quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Cinzas de uma Quarta-feira

Nestes catárticos dias de Carnaval pós-Covid-19, lembrei-me do líder político russo Vladmir Putin, que vira e mexe ameaça apertar o botão e deflagrar a terceira e definitiva guerra mundial, determinando o fim da aventura humana na Terra.

Fotografia: Dedé Dwight


Não sei a quem pretende assustar. 

 

Dos mais velhos, como eu, corre o risco de ouvir algo como “já aperta tarde!”. Afinal, ficar por aqui assistindo à onda de catástrofes naturais (ciclones, dilúvios, epidemias, incêndios, deslizamentos de barreiras, terremotos etc.) e antinaturais, como irmãos famintos na fila do osso na porta de açougues em busca de sobras dos mais favorecidos, talvez o confronto generalizado nos poupe inclusive da tristeza do noticiário.

 

Dos mais novos, nem sei se ouvirá alguma coisa, dado que têm preocupações mais substantivas (para eles!) como o alucinógeno da hora, a coreografia da vez ou ouvir de novo “Zona do Perigo”, o pagodão de Leo Santana que me tortura os ouvidos há dias, mesmo de janelas fechadas.

 

E tem ainda a turma da meiuca, faixa intermediária entre 35 e 55 anos, que está na correria, acasalando, procriando, tentando contornar diferenças com seus rebentos em intermitente ebulição hormonal.


Na expectativa de ascensão profissional (ou maiores lucros), essa turma também não está nem aí para o possível Armagedom – segundo a Bíblia, a batalha final de Deus contra a sociedade humana injusta e perversa.

 

Ao lembrar de Putin, me veio à cabeça, como contraponto, o saudoso Lobão, um ser iluminado que tornou inesquecível, há 22 anos, uma Quarta-feira de Cinzas como hoje.

 

 

Lobão, Carnaval e Cinzas

 

Apareceu lá em casa em outubro de 1995. Meus filhos haviam convencido o avô a "financiar" a compra de um filhote poodle. Na loja, optaram pelo mais quieto e frágil da ninhada. “Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome pra lhe dar”, diria Chico Buarque. Mas nada que amor, carinho, vacina e ração de boa qualidade não pudesse resolver.

 


Quando fomos morar em Pernambuco, em 1996, a cada duas semanas levávamos Lobão – homenagem ao vilão de “Os Três Porquinhos”, de Walt Disney – para a praia de Ipioca, em Alagoas, onde filhos e sobrinhos o desafiavam simulando afogamento, ao que aquele magricela corajoso reagia nadando contra a maré até “resgatar” todos os seus “amigos”.

 

Na véspera do Carnaval de 2001, já estávamos morando no Planalto Central, depois de nova temporada na Bahia, quando minha mulher tanto insistiu que embarcamos para Recife para assistir ao “Galo da Madrugada”, que prometia arrastar um milhão de foliões pelas pontes e ruas da cidade no dia seguinte, Sábado de Zé Pereira.

 

Deixamos Lobão em um canil no Lago Norte até a Quarta-Feira de Cinzas, quando voltaríamos, mas fomos obrigados a retornar às pressas no domingo, após a notícia de que havia desaparecido. Da hora que pousamos em Brasília até a terça-feira de Carnaval, vasculhamos cada pedaço daquela região a sua procura, sem sucesso. Como último recurso, resolvemos distribuir cartazes e faixas do tipo “procura-se” no raio de 10 km do local de onde sumira.

 

Na tarde de terça-feira veio o telefonema do canil nos avisando de que ele fora encontrado, ainda no sábado, por um garoto que se divertia com um jet ski no Lago Paranoá. Lobão bem que tentou atravessar aquele "oceano nada pacífico" no rumo da Asa Sul, onde morávamos. Muito debilitado, com todas as articulações lesionadas pelo esforço feito, com infecção intestinal, permaneceu horas debaixo de uma cama onde residia o garoto que o abrigou, praticamente sem alimentar-se, até ouvir alguém chamá-lo pelo nome familiar aos seus ouvidos, descrito nos cartazes e faixas. 

