 1971, com quase 13 anos,  no primeiro golpe eu segurei firme na outra extremidade do cinturão e o puxei com força. Ao perceber que o filho já era taludo o bastante para não mais apanhar, desistiu.

Após a sua morte, um ano depois, virei adolescente impulsivo e sonhador, porém embrutecido e irascível. Nunca cogitei experimentar drogas, mas passei a fumar cigarros e a beber até cachaça com os amigos da Gruta de Lourdes, bairro em que morava, em Maceió(AL).

Quando jogava futebol, se em qualquer disputa levasse uma pancada ou me sentisse ameaçado, reagia, de forma desproporcional, a chutes e murros. Arrepender-se em seguida não me impedia de repetir a dose no próximo racha, só violência onde deveria haver apenas diversão e prazer.

Era tão atormentado que certa noite – Carnaval de 1975, no Iate Club Pajuçara, aos 17 anos –, depois de uns goles de cerveja, apavorei a namorada ao lhe dizer que iria procurar confusão. Saí esbarrando em um e outro até o tempo fechar e alguém partir para o revide me arremessando um copo com gelo. 

Se o mundo fosse justo, na melhor das hipóteses eu deveria ter sido expulso do clube naquela madrugada. Não fui porque, de forma autoritária e cretina, me identifiquei aos agentes de segurança na base do “você sabe com quem está falando?”:
– "Peraí, pô"! eu sou funcionário do Banco do Brasil!

E a estupidez em carne e osso quase joga no lixo o pouco que havia conseguido na vida até ali, ao usar em vão o nome da empresa que lhe acolhera como Menor Aprendiz havia nove meses. Quanto ao rapaz que ao jogar o copo com gelo apenas revidara uma agressão gratuita e imbecil, acabou retirado à força do clube. 

A poeira só tomou assento entre 1976 e 1977, quando me tornei estudante de Economia, funcionário de carreira do Banco do Brasil, marido e pai. Cansados, os bichos que me atormentavam caíram em sono profundo. Ainda bem.

Como um rio no rumo do mar, a vida seguiu adiante. Se hoje meu pai aparecesse na porta de minha casa, quem sabe me diria:
– Lembra quando eu lhe batia de cinturão? Me perdoa! Você não tinha culpa de nada do que se passava comigo.
– Faz tanto tempo, pai. Já esqueci. Senta e vamos tomar um vinho. Daqui a pouco seus bisnetos chegam por aqui...


sexta-feira, 10 de maio de 2019

Vidas reinventadas


O que nos diferencia de outras criaturas do reino animal é a capacidade de lidar de forma criativa com os problemas do dia a dia. A eterna insatisfação com o que temos em mãos nos leva a descobrir novas ferramentas, novos materiais e objetos, que reinventam a todo instante o jeito como vivemos. Para o bem e para o mal, claro.

Foi assim que apareceram alguns inventos que mudaram bastante a vida do ser humano na face da Terra: roda, vidro, papel, eletricidade, fotografia, lâmpada, plástico etc. Mas poucos foram tão importantes quanto o que junta algumas dessas descobertas e inventa o cinema.

Importante porque o homem não evoluiu apenas provendo suas necessidades materiais. Cultivou também desde as cavernas o hábito de ouvir e contar histórias, inclusive através de pinturas. Vem daí o gosto por ler e escrever textos, ver filmes e até mesmo disseminar "fake news" nas redes sociais. Há gosto pra tudo.

Não sou cinéfilo. Por preguiça, reconheço, não cheguei a ver metade dos filmes que gostaria de ter visto, mas confesso que alguns mudaram meu jeito de enxergar o mundo e toda vez que isso acontece, preciso convencer pelo menos meia dúzia de pessoas a assisti-lo e me dizer depois sobre o que viram. Me faz bem.

Foi com esse espírito, há 20 anos, que procurei numa videolocadora um antigo filme com o qual sugeri uma reflexão coletiva sobre o propósito do Banco do Brasil e o sentido do trabalho diário de seus funcionários nas cidadezinhas do interior, junto a pequenos empresários urbanos e produtores rurais. Parecia um daqueles filmes de sala de espera de dentista. Não era, nunca foi. 

Queria conversar sobre planejamento de atividades, mas sem o rigor acadêmico. Juntei então numa sala vários gestores no final do ano, em Pernambuco (1998) e na Bahia (1999), e compartilhei com eles “A Felicidade Não se Compra (It’s a Wonderful Life)”, um dos clássicos hollywoodianos mais inspiradores.

Naquele filme – produzido em 1946 de forma absolutamente franciscana, quando comparada às megaproduções de hoje –, um candidato a anjo chamado Clarence (Henry Travers) desce do céu com o desafio de convencer George Bailey (James Stewart) a não se matar. Se conseguisse, ganharia finalmente suas asas.

