Postagens

Coisas profundas

Imagem
Duas semanas antes do Natal de 1995, tia Ritinha (era assim que a chamavam) me contou que ouviu um barulho estranho na porta de casa, por volta das nove da noite. Foi até lá e deu de cara com dois desconhecidos. Preocupou-se com eles: — O que cês tão aí no sereno? Entrem que a friagem não faz bem.    Quase cega pelo avanço da catarata,  88 anos, ela tocava a hospedaria (com a ajuda de sua única neta) num casarão antigo cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam o casarão, de porta a porta.      Mário Édson (@meatelierdafotografia) Sua neta, cerca de 30 anos, baixinha, simpática, tinha compulsão de limpeza e não podia ver uma coisa fora do lugar. Fora criada pela avó. Perdera a mãe havia muito tempo numa rara enchente do rio, ao tentar atravessá-lo pouco antes de uma tromba d’água que devastou em qu

Cobras, lagartos e mercadores de ilusões

Imagem
Não entendo quase nada de marketing. Portanto, as considerações a seguir são feitas por um aprendiz esforçado e metido, jamais um craque no assunto. E creio que minha condição é partilhada pela maioria de vocês. Feito torcedores de mesa de sinuca, temos teorias que julgamos perfeitas, mas, com o taco nas mãos, o buraco é mais apertado.   Na busca por notícias na internet, esbarro a toda hora em links que atiçam a mais elementar carência dos seres vivos: a busca pelo bem-estar. Surgem mais ou menos assim: “Esta fruta poderosa pode fazer sua glicose baixar para...”, “Falhando na hora H? Isso pode te ajudar...”, “Sofrendo com zumbido no ouvido? Temos a solução...”  “Uma dose todas as noites para ter uma próstata de criança...”.   A captura da suposta necessidade dos internautas acontece com o uso dos chamados  cookies  (arquivos que os sites hospedam em computadores e celulares, indicando que o usuário já navegou sobre determinadas páginas da rede). É a técnica chamada de  retargeting  (e

Só um cafezinho, vai...

Imagem
Não sei de você, mas, para mim, um cafezinho após o almoço tem o atributo mágico de arrumar as gavetas internas onde guardo minhas conquistas e frustrações. Põe cada pedaço no seu devido lugar, separando frios e quentes, doces e amargos, rígidos e flexíveis, antes do cochilo dos desocupados.    Ilustração: Dedé Dwight   Outro dia me apareceram uma tontura e um zumbido nos ouvidos. O médico me tranquilizou dizendo que possivelmente se tratava de “um transtorno vestibular”. Achei que estivesse de gozação, dado que o último concurso do tipo em que me meti tem quase meio século. Mas ficou claro, logo depois, que falava de um conjunto de pequenos órgãos dentro do ouvido interno (sistema vestibular), responsável inclusive pela manutenção do equilíbrio do corpo. Da mente, nem se atreve!    Confirmado o diagnóstico com exames complementares, o médico me encaminha a uma fisioterapeuta para fazer "reabilitação vestibular". Ela, então, de primeira pontua que seria muito importante para

Bolas de Natal

Imagem
Andam de mãos dadas pela primeira vez a Copa do Mundo e o Natal. Só os deuses do futebol (e os anjos das cabines de VAR) sabem aonde isso vai dar, inclusive para alemães, belgas, dinamarqueses, espanhóis e uruguaios, que já ficaram pelo caminho. Algumas imagens têm lugar cativo na tela da memória de milhões de crianças   que, ao redor do planeta, amam uma bola de futebol acima de todas as co isas.      Há muito tempo, ao ganhar  de presente de Natal minha primeira bola,  senti pelo peso do embrulho – com disfarçada frustração –  que não era daquelas de couro com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la da água, da lama, dos arranhões no campinho de terra batida ou no calçamento da rua.   Ilustração: Dedé Dwight Era de plástico (vinil). Doía quando batia nas costelas, na barriga ou nas  coxas, sem falar de outras partes em franco desenvolvimento. Corri  pelas calçadas da imaginação encarando adversários, tentando fintá-los, um a um, até a esquina.   Finta é aquele

Corações indomáveis

Imagem
Quando menino, tinha medo de almas. Não de “anjinhos”, como se dizia no Sertão paraibano, onde todo ano centenas de crianças eram enterradas antes dos sete anos de idade. A diarreia e a subnutrição deixavam-nas só ossos, olhos e orelhas. Não corria esse risco. Filho de bancário, dispunha o suficiente para viver sem assombrações. Medo, mesmo, só de almas penadas de adultos.   Fui daqueles que viviam com o nariz escorrendo pelas calçadas das ruas onde morei, nu cintura acima, procurando o que aprontar enquanto não estava comendo, dormindo ou na escola. Ser um de nove irmãos de uma família remediada me deu o bônus (e o ônus) da quase invisibilidade perante uma mãe espremida por afazeres domésticos.   Álbum de família     Não sei de onde vinha o medo. Sei que, toda noite, antes de pegar no sono, tremia debaixo do lençol numa rede. No quarto iluminado apenas pelo luar, implorava aos céus que não me aparecessem com seus inconfessáveis propósitos.     Mas nunca esbarrei em almas nas madrugada

Veja bem...