 

De volta para casa, recuperou-se rapidamente. E a notícia da aventura correu pela Super Quadra Sul 114, na manhã de quinta-feira pós-Carnaval, onde um intrépido Lobão cuidava de remarcar seu território a cada poste que encontrava pela frente. Logo, viu-se apelidado pelos porteiros e zeladores do prédio de “Gustavo Borges”, nadador olímpico brasileiro medalha de prata nos 100 metros livres nas Olimpíadas Barcelona 1992 e nos 200 metros livres em Atlanta 1996, que participou de quatro Olimpíadas.

 

Vítima de edema agudo de pulmão, decorrência de uma gastroenterocolite bacteriana, o velho e destemido Lobão – que já vinha recebendo cuidados especiais na condição de cardiopata e nefropata - tombou no Verão de 2013, aos 18 anos de idade. Foi sepultado com "honras militares e salva de tiros" no quintal de nossa casa, no Jardim Botânico, em Brasília, onde viveu seus últimos dias.

 

Eu sabia que desagradava algumas pessoas naquele tempo, mas juro que estava sendo absolutamente justo e sincero quando afirmava: “Quanto mais conheço o ser humano, mais admiro Lobão!”. Ele nunca foi ingrato, dissimulado, grosseiro ou desleal conosco. Mostrava-se sempre agradecido pelo carinho que recebia, era fiel, solidário e transparente. Um ser do bem, que tornou inesquecível o Carnaval de 2001 e, anos depois, deu o tom acinzentado definitivo, da cor de sua pelagem, à “Síndrome do Ninho Vazio” que se instalava em nossa casa.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Nunca se sabe

Tive a sorte de poder bater papo por 15 ou 20 minutos com alguns personagens de nossa história contemporânea. Isso, claro, por conta de algumas funções que exerci durante mais de 40 anos numa grande empresa brasileira.


A lista é boa e vai do universo artístico-cultural (Altamiro Carrilho, Armando Nogueira, Capiba, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Dona Canô, Gilberto Gil, Herbert Vianna, Ivete Sangalo, Jaguar, Jessier Quirino, João Barone, João Carlos Martins, Lulu Santos, Maria Gadu, Roberto Carlos, Samuel Rosa, Zeca Baleiro e Ziraldo), passa pelo campo esportivo (Bernardinho, Buglê, Cafu, Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Guga, Nalbert, Pelé, Roberto Dinamite, Tande, Zé Roberto Guimarães e Virna), até a classe política (ACM, Marco Maciel e Miguel Arraes). 

 

Conversas que me renderam alguns textos publicados neste espaço. Escritores cascudos, reconheço, produziriam coisas mais interessantes, mas não tiveram o privilégio de assistir (de camarote!) aos fatos, ainda por cima recebendo salários e benefícios rigorosamente em dia.

 

Eu deveria me dar por satisfeito com aquilo que o acaso me reservou de ganhos indiretos, mas é natural querer um pouco mais. E andei pensando sobre quem poderia ter conhecido e não tive oportunidade. Tarde demais? Nunca se sabe.

 

Volto à adolescência, no início da década de 1970. Naquela época, destacava-se em Alagoas o “conjunto” LSD – Luz, Som & Dimensão, sob a batuta de um cantor e guitarrista que embalava as noites mornas de sexta-feira, na AABB Maceió, com os hits do momento. 

 

Antes que Djavan despontasse com seu primeiro álbum (lançado em 1976, o disco trouxe canções como “Flor de Lis” e “Fato Consumado”), vacilei e perdi a chance de conhecê-lo. Era acanhado demais para puxar conversa com o ex-armador do juvenil do CSA, que jogava ao lado de meu amigo Zabelê.

 

Bem mais adiante, se já me conhecesse, não seria tarefa tão complicada perguntá-lo em que praia andou catando palavras tão simples para tecer sofisticadas construções poéticas como:

 

“... Só eu sei as esquinas por que passei... Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar?”

 

“... Vou andar, vou voar, pra ver o mundo. Nem se eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo...”

 

“... Num dia triste, toda fragilidade incide. E o pensamento lá em você, tudo me divide...”

 

“... Viver é todo o sacrifício feito em seu nome... Por ser exato, o amor não cabe em si. Por ser encantado, o amor revela-se. Por ser amor, invade e fim...”