George, nascido e criado na cidadezinha de Bedford Falls, abrira mão do sonho de estudar, viajar e conhecer o mundo para cuidar do banco hipotecário de que seu pai era sócio até falecer em pleno trabalho, vítima de infarto fulminante.

O Sr. Potter (Lionel Barrymore), todo poderoso da região, provoca a insolvência do banco com manobras desleais para, no passo seguinte, tentar comprá-lo “na bacia das almas”. George não aguenta a pressão e, prestes a falir, deprimido, resolve antecipar a própria morte. 

Louco por um par de asas, Clarence tenta convencê-lo a desistir do suicídio falando de sua importância na vida de muita gente. Não consegue com argumentos. Resolve então mostrar em flashback como seria a vida se George não fizesse parte dela. Imagens sempre dizem mais que palavras.

A partir daí acontecem várias situações que nos induzem a uma reflexão sobre como seria a vida se não estivéssemos por aqui, passando uma temporada incerta, com todos os nossos vacilos por pensamentos, palavras, atos e omissões. No mínimo, instigante.

Não quero frustrar a expectativa quem não viu o filme e pretende assisti-lo. Mas posso assegurar que várias pessoas lembram até hoje do que balançou dentro delas não só no sentido profissional, no ambiente de trabalho, no universo em que viviam, mas também nas relações com cara-metade e filhos.

"Num filme, o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação" (Charles Chaplin). Todos nós temos na memória  pelo menos três ou quatro filmes que, ao vê-los pela primeira vez, mexeram no que estava quieto, adormecido.

Feito o mar, a vida desperta e se reinventa em ondas depois de um filme inspirador. Nem precisa pipoca e refrigerante. 


domingo, 5 de maio de 2019

O dia em que o mundo acabou

Tudo aquilo que o ser humano ignora não existe para ele. Por isso, o universo de cada um se resume ao tamanho de seu conhecimento, dizia Einstein.

Luiz, 4 anos, e sua irmã Eudócia, 8 anos  – minha mãe, tempos depois –, tomavam banho no Rio Paraíba, próximo à casa de taipa e de chão batido onde moravam no Sítio Jacaré, zona rural de Pilar(PB), quando Nina, a irmã mais velha deles, chegou aos gritos: 
– saiam daqui, vão embora pra casa que o mundo vai acabar agora!

De repente, o dia começou a escurecer, o calor diminuiu, os pássaros silenciaram, as galinhas buscaram os poleiros e duas crianças em pânico correram assustadas com o que viam.

Luiz se cansou a poucos metros de casa e pediu ajuda à irmã, que o acolheu nos braços. Mas desfaleceu antes que Eudócia pudesse deitá-lo na primeira rede que encontrou. 
– José, corre aqui que Luiz desmaiou! – gritou Carmelita para o marido ao ver a filha, de olhos arregalados, tentando reanimar o irmão.

José, que ordenhava no estábulo, chegou depressa, examinou o filho desacordado e balançou cabeça.
– Adianta não. O menino tá morto. O que aconteceu, Doça!?
– Foi Nina, pai! Luiz me chamou para buscar ovos de guiné na beira do rio e depois tomar banho. Ela chegou dizendo que o mundo ia acabar... começou a escurecer... 
– E aí?
– Luiz começou a tremer. E a gente correu pra casa, com medo...

O corpo foi sepultado logo após o médico em Itabaiana(PB) constatar que “coração fraco” fora a causa da morte. Não resistira ao susto com o eclipse solar que a Folha da Noite – diário vespertino que circulou de 1921 a 1959, primeiro jornal publicado pelo Grupo Folha –, assim noticiou em sua edição de 20 de maio de 1947:

“A lua começou a invadir o disco solar às 8 horas, 20 minutos e 6 segundos... 
Às 9 horas , 30 minutos e 1 segundo já se sentia a temperatura bem mais baixa e a escuridão já era quase total, impedindo a visão perfeita à distancia de cinquenta metros. Pouco depois surgiram as primeiras estrelas ante o entusiasmo curioso dos locutores e jornalistas que pela primeira vez puderam observar com uma perfeição indescritível o espetáculo que a natureza lhes oferecia.
O eclipse total começou às 9 horas, 34 minutos e 8 segundos. O globo solar ficou inteiramente coberto, observando-se sobre o firmamento um resplendor impressionante, como se houvesse um grande luar sobre o horizonte visual. A temperatura no primeiro minuto do eclipse baixou a 19 graus centigrados. Às 9 horas e 38 minutos começou a clarear rapidamente, notando-se então os contornos dos corpos sobre o solo, à medida que a lua foi baixando...” 