Imagem
Sexta-feira passada, conversando numa live com Dedé Dwight, que ilustrou com belas imagens o livro “Frestas” ( Fontenele Publicações ), ele me perguntava sobre o que me levou a escrever e compartilhar textos neste espaço criado há quatro anos, depois de 40 anos no ofício bancário.     Dona Artemy, folheando "Frestas" Respondi ao filho de Dona Artemy que não sou (nem pretendo ser) um especialista em gramática ou em técnicas de redação. Talvez, por ter prestado bastante atenção ao que escreviam alguns colegas de trabalho, e ter sido leitor compulsivo de  O Pasquim  (em especial dos textos de Millôr Fernandes, Henfil, Ivan Lessa, Jaguar e Paulo Francis), aprendi a redigir melhor, ainda que tudo continue muito intuitivo, como “tocar de ouvido” sem conhecer teoria musical.   Reconheço que li menos do que deveria, mas tenho visto e ouvido lugares incomuns,  estranhas construções mesmo a olhos e ouvidos menos exigentes como os meus. E antes que a comunidade linguística me corte o p

A caipirinha derramada

Imagem
Você já parou pra pensar como seria uma  Disneyworld  por aqui? Talvez algum religioso endinheirado já tenha pensado nisso, mas faltou fé no retorno da grana a ser aplicada e optou por investir em campanhas políticas de terceiros. Ou viu que não seria fácil convencer seguidores, por mais fanáticos que sejam, a reajustarem o dízimo.   Titular do delírio etílico, escolho o local onde se desenrolaria a história: aquele que no período colonial era chamado de Nova Lusitânia ou Capitania de Pernambuco do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, abrangendo os territórios dos atuais estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.    Seria entre as praias de Pajuçara e do Gunga, onde você, ao pôr do sol, mergulharia em águas mornas, degustando uma caipirinha socada no açúcar mascavo, com tira-gosto de agulhinha frita, ouvindo pérolas instrumentais da obra de Djavan como “Oceano”, “Só eu sei”, “Um amor puro” ...    Claro que Mickey e Pato Donald não seriam os personagens

O direito de cochilar

Imagem
Eu não notei, a princípio. De fato, ele tinha atributos para virar um estelionatário de primeira grandeza, como tanta gente que circula por aí leve, livre e operante. Poderia, a vida inteira, desfrutar de grana, poder e glória. Ao pé da letra, estelionatário é aquele que consegue para si e os seus uma vantagem ilícita, em prejuízo alheio, via artifício ou outro meio fraudulento qualquer, de emissão de cheque sem fundos a falsificação de documentos.  Se descoberta, a punição prevista no artigo 171 do Código Penal provoca riso e estimula a reincidência: apenas cadeia de um a cinco anos e multa, irrisória, muitas vezes.   Quando criança, além de preferir cadernos de caligrafia a tabuadas, ele curtia desenhar a mão livre. Reproduzia quadrinhos extraídos de gibis de  Tarzan, Tex Willer e Tio Patinhas, usando   lápis e folhas de caderno de desenho, sem borracha. Mais adiante, captando expressões faciais de fotografias.    De tanto ver o pai assinar papéis e fichas gráficas que levava para ca

Melhor deixar pra lá

Imagem
Outro dia dei com os olhos numa notícia na internet que me deixou bastante curioso: “Wanessa canta música romântica de Katy Perry para Dado a caminho de retiro tântrico”.   Antes de saber o que seria retiro tântrico, quis conhecer melhor as figurinhas citadas e descobri que Wanessa, 39 anos, é cantora e compositora, cria da dupla Zezé de Camargo e   Luciano . Dado, 42 anos, de profissão incerta,   ignorada e não sabida,   é filho de grandes artistas: Carlos Eduardo Dolabella (falecido) e Pepita Rodriguez.  E Kate Perry, bem, não vem ao caso. Ela só entrou no caso com a música romântica.   “Mais não informo porque não me foi perguntado”, diria o sábio Google , deixando nas entrelinhas, entretanto, que o mencionado garotão puxara cadeia por conta de agressão física e insultos a ex-esposas. Na aldeia do culto à misoginia, não falta quem diga que elas fizeram por merecer.  Ou que ele tem boa  chance de uma carreira política de sucesso.   Logo  me veio à cabeça coisas indizíveis sobre o pro