 

Outro que eu gostaria de conhecer é o escritor e jornalista Ruy Castro. Autor de vários livros, entre eles biografias essenciais (Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha; O Anjo Pornográfico, sobre Nelson Rodrigues; e Carmen Miranda – Uma biografia), esbanja ao mesmo tempo um estilo leve e duro, mordaz e sutil, em textos bem-humorados sobre comportamento, futebol, política e história, que me fazem refletir e rir. Muito.


Todas as vezes em que me meto a escrever, penso no que me diria se estivesse a meu lado. Quem sabe me daria dicas cruciais, até mesmo para não brincar com coisa séria, pôr um ponto final no que ando fazendo e desistir de minhas exclamações, interrogações, reticências e vírgulas nada essenciais.

 

Reprodução: Redes Sociais


Dois caciques em suas respectivas tribos. Posso até imaginar que Djavan, no fundo, esconde uma alma vascaína, da mesma fonte de energia de onde emanou Paulinho da Viola e Aldir Blanc. Ruy Castro também. Poderia, aliás, escrever a versão definitiva da linda e inclusiva história do Vasco, com as tintas de sua paixão pelo social.

 

No campo político, gostaria de conhecer alguém que defenda uma tese bastante simples com a qual eu e você, leitor, nos identificamos totalmente. 

 

Quando uma criatura eleita esquecesse dos compromissos de campanha, o eleitor poderia revogar seu próprio voto (exercício do direito de arrependimento), anulando-o, via internet, no site do TSE. E se, em até 120 dias da posse, um razoável conjunto de decepcionados fizesse a mesma coisa, a figura perderia o mandato.

 

Sabe-se que eleições existem também para remissão de pecados, isto é, ninguém se obriga a votar de novo em quem desonra compromissos. Mas por aqui essa lógica nunca funciona. A memória é curta e fugaz.

 

Uma vez no picadeiro, sob os holofotes, o palhaço ri da plateia e se reelege sucessivas vezes, submetendo-se, se tanto, à habitual dança de poltronas entre cargos legislativos e executivos, federais, estaduais ou municipais.

 

Acontece que a criatura que gostaria de conhecer ainda não veio ao mundo. E nem sei se vai nascer, crescer e arejar o cenário político, antes que o País ingresse de vez com um pedido de recuperação de múltiplos órgãos perante o Juízo Final, sem muita chance de sucesso. 


Tarde demais? Nunca se sabe. Mas, enfim, não estou proibido de sonhar. Até os mortos, imagino, sonham que a vida continua.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

O jogo das coisas que são

Esta semana meus primeiros netos completaram 15 anos. Mesmo de longe, acompanho a odisseia deles desde a época em que o tempo se media – e se celebrava! – em gramas, até que a fé na vida suplantasse a dúvida e o medo. 



Hoje, vê-los sorrindo é suficiente para reabastecer o meu tanque de esperança e seguir viagem. Sem pressa.

 

Vingou a vida, brotou o avô que hoje conta histórias. Como esta compartilhada neste espaço há mais de três anos.

 

 

A vida pede passagem

 

Em sua crônica “Antes que eles cresçam”, o escritor e poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna foi muito feliz ao dizer que “(…) O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco (…)”

 

Com apenas 27 semanas de gravidez, Renata teve que se submeter a uma cesariana bem antes da hora para receber meus primeiros netos, Breno e Camila. O rompimento acidental da bolsa, aliado à perda de líquido, a colocava com os filhos em extremo risco de infecção se nada fosse feito.

 

Ao nascer, cada bebê pesava menos que 1 kg e ambos poderiam ser transportados numa caixa de sapatos. Eram o que chamam de prematuros extremos. Médicos dizem que bebê que nasce antes das 36 semanas é considerado prematuro. Antes de completar 28, como meus netos, é prematuro extremo – os órgãos já estão formados, mas são muito imaturos.

 


Na agonia daquelas primeiras horas, para mim foi um tiro no pé recorrer a experts no assunto em busca de maior conhecimento. Fiz isso e entrei em pânico ao saber que prematuros extremos têm maior taxa de mortalidade e podem apresentar problemas na visão, dificuldades na alimentação e para respirar, além do risco de contrair infecções, dada à imaturidade do sistema imunológico.