De volta ao Sítio Jacaré, José estava enfurecido. Desceu do cavalo, tirou o cinturão das calças e deu a maior surra que Nina levaria na vida para que nunca mais assustasse aos irmãos daquele jeito. E ainda alertou outra filha, que a tudo assistia:
– Você abra o olho e deixe de fazer medo a Doça, ouviu?

Essa outra irmã vivia ameaçando colocar um “colar” de caçotes – pequenos sapos amarrados pelas pernas – no pescoço de Eudócia ou uma bacia de baratas na rede em que ela dormia. Morria de inveja da sobrinha preferida das tias que moravam “na cidade”. 

Semana passada quis saber de Eudócia, agora com 80 anos, 24 netos e 23 bisnetos, qual teria sido a reação de minha avó Carmelita, “Mãe de Jacaré”, ao receber a notícia de que o filho estava morto, naquela manhã há 72 anos.
– Chorou, mas quase todo ano morria um anjinho, meu filho. Doía mais quando já era crescido, como Luiz – respondeu.

Eu nasci 11 anos depois que o mundo acabou para Tio Luiz. Não pude ouvir a sua voz me dizendo coisas como: “Deus te abençoe, meu sobrinho!” 

Se hoje lhe pedir notícias do mundo de lá, como na canção de Milton e Brant, talvez me fale sobre dois lados de uma mesma mesma viagem. Que o trem que chega é o mesmo trem da partida e que a hora do encontro é também de despedida. Que todos os dias é um vai-e-vem e que a vida se repete em cada estação. E tem gente que vem só olhar.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Millôr tinha razão

O impagável Millôr Fernandes (1923 – 2012) dizia que “a única diferença entre a loucura e a saúde mental é que a primeira é muito mais comum”. Seria loucura minha duvidar de sentença tão lúcida. Isso só aumenta a certeza de que está em minhas mãos resolver um pequeno problema que me aflige desde moleque.

Sei que se trata de compulsão mais difícil de superar do que o tabagismo. Eu, por exemplo, já não fumo desde abril de 1990. Se bem que até agora quando preparo meu cuscuz com ovos mexidos e café preto, bate saudade dos últimos tragos numa rede no alpendre da casa em que morava em Porto Calvo, Norte alagoano.

O tal distúrbio, osso duro de roer, começa na infância e metade das pessoas em idade escolar vive às voltas com ele. Comigo foi exatamente assim. Surgiu entre dois e três anos de idade lá onde nasci, em Itabaiana, Agreste paraibano, terra muito bem descrita por seu filho mais ilustre, o músico e compositor Severino Dias de Oliveira, vulgo Sivuca, que resgatou da memória imagens assim: 

"Fumo de rolo, arreio e cangalha,
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Bolo de milho, broa e cocada,
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Pé-de-moleque, alecrim, canela,
moleque sai daqui me deixa trabalhar!
E Zé saiu correndo pra Feira de Pássaros
e foi ‘passo-voando’ pra todo lugar.
Tinha uma vendinha no canto da rua
onde o mangaieiro ia se animar,
tomar uma bicada com lambu assado
e olhar pra Maria do Joá...”

Mas não teve Maria do Joá que me curasse da bendita compulsão. Dona Eudócia, minha mãe, deve ter se perguntado: por que só ele, coitado, dos nove filhos? Tive que suportar olhares curiosos desde cedo. Por isso considero falha imperdoável dos estudiosos do assunto que suas causas ainda sejam desconhecidas. 

O que se descobriu até agora é que a crise aparece de forma automática, especialmente quando a pessoa está envolvida numa atividade imersiva, como: ler, escrever, ver filmes, ouvir música ou assistir a uma partida de futebol quando seu time está perdendo, sob ameaça de ser rebaixado de divisão. 

Existe alguma explicação para isso? Nenhuma. O perigo é que maioria de nós sente prazer e relaxamento quando a crise se instala, mesmo sabendo que está  sujeito a outras doenças associadas, como os chamados transtornos de ansiedade. Millôr tinha razão: "não devemos resistir às tentações; elas podem não voltar".

O prejuízo de quem sofre com esse distúrbio não é apenas estético. Já foi demonstrado que pode causar anormalidades na arcada dentária, na língua ou até causar complicações mais graves - infecções da pele, gengivites, dentre outras.

Não duvido nada já haver deputado federal rascunhado projeto de lei voltado para criação de espaços especiais onde possam nos confinar sem a menor crise de consciência. E o cartel das empreiteiras, de olho nas chamadas oportunidades de mercado, quem sabe anda discutindo as regras básicas para constituição de um novo propinoduto.

