quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Era Natal, ainda bem

Ela me contou que, pouco depois da noite de Natal do ano de 1995, ao ouvir um barulho estranho na porta da frente de sua casa, foi até lá e deu de cara com dois homens desconhecidos. Ficou preocupada com eles:
— O que cês tão fazendo aí fora nesse sereno? Entrem que essa friagem não vai fazer bem. 

Aos 90 anos, quase cega pelo avanço da catarata, vivia num casarão antigo e comprido cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam sua casa de porta a porta. 

Ilustração: Dedé Dwigth 
Morava com uma neta solteira na faixa dos 40 anos, cuja mãe, também criada por ela, morreu afogada muito tempo atrás numa rara enchente do rio, ao tentar atravessá-lo pouco antes de uma tromba d’água que surpreendeu todo mundo e devastou boa parte do lugarejo em questão de minutos. 

Quando estive na região por quatro dias avaliando o possível impacto do fechamento de agências bancárias, não foram duas ou três  vezes em que a ouvi perguntar aos que passavam:
— Tá com fome, meu filho? Vá lá na cozinha, fale com minha neta, coma alguma coisa, beba um caneco d’água... Puxe uma cadeira, descanse um pouco...

Vi ainda, numa manhã, acertar contas com o leiteiro. Quem pagava e quem recebia não tinha a menor intenção de enganar ninguém:
— Quanto tem aí? — Ela dizia, ao repassar uma cédula.
— Dez...
— E agora?
— Inteirou vinte... Faltam três.
— Pronto! Pegue mais essa nota.
— Sobrou, comadre. Tá aqui o troco.

Na noite em que os desconhecidos apareceram em sua porta, após acender a luz da sala e convidá-los a sentar, o tom teria sido maternal:
— Estão imundos! Precisam de banho. Venha cá, meu filho, pegue toalha e sabonete, vá pro banheiro. Cuidado para não escorregar!

Em seguida, acariciou a cabeça do outro:
— Coitado... Tá mortinho de fome. Vou esquentar a sobra do jantar. Tem guisado de galinha e macaxeira.

Eles entreolhavam-se sem saber o que dizer quando ela quebrou o silêncio:
— Cês vão dormir aqui na sala, um no sofá e o outro naquela rede. Olhe aqui o lençol. Agora vou rezar no meu quarto antes de pegar no sono. Boa noite!

Era madrugada quando eles acordaram com o bater de asas e o canto do galo no quintal. Na cozinha, a mesa já estava posta: cuscuz, pão, ovos e café com leite. Um quis abreviar a prosa:
— Quer dizer que a vó nem imagina o que a gente veio fazer aqui?
— Deixe de conversa fiada, filho... Deus castiga! Sente aí, coma e mais tarde cuide de procurar trabalho que é o melhor que cê faz. Mas bote chapéu que o sol anda um horror!

Do jeito que chegaram, partiram. Nunca mais foram vistos na região. 
— Esses moços são mal agradecidos. Somem no mundo e nem se despedem da gente. Que coisa, hein?! — queixava-se, a lembrar do ocorrido meses antes.
— A senhora, pelo menos, procurou saber o nome deles? — indaguei, a imaginar o que poderia ter acontecido com ela e a neta naquela noite.
— Carecia mesmo? Era Natal, meu filho... — respondeu, com os olhos opacos e o sorriso mais inocente do mundo sobre o rosto emagrecido. 

"Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir", diria Manoel de Barros (1916 — 2014). 

Fui-me embora impressionado com a generosidade dessas mulheres sertanejas. Querer compreender certas coisas só dificulta ainda mais a vida miúda que a gente leva.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Basta um caju

Na flor dos 69 anos de idade, o marido de uma amiga minha, morador do Lago Norte, em Brasília, no mês passado escorregou de uma escada apoiada no muro que dá para o quintal do vizinho, estatelou-se no gramado e fraturou a clavícula, além de sofrer uma forte pancada no rosto. Tentava de forma sorrateira afanar um suculento caju para presentear a amada. 

Inegavelmente, mais que carinho com segundas intenções, ficou claro para mim, de novo, que a criança que hiberna em cada adulto acorda quando menos se espera e apronta das suas. Cheguei a temer pela estrutura óssea do pobre gatuno de meia-idade, apaixonado, que felizmente só amargou alguns dias de tipóia, cama e anti-inflamatórios. 

Como uma coisa puxa a outra, lembrei-me do que aconteceu comigo por volta das quatro da tarde de um domingo, quando morei pela primeira vez na Bahia. Na época, no começo dos anos 90, aos 33 anos de idade, ocupava o cargo de superintendente estadual-adjunto do Banco do Brasil, até ali o maior desafio profissional de minha vida.

Voltávamos eu e meus dois filhos maiores (de 13 e 10 anos) para o estacionamento depois de um raro dia em que o sol resolveu fazer greve na praia de Vilas do Atlântico, em Lauro de Freitas (BA). Eles estavam exaustos dos mergulhos e da comilança à beira-mar; e eu, no agradável torpor de incontáveis cervejas desde as onze da manhã, andava feliz até com domingo chuvoso.

De repente, se tanto a trezentos metros de onde estava o carro, não me lembro por qual motivo bateu a vontade de aprontar uma inocente molecagem, incompatível, óbvio, com o que se espera de um pai mentalmente são: tocar a campainha de uma mansão daquelas do condomínio e sair correndo. De longe, assistiria ao morador, que relaxava na pérgula da piscina, vociferar palavrões enquanto não encontrasse quem lhe chamara ao portão.

Nada falei para meus filhos porque também queria surpreendê-los. Apertei a campainha e corri morrendo de rir, a imaginar o susto que tomariam com minha atitude inesperada. No mesmo segundo, teriam que desabar na carreira se não quisessem ser acusados pela insensatez paterna.