 

Meu filho Leopoldo e sua mulher, Renata, viveram semanas de angústia e incerteza, de luta e esperança. Após o parto, durante o Carnaval de 2008, foram 46 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI neonatal) do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, com toda sorte de intercorrências.

 

Breno não amadurecera por completo o aparelho respiratório e teve até pneumotórax. Camila, o aparelho digestivo. A ponto de, por muito tempo, não digerir sequer uma gota de leite materno.

 

Toda noite pedia em minhas orações que ficasse conosco pelo menos uma das crianças para que o sofrimento de todos não fosse tão pesado, como se a dor pudesse ser repartida, atenuada, se o pior viesse a acontecer. No desespero, não sabia nem rezar direito. Deus que se virasse para entender pedidos tão confusos.

 

Foi quando Zé, um velho amigo mineiro, dotado de muitos saberes, mas leigo em ciências médicas, perguntou como estavam os recém-nascidos e compartilhei com ele aquilo que se passava, inclusive minha pouca fé na sobrevivência dos dois. Então me disse algo mais ou menos nessa linha: “Não fique tão preocupado... a vida quando brota faz de tudo para vingar...”

 

Arrepiei. Impressionou-me o fato de um ateu convicto como ele ter feito um milagre naquele instante: reabastecer meu estoque de esperança, que já andava na reserva. Quando a gente muda o jeito como encara as coisas, o que vemos acaba mudando de lugar.

 

A vida pedia passagem. Já era Páscoa quando Breno e Camila finalmente chegaram em casa, com saúde e em paz. Hoje, quase 12 anos depois, continuam muito bem, a viverem agora em São Paulo no auge da pré-adolescência, com as cores, os amores e os humores da hora.

 

Semana passada toquei no assunto com Zé. Indaguei se, após tanto tempo, ainda recordava de nossa conversa, ao que respondeu que lembrava sim, perfeitamente. Disse ainda que cada vez que vê fotografia dos gêmeos, conscientiza-se do “milagre”, como que reafirmando a força e os mistérios da vida, insondáveis para nós.

 

Garantiu de novo que há coisas que não dominamos, não podemos racionalizar. Que não podemos querer ter o controle de tudo. A vida tem seus caprichos e desígnios. Essa seria sua beleza!

 

"...Todos nós dançamos numa melodia misteriosa, entoada à distância por um músico invisível...", diria o físico Albert Einstein (1879 – 1955).

 

Era madrugada. Fui para a varanda e deitei na rede, a esperar o sol nascer, rever fotografias de Breno e Camila na linha do tempo e a ouvir Caetano Veloso: “(...) o tempo não para e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são, é o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão (...)”

 

Logo depois o sol nasceria na hora certa, maduro, como sempre acontece. Na leveza do primeiro sono, cheguei a ver o vulto de meu velho amigo Zé emergindo das águas da praia de Pajuçara, em Maceió, a cantarolar: “(...) Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar (...)”

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Uma estrada e a lua branca

Triste de quem não conserva nenhum vestígio da infância, pontuou certo dia o poeta Mário Quintana. 

Entre oito e nove anos de idade, todo sábado eu ouvia os discos (em especial os de Luiz Gonzaga) que meu pai punha na radiola enquanto encerava nossa casa. Ficava imaginando os cheiros, as cores e os sons do Sertão onde comecei a me despertar pro mundo. 

 

Tudo era simples. Quando dei por mim, tinha decorado Estrada de Canindé, no linguajar de meus avós maternos (clique e escute): 

 

“Ai, ai, que bom,

Que bom, que bom que é

Uma estrada e uma caboca

Cum a gente andando a pé.

Ai, ai, que bom,

Que bom, que bom que é

Uma estrada e a lua branca

No sertão de Canindé.

Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié.

Quem é rico anda em burrico,

Quem é pobe anda a pé.

Mas o pobe vê nas estrada

O orvaio beijando as flô,

Vê de perto o galo campina

Que quando canta muda de cô.

Vai moiando os pé no riacho…

Que água fresca, nosso Sinhô!

Vai oiando coisa a grané,

Coisas que, pra mode vê,

O cristão tem que andá a pé”.