Paciência. Como ainda me sinto um idoso ligeiramente jovem – velho só é velho quando não pensa noutra coisa –, espero qualquer hora dessas, com um pouco mais de força de vontade, resolver de vez o meu problema. 

Millôr dizia também que “certas coisas só são amargas se a gente as engole.” Por isso continua tão difícil para mim resistir à compulsão de roer às unhas.

Das mãos, que fique bem claro! Pra não dar mau exemplo pros netinhos. 

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Pode entrar que casa é sua!

Terto negou até seus últimos dias que teria visto de perto o assassinato a tiros de um colega de trabalho em pleno expediente, sem esboçar qualquer reação, prosseguindo em suas tarefas de rotina como se nada tivesse acontecido. 

Dizia que não foi bem assim. Não reagiu porque tomou um susto enorme quando deu de cara com o homicida ensandecido, arma na mão, ameaçando todo o mundo aos gritos, e temeu ser a próxima vítima.

Isso aconteceu na metade do século passado, na agência do Banco do Brasil em União dos Palmares, a 70 km da capital alagoana. Naquela época, alguns conflitos do mundo corporativo ainda eram resolvidos à bala ou na ponta da peixeira.

A lenda criada em torno do assunto já dura mais de meio século e tudo não passou de conversa fiada de quem, ao vê-lo sempre concentrado naquilo que fazia, espalhou que continuara datilografando partidas contábeis, alheio aos disparos à queima-roupa e ao corpo ali estendido no chão.

Antonio Tertulino Vieira, simplesmente Tonho ou Terto (no trabalho), sempre foi muito generoso e modesto desde criança, em Quixeramobim, Sertão cearense.  Tanto que o pai abria mão de sua ajuda no balcão do armazém da família porque várias vezes ele dispensara parte do pagamento de quixeramobinenses mais necessitados que não dispunham de todo o dinheiro para a compra. 

Acabou ouvindo o conselho materno e ingressou no Seminário Diocesano de Quixadá, lá próximo de casa, onde chegou a usar batina e quase foi ordenado padre. Ainda bem que percebeu a tempo que sua carne era fraca e destoava do sacerdócio exigido pela Igreja Católica. Resolveu então prestar concurso para o Banco do Brasil, sendo aprovado com louvor.

Iria assumir seu primeiro emprego na agência de Palmares, Zona da Mata de Pernambuco, em meados de 1945. Distraído, porém, comprou passagens e pegou o trem para União dos Palmares, no vizinho estado de Alagoas, onde o gerente, com o quadro de pessoal desfalcado, cuidou de convencer a direção do banco a deixá-lo por lá mesmo.

Pouco depois conheceria Madalena Veras, que havia rompido seu sexto noivado. Com ele deu tudo certo. Não se sabe se a vida celibatária precipitou os acontecimentos, mas é fato que rapidamente casaram e em oito anos formavam uma família com mais três filhos  — João, Fátima e Magdala, a caçula, minha futura mulher. 

Desapegado de bens materiais e sem maiores ambições no trabalho, Terto nunca quis nem buscou cargos ou poder. Não aprendera, como muita gente, a ser dissimulado, implacável ou manipulador. Foram 30 anos como simples escriturário até se aposentar em agosto de 1975.

O carinho da família, a alimentação equilibrada, a missa nas tardes de sábado, as gargalhadas com Os Trapalhões nas noites de domingo, a prosa com cães e gatos da vizinhança e o lenço impecavelmente branco para assoar o nariz ou enxugar o suor do rosto, eram bastantes para deixá-lo de bem e em paz com a vida.

Depois que se aposentou, alguns amigos juravam que não sobreviveria muito tempo, habituado que estava à rotina de trabalho. Contrariando a todos, já vinha costurando em silêncio projeto arrojado: dar vida ao solo arenoso dos arredores da casa na Rua Goiás, 421, no Farol, a partir da reciclagem do lixo orgânico ali produzido desde 1970.

Em pouco tempo oferecia a netos: cocos-da-baía, carambolas, goiabas, jambos e pitangas. Para não falar das roseiras e dos antúrios à sombra do imenso pé de piriquiti no jardim. Nem dos filhotes de cágados que,  distraídos como ele, passeavam entre as plantas a cada primeira trovoada do ano.

Netos agora adultos reconhecem que se tratava de um legítimo avô-raiz.  Longe da vigilância dos olhos da avó, consentia pequenos delitos como alimentar animais, trepar na goiabeira, tomar banho na chuva ou acender fogueiras quando chegavam as festas juninas.

Aos 86 anos, faleceu enquanto dormia numa manhã de agosto de 2005, três décadas depois de aposentado. No seu sepultamento, tinha o rosto suave de quem fez quase tudo o que gostaria de ter feito na vida. Era um passarinho voando no rumo do céu. 