No corre-corre, segundos depois topei numa pedra saliente no meio da rua que quase me arrancou a cabeça do dedão, com unha e tudo. Levantei-me às pressas, com o pé esquerdo em petição de miséria, sangrando, e fui como pude até o estacionamento onde o restante da família me recebeu  com cara de quem pensou mas não perguntou: “Isso é papel de pai?”

Não precisava. Mais tarde, antes de dormir, ouvia a vinheta sem graça de um antigo programa de tevê a decretar a iminente chegada da segunda-feira e não sabia o que latejava mais: o dedo esfolado ou a ressaca moral após a molecagem, com o agravante de que logo cedo teria que vestir terno, gravata, sapato no pé direito e sandália no outro, por conta da liturgia do cargo.

Na primeira reunião pela manhã, ainda tentei convencer alguns colegas de que o curativo teria sido consequência de uma pelada (baba) com os pés descalços, no sábado. Um deles com falsa cara de espanto — participara comigo da farra e sabia de tudo  até cogitou emprestar um par de chuteiras para os próximos rachas. Na maior cara de pau! Cheguei a ver óleo de peroba escorrendo no riso sórdido do miserável!

Mas tudo acabaria bem. Dias depois a ferida estava cicatrizada e nunca mais se falou nisso. Se não fosse o que aconteceu com o marido de minha amiga, talvez nem lembrasse dessas coisas que perturbam o sono leve da criança que cochila dentro da gente e que, às vezes, basta um caju para despertá-la. 

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Sou, mas quem não é?

Ao ler crônicas como "Memória de minhas surras tristes", "Cocorotes" e "Asas cortadas no ninho", uma amiga leitora me escreveu alertando que devo ser portador de um tal Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

Recorri ao Google e descobri que esse bicho de três cabeças aparece na infância e persegue o sujeito por toda a vida, sob a  forma de desatenção, inquietude e impulsividade. Pega 5% das criancinhas e em mais da metade dos casos, embora mais brando, permanece até a velhice — o pior de todos os males, a nos tirar todos os prazeres exceto o apetite.

Li ainda que o TDAH em geral é associado a dificuldades na escola e nas relações com outras crianças, pais e professores. A molecada portadora é vista como: “com a cabeça no mundo da lua”,  “desastrado” (derruba tudo que tem nas mãos) ou “com motor de popa na bunda” (não param quietas um minuto sequer!). 

Quando adolescentes, podem ter dificuldades em se sujeitar a regras e limites. Mais tarde, já adultos, surgem com frequência problemas de desatenção para coisas do dia a dia e com a memória (são muito esquecidos). São também inquietos (só relaxam dormindo), mudam de um assunto para outro em questão de minutos e também são impulsivos (“sempre avançam o sinal”). 

A boa notícia é que esse transtorno não é considerado uma doença, por isso ninguém pode dizer que “tem cura”. Se bem que TDAH é citada como doença em vários sites na internet, que chegam a prometer “a cura”. Nessas horas a indústria farmacêutica não brinca em serviço em nenhuma parte do mundo.

Sei não... Sinceramente, não sei em que minha querida amiga leitora se baseia para supor uma coisa dessas a meu respeito. Logo eu, uma criança que se tivesse nascido com asas poderia ser confundida com um anjo.  Que se transformou num adulto respeitável, capaz de permanecer desde a adolescência na mesma empresa e com a mesma mulher. Há algo que não se encaixa naquilo que apurei em minhas pesquisas. 

Sei que minha mãe continua impulsiva para dizer o que bem entende em qualquer situação. Sei também que meus filhos, assim como eu, vivem deixando torneiras ligadas, lâmpadas acesas e perdendo chaves, documentos, carteiras porta-cédulas, celulares etc; e alguns netos não relaxam nem quando dormem bem agasalhados, de barriga cheia.

Há quem diga que a avó materna é quem transfere a maior parte da carga genética dentre todos os avós. E a genética pula uma geração. Por isso, muitas crianças não se parecem com seus pais, mas sim com seus avós. 

E essa herança não seria nem tanto no aspecto físico, mas, por exemplo, no tique nervoso, no jeito de se comportar, na ansiedade etc. No meu caso, tirando as sobrancelhas, em nada lembro minha saudosa avó, Dona Carmelita, Mãe de Jacaré, cujas cantigas de ninar nunca saíram dos meus ouvidos.

Se eu contar ninguém acredita, mas ainda luto bravamente contra a vontade de provocar meus netinhos, tal como fazia com meus irmãos menores, quando nem se sabia o que vinha a ser bullying. Resisto o quanto posso para que não se zanguem comigo e se queixem junto à advocacia-geral da união familiar: Magdala, a avó. Senão lá vem aquela conversa moída em meus ouvidos!

Dizem que a infância é a idade das interrogações; a juventude, a das afirmações; e a velhice, a das negações. Pensando bem, não posso negar, minha amiga leitora está coberta de razão. Devo ser portador de TDAH, mas quem não é?

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Parece que foi ontem, Robertão

Ao retornar à Bahia, em maio de 1999, na largada quis provocar os colegas ao recorrer à canção de Caetano Veloso quando me dirigi pela primeira vez a centenas de administradores do Banco do Brasil: "Existirmos... a que será que se destina?" Parece que foi ontem que assumi a superintendência estadual.

Jaime, executivo que viera da sede da empresa, em Brasília, prestigiar a cerimônia de posse, no final entregou-me uma folha de papel com breve comentário: “Excelente discurso. Emoção e razão”. Guardei no bolso sem perceber que havia algo a mais escrito no verso. Na hora em que eu falava, ele usara o mesmo papel para comentar com Robertão, seu parceiro de trabalho, o que lhe chamara à atenção na primeira fila do auditório: “Belas pernas!”