 

Um dia, quando crescesse, faria longas viagens de carro, parando aqui e ali para comer e beber, conhecer lugares e pessoas, ouvir e contar histórias, essas coisas.

 

Enganei-me. Fiz muitas viagens durante a minha jornada profissional, porém apressadas, mais preocupado com a hora da partida e da chegada do que com o caminho em si.

 

Hoje, não me animo a cair na estrada. Alguns sustos entre Alagoas, Pernambuco e Bahia, mexeram comigo. O medo de cochilar ao volante e acordar no purgatório desbotou a coragem e a paciência. 


Passei a viajar menos, de carro. Depois que me aposentei e até antes da pandemia, me acostumei ao corre-corre e ao vozerio de aeroportos, ao barulho das turbinas, a ver o chão lá das nuvens. 


Perdi o direito de ver o orvalho molhando as flores, ou o galo-de-campina mudando de cor, “coisas que, pra mode vê, o cristão tem que andá a pé”, como cantava Gonzagão.

  

Outro dia puxei conversa com meu querido amigo Carlos Bicca, o mais nordestino dos gaúchos, com quem compartilho caros momentos desde 1996, quando nos vimos (no plural, porque alcança Cristina e Magdala, minha mulher), pela primeira vez, no Recife.

 

Bicca me disse que nunca lhe agradou estar entre quatro paredes, mas a necessidade falou mais alto, pelo menos até que pudesse trocá-la por algo mais precioso: o tempo, de preferência ao ar livre. Tanto que se transformou em maratonista dos bons, depois dos 50 anos. 

 

Contou que gosta de estrada desde criança e que nunca escondeu isso nem dele mesmo. Para desassossego de quem se senta no banco do carona, ele garante que “o melhor caminho entre dois lugares é sempre o que tem mais serras, curvas e estradinhas...” 

 

É mais um fã de Niemeyer, para quem “se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o que faz o concreto buscar o infinito”. 

 

Depois que se aposentaram, Bicca e Cristina caíram na estrada numa Mercedes Sprinter (com “casa” montada sobre os chassis), levando Maya, cadela de pelos dourados, da raça Labrador, no auge de seus 10 anos.

 

Fotografia: Carlos Bicca

Nos últimos três anos e meio, a experiência de “viver sobre rodas, ao invés de ancorados nos alicerces de um endereço fixo", forjou dois minimalistas convictos, nômades e felizes. Aprenderam a desapegar de coisas, a compartilhar quase 100% da mesma rotina, a suportar estoicamente a saudade dos netos, a compreender que “todos os dias são especiais e tem valido a pena cada quilômetro de estrada percorrido juntos”.

 

Fotografia: Carlos Bicca

E como o viajante da Estrada de Canindé, “oiando coisas a grané”, Bicca virou exímio fotógrafo. Vive provando aos amigos, nas redes sociais, que nem arame farpado retira a beleza de uma cerca. "Fotografar me poupa de explicar com palavras o que vejo". Mas não fotografa. Faz autorretrato – só ele enxerga daquele jeito.

 

Tocado por uma inveja benigna, eu quis saber qual teria sido o lugar mais impressionante que conheceram. O casal não titubeou: Paso San Francisco, na Ruta de los 6 miles. “Cruzamos a Cordilheira dos Andes a quase 5.000 metros de altura... É uma estrada mística para motociclistas, pouquíssimo utilizada por veículos de maior porte como um motorhome”, disse Bicca.

 

Agora quer explorar um pouco mais a América do Sul. Conhecer também alguns rincões escondidos do Velho Continente, a bordo de uma autocaravana que adquiriu em Portugal, em sociedade com outros casais que conheceram em Brasília.

 

Como ainda me sinto “criança” – apesar das dores e dos desencantos da hora –, me pego aqui pensando em viajar um pouco mais. Afinal, coragem é a cor que cada um escolhe para colorir os dias que restam da grande viagem.

 

Quem sabe um dia, quando crescer.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

É, agora ela vem!

Faz parte do imaginário coletivo de Pindorama acreditar que constitui uma nação de 200 milhões de almas abençoadas, acolhedoras e cheias de graça, vivendo num paraíso miscigenado e igualitário. Pensar diferente soa impatriótico para alguns, seja lá o que isso signifique. Nos dias atuais, então... 