Se visse a cena como eu, o poeta Manuel Bandeira (1886 — 1968)  assim diria:


Terto distraído, 
Terto leve,
Terto sempre de bom humor. 

Imagino Terto entrando no céu: 
— Licença, meu santo! 
E São Pedro bonachão: 
— Entra, Tertinho. Você não precisa pedir licença.



domingo, 21 de abril de 2019

Gratidão que se multiplica


Quase toda sexta-feira João Cardoso sentava na mesa de um bar qualquer e parecia incorporar o espírito de Vinícius de Moraes (1913 — 1980) ao garantir que quem já passou por essa vida e não viveu podia ser mais, mas sabia menos do que ele, porque a vida só se daria pra quem se deu, pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu. 

Ele nasceu na Zona da Mata de Alagoas em março de 1949.  Viveu boa parte da vida fora de sua terra natal, até ser derrubado pelo câncer em 2007, aos 58 anos, em Santa Catarina. O poeta estava com a razão: tristeza não tem fim; felicidade, sim.

Conheci João Cardoso numa segunda-feira de fevereiro de 1977. Eu recomeçava a trabalhar no Banco do Brasil (agora como funcionário concursado) em São Miguel dos Campos, distante 60 km da capital alagoana.

Estive fora pouco mais de um ano (desde o Natal de 1975), após o período como menor estagiário. Aos 19 anos, casado, esposa grávida, retomava a carreira trazendo no bolso coragem, determinação e sonhos. 

Fez questão de me receber como se fosse velho amigo. Apenas seis anos de carreira, mas já era supervisor do setor de operações e oferecia dicas importantes, atalhos fundamentais para minha aprendizagem, ainda que sufocado pelas tarefas do cargo que ocupava.

A conversa deslanchou quando ele quis saber: 
— Qual é a primeira coisa que passa por sua cabeça se um amigo lhe pedir uma grana emprestada? 
— Se vou receber, ou não, meu dinheiro de volta — respondi, já temendo o assédio de bancário apertado.
— Isso mesmo! Veja esta proposta... vamos calcular comigo a capacidade de pagamento desse fornecedor. Ele quer financiar um caminhão pra carregar cana pra usina na moagem da próxima safra. Leia o que diz a CIC Rural...

Duas horas depois, com o crédito aprovado pelo gerente, lá estava ele de volta a me orientar sobre como deveria preparar a cédula de crédito. Mostrou em seguida como fazer: a ficha gráfica onde seriam registrados os lançamentos contábeis, a ordem de pagamento para a vendedora do veículo e o dossiê organizado com todos os documentos da operação.

Claro, além dos cegos, até os surdos desconfiam quando a ajuda é grande. Fui direto ao ponto:
— Por que tanto interesse em ensinar no primeiro dia o que todo mundo leva semanas para aprender?
— Gratidão, só isso...
Estiquei a conversa para descobrir algo a mais até que me chamou para tomar um café.

Contou que sua família morava em União dos Palmares quando meu pai, Seu Agostinho, fora subgerente da agência do BB, nos idos de 1968. Enquanto eu ainda jogava bola e tomava banhos no Rio Mundaú,  já concluía seus estudos no Colégio Agrícola de Satuba. 

Um dia, o banco precisou selecionar na região um perito rural — não era obrigatório concurso público — cuja missão seria: avaliar garantias, estimar a produção de lavouras, o valor de rebanhos etc. Pré-requisitos básicos: ser maior de idade, ter capacidade técnica e boa redação.

Foi considerado o melhor entre seis ou sete candidatos. Aí não dava mais para continuar escondendo: não havia completado 18 anos, embora fosse o mais necessitado de todos os concorrentes. Chamado num canto de mesa pelo subgerente da agência, tomou uma bronca pela audácia mas ouviu a melhor sentença que poderia esperar: 
— a partir de hoje você tem 18 anos de idade. 

Grato pelo apoio quando mais precisou, não esquecera do episódio. Em pouco tempo seria aprovado no concurso público nacional e passava a integrar o quadro de funcionários de carreira do banco em Viçosa, a partir de agosto de 1971. 

Nunca mais havia visto Seu Agostinho, que, transferido para Maceió, morreria em maio de 1972. Mas a vida lhe concedia agora a oportunidade de ser guru-orientador do filho dele nos passos iniciais de uma longa jornada. 

João Cardoso e eu fizemos escolhas e trajetórias diferentes. A última vez que nos vimos foi em 2000, na abertura de uma jornada esportiva — era craque inclusive numa mesa de sinuca — em Ilhéus, Litoral Sul da Bahia, quando recordamos aquela semana que antecedeu o Carnaval de 1977. 