Robertão era terrível. Do alto de seus quase dois metros de altura, sempre bem vestido, cabelos aparados, qualquer mulher que passasse diante dele era vítima do seu olhar de lascívia e sedução. E ai de quem desse algum sinal de retorno, por menor que fosse. Jaime, sabendo disso, ainda atiçava o instinto predador da fera. 

Não demorou uma semana e minha mulher, Magdala, ao arrumar nosso guarda-roupas, encontrou no bolso do paletó que usei na posse a tal folha de papel. Cuidadosa e desconfiada a vida toda, quis na hora saber a quem pertenciam as “belas pernas”. Dias depois, ao encontrar conosco num evento, Robertão morria de rir ao confirmar a versão do fato que contei.  

De humor contagiante, inteligente, onde estivesse só se ouvia a voz dele a declamar poemas, cantar suas canções prediletas ou a narrar as mais insólitas aventuras em que se metera. Mas nunca deixou de reconhecer em Ana, mãe de seus filhos Rafael e Robertinho, uma espécie de santa, retrato da resiliência ao fazer-se de cega, surda e muda, para poder viver em paz. Era como Nara Leão a cantar Chico:

“Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa (...)


Parece que foi ontem. Em 1996, trabalhávamos no Nordeste, ele no Ceará e eu, em Pernambuco, e por duas ou três vezes viajamos juntos para a Capital Federal, para participar de reuniões com a diretoria da empresa. Se algo me dava a tal inveja do bem era ver de perto a recepção calorosa de Seu Pelópidas e de Dona Carmelita ao filho amado, aos beijos e abraços na área de desembarque do Aeroporto JK.

Dez anos depois, na última sexta-feira de setembro de 2006, Robertão já morava em Brasília quando o destino lhe cravou no peito uma flecha que mutilou seu coração. Aconteceu um choque entre duas aeronaves, uma delas da Gol, que fazia o voo 1907. Saíra de Manaus e deveria ter chegado em Brasília às seis da tarde. Não chegou. A Força Aérea Brasileira já deslocara helicópteros para buscas na região da Serra do Cachimbo, no sul do Pará, na Floresta Amazônica. 

Havia 154 pessoas a bordo, inclusive Rafael, 28 anos, graduado em Ciências da Computação, primogênito de Robertão. E a área de desembarque do Aeroporto JK, em Brasília, palco de tantas cenas explícitas de amor e carinho, nunca mais seria a mesma.

Naqueles dias de chumbo e profunda dor, por mais que amasse a vida  música e poesia no meio —, Robertão não conseguia ouvir Zizi Possi cantar Chico:

“(...) Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi (...)”  

Parece que foi ontem, Robertão, meu velho parceiro de tantas jornadas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Eu confesso. E você?

Para quem trabalhou por mais de quatro décadas numa mesma empresa — hoje em dia, algo visto como falta de ambição profissional, de coragem ou até comodismo —, não chega a ser tão difícil listar algumas figuras especiais que encontrou pelo caminho. Pensei nisso e logo me veio à cabeça uma dezena delas.

Lembrei da "Arrogante", que sempre fazia questão de encurtar a altura entre a ponta do nariz e a do queixo. Só via os outros de cima para baixo e tinha sempre um sorriso de deboche para qualquer comentário mais simplório numa reunião.

Também recordei da "Bocão". Falava sem parar de si própria (o que já era péssimo) e dos outros (inaceitável). Mesmo porque quem se enfeitiça com o som da própria voz pode até parecer interessante por alguns minutos, mas soa ridículo daqui a pouco e insuportável meia hora depois. 

 "Curiosa" chegava cedo e antes mesmo do “bom dia” cuidava de remexer papéis em minha mesa de trabalho; em seguida, bisbilhotava a tela do computador em busca de alguma coisa, convicta de que fofoca vestida de informação lhe tornaria poderosa.

E o que dizer da "Franca"? Via-se acima do bem e do mal por ser sincera “demais” (sic) e orgulhava-se de falar tudo o que lhe vinha à cabeça despreocupada se machucava ou não aos outros com suas palavras duras e frias.

"Gaveta" empurrava tudo com a barriga para o dia seguinte ou para a próxima semana, sem o menor senso de oportunidade. Não se dava conta de que uma máquina lenta era até tolerável, mas um ser humano, nunca!

E a "Inconveniente" era capaz de interromper pelo menos uma reunião por semana, entrar na sala sem ser convidada, fazer dois ou três comentários fora do contexto, despertar alguma compaixão no começo e, logo depois, rejeição ampla, geral e irrestrita. 

Lembrei da "Medrosa"avessa a qualquer novidade porque valorizava o que “sempre deu certo”. Não queria saber de nada que provocasse algum distúrbio em sua insuportável rotina, mas se roía de inveja quando alguém ousava e se dava bem.

Tinha ainda a "Mouca". Muitas vezes não escutava nem aqueles que concordavam com seus argumentos. Esquecia de que mesmo sendo obrigada a filtrar bobagens, se não soubesse ouvir perderia por completo a capacidade de conviver com colegas de trabalho.

"Rígida" era cruel. Não sabia perdoar aos outros nem a si própria pelos erros que cometia, tampouco era capaz de reconhecê-los. Dificilmente aceitava um “não” porque se achava determinada, perseverante. Nem por um minuto se enxergava teimosa ou chata.

Já a "Tediosa" era de morte! Se enxergava a rolha do vinho servido na última ceia, incompreendida e subestimada por todos. Vivia pelos corredores a repetir piadas sem graça, rindo não se sabia de quê. 