 

O culpado disso talvez seja o cidadão que compôs País Tropical na virada dos anos 1970, ufanista homenagem a carnaval, clima, futebol e até ao Cristo Redentor de braços abertos numa época nada redentora em que se enaltecia um povo ordeiro e inteligente, filho de uma pátria-mãe bonita por natureza, com um futuro maravilhoso. 

 

Reprodução/Redes Sociais

Hoje, sei não... Ainda que circulem nas redes sociais vídeos exaltando a inteligência e a criatividade do povo, com seu jeito macunaímico de ser, capaz de encontrar soluções simples para os problemas mais complexos. E o desfecho é sempre o mesmo: “Agora a NASA vem!” 

 

A menção à agência espacial norte-americana, claro, reporta-se a uma inteligência digna de ser esmiuçada, tão incomum que seria importante aprofundar estudos para que a mais poderosa nação do mundo não seja apanhada de surpresa.

 

Tenho motivos para acreditar que o povo de Pindorama anda retrocedendo intelectualmente a passos largos. 

 

Você, leitor ou leitora, acha inteligente um cidadão, que diz amar a Deus sobre todas as coisas, querer explodir um aeroporto em pleno Natal? Pior: usando tornozeleira eletrônica, instalar uma bomba num caminhão de combustível, convicto de que nunca seria descoberto? 

 

Cidadão, aliás, que até bem pouco tempo fazia um barulho medonho por causa da discussão sobre banheiro público unissex e, mesmo assim, passou os últimos meses acampado em frente a um quartel-general, produzindo obras líquidas e pastosas em cubículos compartilhados com todos, todas e “todes”. 

 

Por falar em “todes”, nesses tempos de linguagem neutra, até o “bom-dia” na abertura de uma reunião passou a ser desejado a todos, todas e “todes”. Perguntar não dói: não seria pouco inteligente (ou, no mínimo, um retrocesso) chamar a principal líder de uma empresa de presidenta? 

 

Eu já vinha chateado com o fato de que outro cidadão, endeusado por fãs como uma jazida moral acima de qualquer suspeita, teria gastado, nos quatro anos em que ocupou um determinado cargo público, nada menos que R$ 8,6 mil em sorvetes, utilizando um cartão corporativo cuja fatura foi paga por mim, você e outros milhões de contribuintes bestas (perdão pelo pleonasmo!).  

 

Uma semana após assistir pela TV a posse de um líder político antipatizado por metade da população, eu cochilava depois do almoço do domingo, 8 de janeiro, quando vi milhares de almas inconformadas com a vitória nas eleições da outra metade partirem para o quebra-quebra dos templos sagrados dos três poderes da República.

 

No dia seguinte, revendo as cenas do quase apocalipse de Pindorama, onde os seres vivos mais sensatos pareciam ser os cavalos da Polícia Militar, ficou claro: nem aborto, camisa-de-vênus, coito interrompido ou fingida dor-de-cabeça teria evitado tanta asneira. 

 

Entre os extremistas, não havia negros, homossexuais, portadores de deficiências ou povos indígenas, nem mesmo yanomâmis. Só “caras-pálidas” de bundas brancas, agora acampadas num retiro nada espiritual à espera de um milagre, talvez refletindo sobre “vasos turcos” no chão, aquele buraco que obriga o preso a ficar de cócoras para utilizá-lo.

 

Reprodução/Redes Sociais 

No contragolpe para responsabilizar os que tiveram participação concreta nos atos de terrorismo (inclusive com a “sábia” veiculação nas redes sociais de provas contra si mesmo), descobriu-se que um incauto cidadão guardou em sua própria casa uma minuta do documento que poderia decretar o natimorto golpe de estado. 

 

Fora isso, ao ser preso, no exterior, verificou-se nos registros alfandegários que até hoje ele teria sido o único turista que esteve nos Estados Unidos e não trouxe um celular novo, com o agravante de ter esquecido o antigo, como se fosse uma cueca suja ou um par de meias furadas. 