Lembrei dele outro dia, com imenso carinho, ao rever uma caricatura e o soneto do Poetinha que termina assim:

"... Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com meu próprio engano

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica..." 


terça-feira, 16 de abril de 2019

Os afilhados de Dona Canô


Chegava à Bahia em maio de 1999, vindo de Pernambuco. Na primeira conversa com os gerentes sobre o papel do Banco do Brasil na virada do século 21, recorreu à questão filosófica que abre “Cajuína”, canção com a qual o filho de Dona Canô, a mais ilustre moradora do Recôncavo baiano, havia expressado sua angústia diante da morte do poeta Torquato Neto: “existirmos: a que será que se destina?”

Achava absurdo que o volume de empréstimos concedidos no maior estado do Nordeste estivesse bem abaixo dos depósitos ali captados. Exportar essa diferença de recursos para estados mais desenvolvidos só iria ampliar o imenso fosso de desigualdades regionais no país.

Como alertara nos anos 80 o ex-superintendente Nivaldo Alencar, a grande ameaça à sobrevivência do bancão seria perder a sua identidade  e "bradescalizar-se". Isto é, passar a fazer apenas aquilo que seu maior concorrente privado já fazia muito bem e a custos menores. Acabaria tornando-se descartável.

Mas o que poderia e deveria ser feito? "Caminhe sempre com um saco de interrogações numa mão e uma caixa de possibilidades na outra", diria Nizan Guanaes.

Antes de tudo, reaproximar-se das pessoas, das prefeituras, principalmente nas cidades menores, aquelas que mais sofreram com ameaças de fechamento de agências, demissões ou transferências compulsórias de funcionários durante o ciclo de recuperação do banco nos anos 1995/96.


Havia em algumas regiões pelo menos 60% de analfabetos – zona rural de Jacobina, por exemplo. Embora subutilizado, dormia em berço esplêndido na prateleira um santo remédio para curar a dor desse flagelo humano: o
BB Educar, programa de alfabetização de adultos, criado em 1992 pela área de RH do bancão, com base no método Paulo Freire.

O filósofo e pedagogo Paulo Freire (1921 – 1997) desenvolvera seu método de alfabetização no início dos anos 60. Não utilizava cartilhas para ensinar coisas como “o boi bebe e baba” ou “vovó viu a uva”.

Preferia termos comuns no dia a dia das pessoas. Pescadores deveriam aprender a escrever: “peixe”, “canoa”, “anzol”; já agricultores aprenderiam: “enxada”, “terra”, “plantio” etc. A partir da decodificação fonética desses termos, o repertório seria ampliado com outras palavras e suas conexões.

Coordenada por Vânia Venâncio e Avelar Matias, hoje diretor de gestão de pessoas do bancão, nasceu uma poderosa networking, envolvendo líderes comunitários de todo o estado. É bom lembrar que ainda não existiam: FaceBook, Twitter, Whatsapp etc.  

Sem as plataformas de hoje nas redes sociais, era importante escolher uma madrinha carismática e respeitada para despertar na população o interesse pelo BB Educar na Bahia e ajudar a esclarecer os formadores de opinião sobre o propósito de tudo.

Falou-se à época em Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Zélia Gattai etc. Acabou sendo convidada Dona Canô que, aos 92 anos, com sangue nos olhos, topou na hora: “é isto mesmo que estou ouvindo? o grande Banco do Brasil quer que eu seja a madrinha de um programa lindo como este?!”

Logo depois, no lançamento em Santo Amaro da Purificação, lembrava a seus afilhados, a maioria na casa dos 40 a 50 anos: “... minha gente, temos mais é que agradecer a Deus por essa oportunidade, porque quem aprende a ler, mesmo depois de velho, deixa de querer advinhar o que está escrito nos livros e nos jornais...”

Depois do almoço, ao retornar para Salvador pela BR-420, trazia a certeza de que tudo  acabaria bem – empresas desse tipo nunca serão descartáveis  – quando ouviu no rádio do carro a voz marcante de uma filha de Dona Canô, que assim cantava outros versos do irmão querido:

“...Eu sou o cheiro dos livros desesperados,
sou Gitá gogoia, seu olho me olha, mas não me pode alcançar.
Não tenho escolha, careta! vou descartar:
quem não rezou a novena de Dona Canô,
quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor,
quem não amou a elegância sutil de Bobô,
quem não é Recôncavo nem pode ser reconvexo...”