E havia ainda a "Dissimulada", a "Mentirosa", a "Otimista", a "Pessimista"... Agora é fácil falar sobre elas com alguma pilhéria e a distância crítica que a maturidade permite. Se você me leu até aqui, é provável que tenha reconhecido muita gente que cruzou o seu caminho. Quem sabe até você mesmo, numa circunstancia qualquer. 

No palco de minha vida profissional, não posso negar, confesso que também usei essas máscaras. Como qualquer pessoa  —  exceto as perfeitas, que nunca as encontrei mas devem existir —, era mais uma naquele teatro absurdo e grotesco em que ora nos vestíamos de fantoches ou marionetes, ora de cordéis manipuladores.

Aos amigos e amigas que me aturaram por lealdade e respeito; e mesmo àqueles que me engoliram por conta das cadeiras em que sentei por acaso, confesso que cometi meus pecados e por isso mesmo lhes peço perdão. Peço ainda que rogai por todos nós aos céus  — de novo, afora os perfeitos — para que nunca mais necessitemos de máscaras para contracenar, por dinheiro nenhum nesse mundo! 

Depois que me aposentei, juro de mãos juntas que trouxe comigo apenas uma máscara que todo dia revejo no espelho, cada vez mais serena e desassombrada, com algumas rugas a lembrar as histórias que conto aqui. Enquanto as cortinas não fecham.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Zé de Brito


O velho José de Brito Jurema, quase um clone matuto e carrancudo do genial dramaturgo, palestrante e romancista paraibano Ariano Suassuna (1927 – 2014), desmontou de sua égua em frente à única agência bancária da cidade de Itabaiana-PB, dirigiu-se ao balcão de atendimento, chamou no canto um baixinho franzino que orientava alguns clientes e foi direto ao ponto:
— Vosmecê pode me dizer qual é sua intenção com minha filha?
— Calma, seu José, vamos conversar... — ponderou Agostinho, que, quatro anos mais tarde, se tornaria meu pai.
— Me disseram que vosmecê tá se enxerindo pro lado da menina. Ela só tem 16 anos, viu?
— Seu José, eu já iria mesmo procurar o senhor lá no sítio Jacaré para pedir a mão de Eudócia. Nós vamos nos casar assim que correrem os papéis no cartório.

Meu avô andava bravo com as conversas de comadres que ouvia no sítio "Jacaré", a oito léguas da cidade, dando conta de que sua filha, balconista numa loja de tecidos, namorava um bancário forasteiro (sete anos mais velho do que ela) que chegara havia pouco tempo para trabalhar com mais três amigos solteiros. 

Naquele dia, ordenhou suas duas vacas antes do sol nascer, bebeu uma caneca de leite quente direto das tetas e partiu disposto a tirar a limpo inclusive o boato de que o rapaz que arrodeava sua filha era casado.

Em 1954, pouco antes de mudar para a Paraíba, Agostinho se envolvera com uma moça em Caxias-MA, cujo cunhado, delegado de polícia, ao tomar conhecimento de que ele fora aprovado em concurso público para ingresso no Banco do Brasil, praticamente o obrigou a casar. Nem que o matrimônio se desse apenas diante do padre, para que sua cunhada não ficasse “na boca do povo”. 

Eu e meus irmãos mais velhos (Haydeé e Agostinho, filho) só soubemos desse episódio dali a 18 anos, em Maceió-AL, após a morte de nosso pai. Eudócia, nossa mãe, casada “de papel passado em cartório e tudo”, nos contou que
 poucas semanas depois de seu casamento apareceu em Itabaiana-PB uma mulher morena, bonita, dizendo a todo o mundo que Agostinho “já era dela”. 

Uma tia nossa, furiosa como uma gata parida quando tem cachorro por perto, de pavio curto feito seu pai Zé de Brito, procurou a moça na pensão em que se hospedara cuspindo maribondos:
— Desapareça daqui, sua cabrita, senão eu vou lhe dar uma surra com uma correia de máquina de costura que você nunca mais vai esquecer!

Mais tarde a moça foi vista embarcando na estação ferroviária. Disseram que partiu para os lados de Pernambuco, primeira escala antes de seguir no rumo da Bahia. E dela não mais se ouviu falar na Paraíba.

Embora meu avô fosse um pequeno ruralista inculto e tosco, de quem nunca se viu um gesto de carinho sequer para com os netos  exceto com meu irmão Agostinho Filho, no dizer dele o calmo “Neninha” —, é possível que eu tenha sido o único que lhe fez perder a paciência e sacar o cinturão de couro em duas oportunidades. 

Na primeira, meus pais haviam viajado até a capital paraibana, João Pessoa, deixando os filhos sob os cuidados dos avós. Curioso, enquanto meus tios escutavam pelo rádio a transmissão de Brasil e Bulgária, direto da Inglaterra, na abertura da Copa do Mundo 1966, achei de testar qual seria a reação de um peru caso inalasse a fumaça de um retalho de pano em chamas preso a uma vareta que amarrei em seu pescoço. 

Ao ver o "teste", o velho Zé de Brito correu atrás de mim em torno da casa-sede de taipa do sítio "Jacaré" na inútil tentativa de me dar uma surra. Quando sentou ofegante no alpendre, eu não parava de rir de sua falta de ar, certamente reflexo do cigarro de palha que vivia no canto da boca.

Na segunda vez, meu avô já estava sob tratamento médico em Patos-PB procurando resolver sérios problemas cárdio-pulmonares. No seu jeito naturalmente descortês, pediu água num dialeto estranho para quem, como eu, já lia e escrevia com alguma desenvoltura:
 Ô minino, vigie um caneco d’água mode matar minha sede!

