Ela me contou que, pouco depois da noite de Natal do ano de 1995, ao ouvir um barulho estranho na porta da frente de sua casa, foi até lá e deu de cara com dois homens desconhecidos. Ficou preocupada com eles:
— O que cês tão fazendo aí fora nesse sereno? Entrem que essa friagem não vai fazer bem.
Aos 90 anos, quase cega pelo avanço da catarata, vivia num casarão antigo e comprido cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam sua casa de porta a porta.
Ilustração: Dedé Dwigth |
Quando estive na região por quatro dias avaliando o possível impacto do fechamento de agências bancárias, não foram duas ou três vezes em que a ouvi perguntar aos que passavam:
— Tá com fome, meu filho? Vá lá na cozinha, fale com minha neta, coma alguma coisa, beba um caneco d’água... Puxe uma cadeira, descanse um pouco...
Vi ainda, numa manhã, acertar contas com o leiteiro. Quem pagava e quem recebia não tinha a menor intenção de enganar ninguém:
— Quanto tem aí? — Ela dizia, ao repassar uma cédula.
— Dez...
— E agora?
— Inteirou vinte... Faltam três.
— Pronto! Pegue mais essa nota.
— Sobrou, comadre. Tá aqui o troco.
Na noite em que os desconhecidos apareceram em sua porta, após acender a luz da sala e convidá-los a sentar, o tom teria sido maternal:
— Estão imundos! Precisam de banho. Venha cá, meu filho, pegue toalha e sabonete, vá pro banheiro. Cuidado para não escorregar!
Em seguida, acariciou a cabeça do outro:
— Coitado... Tá mortinho de fome. Vou esquentar a sobra do jantar. Tem guisado de galinha e macaxeira.
Eles entreolhavam-se sem saber o que dizer quando ela quebrou o silêncio:
— Cês vão dormir aqui na sala, um no sofá e o outro naquela rede. Olhe aqui o lençol. Agora vou rezar no meu quarto antes de pegar no sono. Boa noite!
Era madrugada quando eles acordaram com o bater de asas e o canto do galo no quintal. Na cozinha, a mesa já estava posta: cuscuz, pão, ovos e café com leite. Um quis abreviar a prosa:
— Quer dizer que a vó nem imagina o que a gente veio fazer aqui?
— Deixe de conversa fiada, filho... Deus castiga! Sente aí, coma e mais tarde cuide de procurar trabalho que é o melhor que cê faz. Mas bote chapéu que o sol anda um horror!
Do jeito que chegaram, partiram. Nunca mais foram vistos na região.
— Esses moços são mal agradecidos. Somem no mundo e nem se despedem da gente. Que coisa, hein?! — queixava-se, a lembrar do ocorrido meses antes.
— A senhora, pelo menos, procurou saber o nome deles? — indaguei, a imaginar o que poderia ter acontecido com ela e a neta naquela noite.
— Carecia mesmo? Era Natal, meu filho... — respondeu, com os olhos opacos e o sorriso mais inocente do mundo sobre o rosto emagrecido.
"Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir", diria Manoel de Barros (1916 — 2014).
Fui-me embora impressionado com a generosidade dessas mulheres sertanejas. Querer compreender certas coisas só dificulta ainda mais a vida miúda que a gente leva.