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Pelé não sabia de nada


A última explosão genuína de felicidade de meu pai aconteceu na sala da casa em que morávamos na Rua da Vitória, em Maceió(AL), quando juntos vimos Pelé, aos 29 anos, no auge da maturidade esportiva, receber o passe de Rivellino sobre a grande área, saltar mais alto que o zagueiro Burgnich e cabecear no canto esquerdo do goleiro Albertosi, marcando o primeiro gol da goleada de 4x1 do Brasil sobre a Itália que garantiu a conquista da Copa do Mundo 1970, no México. Era o tricampeonato mundial e a primeira copa transmitida pela TV, ao vivo,  para todo o Brasil. 

Vários torcedores alagoanos comemoravam a conquista na Praça dos Martírios em junho de 1970, em frente ao Palácio do Governo, quando o governador Lamenha Filho,  entusiasmado com a vitória e com o “carnaval” fora de época, abriu mão da homenagem que iria receber — daria nome ao estádio em reta final de construção no Trapiche da Barra — e decidiu ali mesmo batizar a obra reverenciando o melhor jogador do mundo: estádio Rei Pelé.

Meu pai e eu, aos 12 anos, pretendíamos assistir ao jogo de abertura do novo estádio "ao vivo e a cores, sem direito a replay", como se dizia naquela época. Contávamos os dias que faltavam para ver de perto o rei do futebol, mas isso acabou não acontecendo. O dinheiro que seria gasto com as entradas foi  utilizado no sustento da família  pai, mãe e nove filhos

Pelé, claro, não sabia de nada.

Quatro meses depois, em outubro de 1970, diante de quase 46 mil torcedores, o Santos FC inaugurava o Estádio Rei Pelé goleando por 5x0 a Seleção Alagoana, com gols de Douglas (2), Pelé (2) e Nenê. 

Além dele, perdemos a oportunidade única de ver em ação craques como Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Cejas, Djalma Dias, Joel Camargo, Ramos Delgado e Rildo, todos com passagem pelas seleções de Argentina ou Brasil.

Em menos de dois anos (maio de 1972), meu pai partiu sem nunca ter visto de perto Pelé. E eu só fui conhecê-lo em junho de 2013, na área nobre multiuso do Estádio do Morumbi, em São Paulo, quando do lançamento do projeto Brasil... um país, um mundo, exposição itinerante de acervo de peças históricas, como camisas usadas em jogos oficiais, troféus, medalhas e chuteiras, que passaria pelas 12 cidades-sede da Copa do Mundo 2014.

Pelé, mesmo sem coroa, naquele dia entrou no salão de forma soberana,  atraindo para si todas as atenções. Havia certo alvoroço, barulho surdo e confuso, onde várias pessoas falavam ao mesmo tempo, mas em voz baixa, com todo o respeito. Ali estava um herói na acepção da palavra,  alguém que mudou o rumo da história de sua nação e será sempre lembrado por seus feitos. 

Tanto pelo Santos FC, onde conquistou todos os títulos possíveis — estaduais, nacionais, sul-americanos, mundiais —,  como pela Seleção Brasileira, pela qual é até hoje o único atleta três vezes campeão do mundo, em 1958, 1962 e 1970. De quebra,  ninguém conseguiu marcar quase 1300 gols em pouco mais de 1300 partidas, números que traduzem quem foi o Atleta do Século 20 de todos os esportes,  segundo o jornal francês L'Equipe

Até nos Estados Unidos, em seu último contrato profissional com o New York Cosmos,  entre 1975 e 1977, ele atraía todas as atenções. A ponto de um certo senhor grisalho, ao recebê-lo na Casa Branca, ter a humildade de reconhecer: “Muito prazer, eu sou Jimmy Carter, presidente dos Estados Unidos. Você não precisa se apresentar. Pelé todo o mundo conhece.”

Nem tanto, Mr. Carter! Eu era parte de “todo o mundo” e, como muita gente, nem sequer havia chegado perto dele. Por isso, aproveitei alguns minutos de sua atenção naquela manhã de terça-feira no Morumbi para, numa rápida conversa ao pé do ouvido, contar o que acontecera comigo e meu pai em 1970, quando não pudemos vê-lo atuar em Maceió com a camisa branca mais famosa do planeta

Pelé, óbvio, nunca soube de nada.

Reencontramo-nos no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, no final de 2013, na abertura oficial da exposição  Brasil... um país, um mundo, em Brasília. 

Pelé já sabia de tudo. Como se fosse um velho amigo, o rei me trouxe uma versão nova, autografada, do manto sagrado com que encantou plateias pelo mundo afora, que guardo comigo para o resto da vida. Afinal, como dizia o falecido craque húngaro Ferenc Puskas, “o melhor jogador de todos os tempos foi Di Stefano; Pelé não era deste mundo”. 