De novo, caí na gargalhada e ele por pouco não me ensinou a respeitar os mais velhos da forma que aprendeu a educar seus filhos. Mas não aguentou a falta de ar, tossiu e voltou resmungando para a sua rede. Morreria alguns meses depois, já de volta ao “Jacaré”, torrão natal onde sempre viveu.

A vida seguiu e, com o passar do tempo, percebi que Dona Eudócia esquecera por completo que havia compartilhado com alguns filhos a história do casório no religioso por parte de meu pai. 

Eu já morava na Bahia, no começo dos anos 90, quando, em férias, ao visitá-la em Alagoas, provoquei:
— A senhora não vai acreditar no que me aconteceu! Outro dia fui procurado em Salvador, no trabalho, por uma mulher bonita, bronzeada, cabelos grisalhos, que jurava ser minha mãe. Tomei um susto danado! Não é que me achei parecido com ela...
— É mentira daquela sem-vergonha! Você é meu filho e nasceu um ano depois de Haydeé — atalhou Dona Eudócia. 
— Calma, mamãe, é gaiatice minha! Esqueceu que nos contou que papai era casado no religioso quando se mudou para a Paraíba?

Ela ainda quis pegar no cabo da vassoura para me botar pra correr da sala de jantar, mas, digamos assim, percebeu que tinha agora diante de si um pai de família sério, trabalhador, que já contribuía com sua parte para o nosso belo quadro social. 

Do moleque de antigamente restara apenas o que minha avó, Dona Carmelita, “Mãe de Jacaré”, questionava nos meus primeiros anos de vida: 
— Repare mesmo, Doça, esse menino é cheio de marmota! A quem ele puxou? 
— Não sei, só sei que ele é assim... — diria Chicó, personagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, se visse a cena. 



quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A arte de viver da fé

A banda Os Paralamas do Sucesso apresentou-se no começo de outubro de 2019, pela quarta vez, no Rock in Rio. Com 37 anos de estrada, o grupo ganhou visibilidade ao participar da primeira edição do festival, em 1985, e segue até hoje com sua formação original (Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone) encantando velhas e novas gerações com uma mistura bem balanceada de rockreggae e outros ritmos latinos. 

Conheci Herbert Vianna, vocalista e líder do grupo, no final do ano 2000, depois de um espetáculo maravilhoso realizado em Salvador. Elegante e bem-humorado, tinha nas mãos quando nos recebeu (minha filha e eu) uma taça de champanhe e um acarajé, em perfeita harmonia com uma noite morna na Bahia de todos os santos “e de quase todos os pecados”, como diz um velho amigo meu. 

Acabara de lembrar à plateia que “... a cidade, que tem braços abertos num cartão-postal, com os punhos fechados da vida real nos nega oportunidades e mostra a face dura do mal: Alagados, Trenchtown, Favela da Maré. A esperança não vem do mar nem das antenas de tevê: é a arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê...”

Nem sabia que Trenchtown é uma favela jamaicana na periferia de Kingston, capital da Jamaica, onde nasceu e cresceu Bob Marley, maior ícone do reggae. Mas já conhecia bem de perto o forte cheiro de esgoto de Alagados, lugar escolhido por Irmã Dulce para iniciar seus trabalhos assistenciais.

Naquela noite, a música pulsante sacudiu de quarentões a adolescentes, tocados com ritmos e letras de canções como: “Aonde quer que eu vá”, “Alagados”, “Caleidoscópio”, “Ela disse adeus”, “Lanterna dos afogados”, “Meu erro”, “Óculos”, “Tendo a lua”, “Vital e sua moto”, entre outras.

Em menos de seis meses, numa tarde de domingo no começo de 2001, fiquei chocado com a notícia de que Herbert e sua mulher, Lucy Needhan-Vianna, haviam sofrido grave acidente com um ultraleve em Angra dos Reis, litoral sul do Rio. Ele teria perdido o controle da aeronave ao tentar executar uma manobra simples para quem era expert no assunto. Na queda, ficou paraplégico e Lucy, presa no cinto de segurança, morreu afogada.

Fui reencontrá-lo 13 anos depois, em Brasília. O semblante triste deixava nítido que as perdas ainda doíam muito. Só a desmedida paixão pelo que sabia fazer como poucos o mantinha conectado à vida. 

Traduziu bem essa conexão ao declarar numa entrevista algum tempo depois: “na música você consegue canalizar com igual intensidade alegrias e tristezas profundas. Um exemplo disso é quando eu, através de uma canção que a gente tem, digo: ‘Olhos fechados pra te encontrar, não estou ao seu lado, mas posso sonhar. Aonde quer que eu vá, levo você, no olhar’. 

Lucy, o grande amor de sua vida, deve ressuscitar nessas horas e o encoraja a sonhar, seguir adiante. É a arte a viver da fé, da crença de que ela está bem ali, só não vê quem não quer.

Toda tragédia como a que vitimou Herbert e sua mulher nos leva a pensar sobre quão fugaz é a vida. E mesmo assim, é praticamente impossível a qualquer um de nós viver apenas o presente, sem trazer os fardos pesados de ontem para a sala de estar de hoje e sem criar a falsa ilusão de que amanhã tudo poderá ser mais leve.

Penso nessas coisas e noto que pouco aprendi sobre a arte de viver da fé. Nunca me convenci, por exemplo,  de que  “querer é poder”. Para mim, isso não passa de um clichê surrado. Perguntem aos filhos da agonia que sobrevivem em Alagados, Trenchtown ou na Favela da Maré se querer é suficiente.

Eu bem queria nunca mais acordar de mau humor. Ser mais tolerante com quem pensa diferente de mim. Viajar sem pensar, desde a partida, no dia da volta. Ou discordar de quem diz que a morte nada mais é do que cair num sono profundo e não acordar nunca mais. 

Eu bem queria acreditar que o céu e o inferno não são aqui e agora, a partir do que faço ou deixo de fazer a cada momento, desde que acordo e decido se vou ao banheiro descalço ou de sandálias. Se vou caminhar logo cedo com o que trago dentro de mim da noite anterior ou se me empanturro de novas notícias na internet ou tevê.
 
Na arte de viver da fé, querer é pouco. Quase nada. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Asas cortadas no ninho

Meus irmãos não me deixam mentir e podem confirmar que um dia fui eleito prefeito da rua em que morávamos. Coisa de criança. Isso aconteceu em 1966, em Patos, Sertão paraibano, pouco depois da intensa cobertura das eleições estaduais, envolvendo João Agripino (UDN) e Ruy Carneiro (PSD), realizada pela Rádio Espinharas.

A apertada disputa voto a voto – João Agripino venceria com menos de 1% de vantagem – no final de 1965 empolgou o município e tocou fogo na meninada da Rua Bossuet Wanderley, a disputar quem juntaria mais “santinhos” dos dois candidatos. Mais tarde, parte desses papelotes serviriam de cédulas na votação para prefeito da rua. Para fazer o quê? Não sei. O que fazer depois de eleito nunca foi importante no universo político deste país.

Ninguém queria enfrentar Lindomar, chamado de “Lindo”, moleque dentuço, brigão, metido a intimidar crianças menores, filho caçula de Seu João da perfumaria. Seria derrota líquida e certa de quem se atrevesse a encará-lo em todos os sentidos. Vivia a imitar o lutador de luta-livre Ted Boy Marino (1939 – 2012), fazendo das esquinas ringues de brigas de rua no auge do “telecatch” na tevê.

Mas se não houvesse disputa não teria graça alguma. Alguém cogitou minha candidatura e a vaidade, por certo, me fez entrar na brincadeira. Acho que só não queria perder de goleada, porque a derrota era quase inevitável. De cerca de 21 moleques eleitores, na largada uns 15 declararam apoio a Lindo.

Zé Augusto, vizinho meu, estava quieto no seu canto a observar a paisagem, sentado no meio-fio junto a um poste de madeira. Era respeitado por ser mais velho, estudioso, um líder pré-adolescente. Foi o primeiro a quem procurei. Mas dele logo ouvi que não poderia pedir votos aos amigos porque não queria encrenca com Lindo. 

Ao pé do ouvido, porém, cochichou que me ajudaria no que pudesse. Lembrava, certamente, de que eu o flagrara alguns dias antes, por cima do muro do quintal, se esfregando numa cozinheira que trabalhava em sua casa. Se sua mãe soubesse disso a encrenca seria outra. E vejam que nem existiam smartphones para registrar a ocorrência. 

Já com os irmãos Cleto e Flávio, filhos de um conhecido advogado na cidade e amigos de Lindo, com quem partilhavam o hábito de fumar tocos de cigarro atirados ao chão que encontravam pelas ruas, devo ter sido mais explícito. Vira os dois aprendendo safadezas com o vigia de uma obra numa esquina nos fundos do Colégio Cristo Rei. Devo ter dito algo assim: 
– Votem em mim e podem dizer que votaram nele; fica só entre a gente...

Júnior, filho de um dos empresários mais ricos da cidade – dono da concessionária Willys nos anos dourados da Rural, Pick-Up, Jeep e Aero-Willis – foi outro que acabou trocando de lado depois que levou uns murros de Elpídio, irmão mais velho de meu adversário. Não tive nada com a briga mas confesso que podia separá-los e cruzei os braços, a pressentir que lucraria com a troca de sopapos. 

No dia da abertura da caixa de papelão improvisada como urna para votação secreta, veio a surpresa: fui eleito por um mísero voto de diferença, para desespero de Lindo, que chegou a exigir a recontagem dos votos. Era tarde. 

No final da apuração, uns gritavam aqui e outros acolá quando  surgiu na janela Dona Eudócia, minha mãe, bastante aborrecida com a algazarra: 
– Hayton, venha já pra casa! Saia do meio desses moleques senão vou contar pro seu pai que você só quer viver no olho da rua! – esbravejou. Chorei de raiva e constrangimento mas tive que renunciar ao cargo sem tomar posse. 

Mudaria com minha família para Alagoas no começo de 1968, acompanhando meu pai em sua vida cigana como funcionário do Banco do Brasil. Nunca mais ouviria falar daquela turma até voltar a Patos, 35 anos depois, quando soube que alguns dos meninos também haviam partido... para sempre. Envolvidos com arruaças e drogas, morreram em conflitos entre quadrilhas ou com a polícia.

Ao passar na praça Getúlio Vargas, onde fica o Hotel JK, lembrei que fora ali, numa escapulida de casa na boca da noite, enquanto todos jantavam, que os amigos de rua me convenceram a "ser macho" e beber pela primeira vez uns goles de ”cuba-libre“, mistura de rum Bacardi, Coca-cola e gelo que me dá ânsia de vômito até hoje.

Disse outro dia, e repito neste instante, que estaria até agora sob penitência se tivesse contado ao padre todos os meus pecados antes da primeira e única comunhão. Dei sorte. Pais farejam no ar certas coisas – como cheiro de terra molhada em plena estiagem – e tratam de cortar as asas de seus filhotes ainda no ninho. Parecem bruxos.


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

O rosto de Chico que guardei

Tem gente que é como cana-de-açúcar: mesmo esmagada, reduzida a bagaço, é doce, não consegue ser amarga. A cabeça está sempre fria, o coração quente e as mãos estendidas. Chico Gonçalves, que conheci na Bahia há quase três décadas, era assim. Nunca mais nos encontramos, mas guardei na memória sua imagem de companheirismo e generosidade.