Noutro plano qualquer do universo, meu pai certamente ficou feliz, como se estivesse na sala da casa em que morávamos na Rua da Vitória, em Maceió, há quase meio século. "O passado não reconhece seu lugar: está sempre presente", diria o poeta Mario Quintana

Eu bem queria tê-lo a meu lado quando estive com Pelé! Teria sido perfeito. Mas a vida, que sempre faz da gente o que bem quer, quis de outro jeito.


quinta-feira, 4 de abril de 2019

E se essa história fosse outra?

Outro dia o presidente do Banco do Brasil requentou em forno microondas o debate sobre privatização ao declarar que se isso acontecer a empresa se tornará mais eficiente, embora reconheça que o tema não está na agenda do atual governo. Foi o bastante para reaparecer na mídia e nas redes sociais discussões acaloradas, cada lado com suas verdades inflexíveis. 

 

A declaração me fez refletir sobre os graves problemas na educação pública brasileira, onde ainda existem crianças no 6º ano do ensino fundamental que não sabem ler nem escrever. Esse fato, inclusive, para mim reflete a atual estrutura educacional do país, caracterizada por um círculo vicioso que começa em baixa remuneração, passa por despreparo de professores e diretores, instalações precárias, evasão escolar, até omissão de pais na educação de seus filhos, como se essa tarefa fosse exclusivamente da escola.

 

Sem desmerecer o papel do banco na história do desenvolvimento econômico nacional, pode-se indagar: e se D. João VI, depois de algumas garrafas de vinho na noite anterior ao dia 12 de outubro de 1808, decretasse a abertura do que chamarei EducaBrasil S/A, empresa fictícia de economia mista que passo a detalhar mais adiante, em alternativa à criação do banco?

 

Claro que era importante a abertura de um banco para atender às demandas iniciais de uma economia incipiente, mas já existiam banqueiros europeus que enxergavam boas perspectivas de negócios com a chegada no Brasil da família real. E duvido que esses banqueiros falissem por conta dos elevados saques realizados quando do retorno de D. João VI a Portugal, como aconteceu com a instituição duas décadas depois, em 1829. 

 

E se durante os últimos dois séculos todos os recursos públicos e privados investidos no banco (humanos, materiais e tecnológicos) fossem direcionados para a educação, de primeiro e segundo graus, em “agências” de ensino-aprendizagem estruturadas do Oiapoque ao Chuí?

 

E se os professores, bedéis e diretores dessas agências fossem capacitados não para distribuir crédito rural subsidiado na abertura de fronteiras agrícolas  um dos motivos da brutal concentração de renda neste país , mas sim para discutir no meio rural coisas como: manejo de águas e solos, controle de pragas, diferença entre plantar para vender e vender para plantar?

 

E se outros colaboradores fossem treinados não para abrir contas correntes ou fazer pagamentos e recebimentos, mas sim para disseminar no meio urbano coisas como: mapeamento de ameaças e oportunidades de negócio, gestão de recursos escassos, redução de desperdícios, diferença entre causa e consequência de problemas econômico-financeiros?

 

E se a proposta didático-pedagógica da EducaBrasil S/A incorporasse algumas ideias de Frei Betto abordadas em seu artigo A escola de meus sonhos? Para ele, na escola ideal não haverá temas tabus. “Todas as situações-limites da vida devem ser tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, enfermidade, sexualidade e espiritualidade... o texto dentro do contexto: a matemática busca exemplos na corrupção... o português, ...nos textos de jornais; a geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a física, nas corridas da Fórmula 1 e pesquisas do telescópio Hubble; a química, na qualidade dos cosméticos e na culinária; a história, na violência de policiais a cidadãos, para mostrar os antecedentes na relação colonizadores-índios, senhores-escravos...”

 

Com esse caldo de cultura devidamente encorpado ao longo de dois séculos por colaboradores fiéis, certamente a EducaBrasil S/A teria contribuído bem mais que um banco para alçar o país a degraus mais elevados de desenvolvimento socioeconômico. 


Colaboradores fiéis não só por conta da missão de educar gerando cidadania e resultados tangíveis para a sociedade, de receber por isso bons salários e benefícios, mas principalmente porque acionistas e empregados, juntos, haveriam de estruturar um grande fundo de pensão, aposentadoria e saúde, que seria percebido como o maior fator de atração e retenção de pessoas na empresa.

 

E se alguém cogitasse privatizar a EducaBrasil S/A, a própria sociedade estaria madura e preparada para dizer se vinha sendo bem servida, ou não. Afinal, como disse Deng Xiaoping (1904  1997), líder político que fez da China o país de maior crescimento econômico do planeta, “não importa se o gato é preto ou branco, desde que pegue os ratos”.