Chico Gonçalves 
Julho de 1990. Tudo começou com um telex da direção geral do Banco do Brasil comunicando minha promoção, da pequena agência em Porto Calvo, interior alagoano, para o segundo escalão na hierarquia da empresa no maior estado do Nordeste.
– Ele bebeu ou ficou doido de vez... – comentara, dois dias antes, ao chegar em casa para o almoço, sobre consulta feita por Nivaldo Alencar, novo superintendente estadual da Bahia.
– O que aconteceu? – quis saber minha mulher, desconfiada de que pudesse estar a caminho uma nova mudança.
– Me ligou perguntando o que achava de ser indicado para o cargo de superintendente adjunto. Claro que topei na hora, mas pode ser trote!

Não era. O País ainda curava a ressaca das primeiras medidas da chamada Era Collor (1990 – 1992). E o banco havia decidido implantar projeto que chamara de Novo Rosto. Pretendia mudar radicalmente a cara para melhorar sua imagem no mercado global. Só se falava em reengenharia, downsising, outsoursing e outros remédios para os problemas  da organização.

Centenas de agências tiveram seus quadros reduzidos, gerando enorme quantidade de pessoas sem localização definida. A histórica estabilidade do emprego entrava em turbulência. Sem parâmetros de avaliação claros, da noite para o dia gerentes foram rebaixados de nível ou simplesmente coagidos a aposentar, enquanto outros eram promovidos a unidades melhores, com ganhos maiores, alguns sustentados apenas no compadrio que sempre existiu nas relações corporativas. 

Ao desembarcar em Salvador, aos 32 anos de idade, evidente que fazia ideia do peso da cruz que recairia sobre meus ombros. “É preciso ter dúvidas. Só os estúpidos têm uma confiança absoluta em si mesmos.” (Orson Welles). Mesmo assim, arregacei as mangas e fui à luta. Primeiro ato: procurar apartamento para morar.

Dia seguinte, já no novo ambiente de trabalho, era apresentado a Chico Gonçalves, a quem iria substituir e que fora afastado do cargo sem motivos concretos para a troca. Falou-se na sede do banco em “falta de perfil ”, “já deu o que tinha pra dar” e outras tolices sem nexo. Conversamos longamente, desde as circunstâncias de sua saída até a transição no trabalho.

Uma hora depois, se muito, ouvi dele algo inesperado e marcante: ao supor que eu teria dificuldades em conseguir fiador para o contrato de locação do imóvel que iria alugar, Chico prontificou-se a afiançar dizendo que fazia questão de dar a mão a qualquer colega que estivesse chegando à capital baiana sem conhecer ninguém.

Notei que acreditara quando lhe disse que, para mim, a indicação de meu nome teria sido para preencher cargo vago. Pensei: o que leva um homem, ainda sangrando, sentindo-se injustiçado, a não esmorecer em sua prontidão para servir ao próximo? De quantos “chicos” precisávamos para mudar o mundo?

Nem foi necessária a fiança. Mas perdeu completamente o sentido o velho conceito que dizia que as pessoas passam e as instituições ficam. Nenhuma instituição é eterna; todas desaparecem com o tempo. As pessoas, sim, perpetuam-se – em pensamentos, palavras, atos e omissões –, na tapeçaria de ambições e frustrações de que é feita qualquer grande empresa.

Em menos de um ano o vento sopraria noutra direção e as velas do barco foram reposicionadas. Foram trocados os dirigentes que implantavam no banco o Novo Rosto e Chico Gonçalves resgataria o cargo que ocupava.

Eu voltaria para Alagoas pouco tempo depois para administrar uma pequena agência na periferia de Maceió, no bairro Tabuleiro dos Martins. Na viagem pela BR-101, lembro de ter ouvido no toca-fitas, dentre outras canções,  Disparada, do paraibano Gerado Vandré. “... mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo, e nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando até que um dia acordei...”

Passados nove anos, retornei à Bahia em junho de 1999, agora nomeado superintendente estadual. E logo no primeiro mês fui convidado a participar de um almoço com funcionários aposentados, onde reencontraria o semblante fraterno, o novo rosto de paz e bem-estar de Chico Gonçalves, em seu merecido “dolce far niente”.

Pude então resgatar o que acontecera naqueles dias de incerteza e agradecê-lo de novo pela generosidade quando ali cheguei pela primeira vez. E me veio à cabeça outra vez os versos de Vandré: “... porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente...”

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Cocorotes

Sei que fui um menino arteiro, buliçoso, gaiato e outros adjetivos que quisessem dar, apesar de nunca ter preocupado meus pais em termos escolares. Sei também que eles não souberam metade do que aprontei quando criança e que nem devo contar agora para não servir de mau exemplo para os netinhos.

Estaria até hoje sob penitencia se tivesse contado ao padre todos os meus pecados antes da primeira e única comunhão na capela do Colégio Cristo Rei, em Patos(PB). Mas tudo me leva a crer que os cocorotes que colecionei em minha agitada cabeça purgaram todos os pecados, veniais e mortais, até a terceira geração de meus descendentes diretos.

Para quem desconhece o termo, cocorote (cascudo ou croque) é aquela pancada seca no cocuruto, com o dedo médio saliente da mão fechada de quem bate. Provoca uma dor lancinante, capaz de escurecer a vista e fazer o moleque gemer por uns cinco minutos. Dói mais do que topada no dedo mindinho. E, no meu caso, havia agravante: cocorote quase sempre vinha “com sobremesa” – beliscão ou puxão na orelhas, a depender da natureza do delito.

Cocorote, beliscão e puxão de orelhas eram considerados pequenos castigos para traquinagens de menor relevância como arengar com um irmão e ser alvo de delação premiada por parte de outro, fazer algazarra e acordar o pai no cochilo após o almoço ou não parar quieto um minuto sequer enquanto os cabelos eram penteados pela mãe, coitada, esbaforida em seus múltiplos afazeres.

Por falar em cabelos, a tolerância doméstica com castigos aparentemente brandos estimulava excessos até de pessoas alheias à casa, feito certos barbeiros. Como se não bastasse o corte militar, algumas vezes o cangote ardeu por conta da navalha passada às pressas, enquanto meus outros três irmãos (Nena, Lica e Dula) aguardavam o martírio mensal. Deve ser por isso que nunca esqueci a marca “Ferrante”, cunhada no pedal das cadeiras da barbearia.

De dentistas, cruz-credo, nem tolero lembrar. Desconheço sessentão que tenha passado a infância no interior e que ainda possua a dentição original em perfeitas condições. Já fomos a nação dos desdentados. O número de pessoas que não possuía sequer um dente da boca era enorme, talvez porque não se tinha a exata noção daquilo que mais provocava pânico na criançada: doido na rua a jogar pedras, “papa-figo” e dentista com a broca na mão, sorrindo, a dizer que não iria doer nada.

Ainda bem que, em 1964, ano em que comecei a cursar a escola primária, já havia sido abolido o uso da palmatória – exceto em algumas delegacias, claro! – introduzido no País pelos jesuítas como forma de doutrinar os índios resistentes à aculturação. A prática continuou durante a escravidão como um dos castigos aplicados aos desobedientes. Quando a educação por aqui ainda engatinhava, no século XIX, a palmatória ganhou sobrevida na escola, pelo menos até o final dos anos 50.

Sobrevivi a cocorotes, beliscões, puxões de orelhas, navalhadas no cangote, doidos de pedra de tudo que era jeito, mas continuo sob o miserável risco de tortura da infeliz da broca dental. Fico calado para não parecer um velho covarde, porém toda vez que vou ao dentista, mesmo que seja apenas para fazer uma limpeza de rotina, penso numa anestesia geral.

Vai que durante a assepsia resolve cutucar os caquinhos e descobre que precisa refazer alguma obturação antiga. Sem anestesia geral, juro que prefiro um cocorote com “sobremesa”. Sei que também escurece a vista, mas dói menos.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

As coisas se arranjam

Na última frase da carta que deixou para sua mulher, Eudócia, antes de tirar a própria vida em maio de 1972, Agostinho lhe fez um compreensível e derradeiro apelo: “...Se puder viver sem outra companhia que não nossos filhos, faça-o.”

Não pôde. Aos 33 anos de idade, nove filhos para criar – aos quais, a bem da verdade, não deixaria nada faltar –, seria injusto negar àquela mãe o direito inerente ao “se”, exigindo-lhe que também renunciasse à vida. 


Se fosse comadre de Clarice Lispector (1920 – 1977), talvez tivesse ouvido algo assim: "A gente tem o direito de deixar o barco correr. As coisas se arranjam, não é preciso empurrar com tanta força..." 



Meses adiante conheceria Manelito, 36 anos, desenhista e publicitário, com quem viveria por 14 anos. Como se não bastassem os filhos que tinha para criar, trouxe da Paraíba para Alagoas sobrinho que fora abandonado pela mãe – clássico “toma que o filho é teu!" ocorrido com seu irmão Olívio. O instinto maternal ainda pulsava firme, apesar da ligadura de trompas.

Ciúmes e cerveja em excesso, por parte de Manelito, esgarçaram a relação. Acabaram separados. Ele até tentou reatar mas viu que não dava mais. Pouco antes de morrer, com diabetes descontrolada, pediu para revê-la mais uma vez e conseguiu. Já não havia paixão, mas compaixão. 


Quando seu filho Hélio (Lica) faleceu, em 1991, vítima do rompimento de um aneurisma cerebral, achei que ela, aos 53 anos, desabaria. Para mim, até hoje não sei como uma mãe aguenta sepultar um pedaço de si sem enlouquecer, com a alma dilacerada.


Ela ficaria viúva mais duas vezes. De Francisco, com quem conviveu apenas 12 meses, até ele sofrer infarto irreversível. E de Jailton, romance que não durou mais que seis meses. “O coitado já andava com o coração bem fraquinho”, ela disse. 


Se fosse vizinha de Cora Coralina (1889 – 1985), dela poderia ter ouvido: "Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras. E faz doces. Recomeça." 

Este mês completa 81 anos. Mora sozinha por opção, próximo à orla de Jatiúca, em Maceió, onde cuida de sua própria alimentação e faz caminhadas ao entardecer de três a quatro vezes por semana. Vaidosa desde menina, não vai nem à portaria do prédio sem antes retocar o batom e ajeitar os cabelos.

Não bebe nem fuma, mas adora ouvir e dançar boleros, sambas e valsas. Se existe algo que lhe chateia é gripar e não poder pegar seu carro e sair aos sábados e domingos a passear com Haydeé, filha mais velha. 

Do futuro, não espera muita coisa. Nada além de continuar a receber sua pensão todo dia 20 e ser bem assistida pelo plano de saúde que Agostinho lhe deixou. Espera ainda usar um vestido bem bonito e ser porta-alianças no casamento de Marina, 13 anos, primeira de 23 bisnetos.


Se fosse amiga de Cecília Meireles (1901 – 1964), eu diria que andaram orando juntas: "Senhor, fazei de mim como as ondas do mar, que fazem de cada recuo um impulso para ir mais adiante." 

Nunca leu Cecília, Clarice ou Cora Coralina. Nem precisou para ser feliz. Aprendeu cedo com o rio Paraiba a contornar pedras e seguir no rumo do mar. Livrou-se de uma vida sem graça, feita de amargura e ressentimento.