 

Cheguei a pensar que o turbilhão de asnices pudesse ser uma molecagem vinda “lá de cima”, partindo de alguém que neste mês completaria 100 anos: Sérgio Porto, ex-bancário falecido em 1968, que continua vivíssimo sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta. Com seu humor corrosivo e irônico contra os absurdos do regime militar, ele inspirou toda uma geração de jornalistas, escritores e chargistas com as crônicas que compõem o inesquecível Festival de Besteiras que Assola o País (Febeapá).

 

Digo isso porque a fonte de idiotices não para de jorrar. Esta semana, por exemplo, soube de uma estudante de medicina que está sendo investigada por dar um golpe em colegas da faculdade. Desviou quase R$ 1 milhão dos valores arrecadados para festa de formatura que não estavam sendo bem geridos pela empresa contratada, fez “aplicações ruins” e perdeu dinheiro. E, “inteligentemente”, tentou recuperá-lo em apostas lotéricas. 


Reprodução/Redes Sociais 

E acabo de ler numa rede social a mensagem de outro importante cidadão: “Para minimizar os efeitos das chuvas…, antecipamos o pagamento das parcelas atrasadas, pelo governo passado…”. Você, que me leu até aqui, sabe como se antecipa o pagamento de parcelas em atraso? 

 

É, talvez agora a NASA venha. A ciência precisa explicar o fenômeno. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Filhos e pais

Meia hora antes da virada do ano-novo, no trajeto do Aeroporto do Galeão à Zona Sul do Rio de Janeiro, um motorista de aplicativos transporta um velhote simpático, franzino, calvo, que conta uma história curiosa.

Diz que, durante o voo, uma mulher escolhe uma forma inusitada de revelar ao marido que está grávida. O anúncio é feito pelo piloto do avião.

 

“Gostaria de parabenizar o passageiro da poltrona... pela informação sobre a gravidez de sua esposa, inclusive quanto à possibilidade de gêmeos”, disse o piloto.

 

A notícia rende aplausos dos demais passageiros e espanto do futuro pai, que recebe do comissário de bordo cópia do laudo do exame feito por ela. Os bebês, segundo o marido, surgem dois meses após a tristeza de um aborto espontâneo. 

 

O velhote, sentado na poltrona ao lado do casal, puxa conversa invocando um provérbio popular: “Benditos aqueles que conseguem dar aos seus filhos asas e raízes”. Pretexto para propor a eles que ajudem seus rebentos a terem a cabeça nas nuvens, mas os pés bem plantados no chão. 

 

Explora em seguida um pouco de Oscar Wilde, dramaturgo, escritor e poeta irlandês, para quem: “No início, os filhos amam os pais. Depois de um certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam...” Para o velhote, funciona assim desde que os seres humanos resolveram descer das árvores.

 

Como mulher e marido a tudo escutam atentos, anima-se e explora uma possível tese freudiana: “Eduque-os como quiser; de qualquer maneira há de educá-los mal”. A seguir, sustenta uma máxima balzaquiana: “A gratidão é uma dívida que os filhos nem sempre aceitam no inventário”. 

 

Nisso, uma voz no ambiente alerta: “Passageiros viajando com crianças ou alguém que necessite de ajuda, lembramos que deverão colocar suas máscaras primeiro para em seguida auxiliá-los. Esta aeronave possui seis saídas de emergência, observem a indicação dos comissários e identifiquem a saída mais próxima de seu assento...”

 

– Né por nada não, meu senhor, mas isso é comigo? – preocupa-se a futura mamãe.

– Calma, filha! É cedo. As máscaras só caem mais tarde...

 

O velhote lembra então de seu primo, um livre-pensador desaparecido havia mais de uma década, quando o jovem casal (ambos na casa dos 24 anos) ainda experimentava os primeiros amassos pré-adolescentes. 

 

Imagem: Dedé Dwight

Para seu primo, “Pais e filhos não foram feitos para serem amigos; foram feitos para serem pais e filhos”. Seria bom, portanto, que o casal soubesse disso desde já, quando a euforia de conceber um ser humano alimenta expectativas que quase sempre deságuam em frustrações.

 

Mas o velhote não quer ser chato – “Indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele” –, azedar a conversa e ter que deixar o casal em paz, curtindo o seu momento de euforia e esperança. 

 

Evita, portanto, lembrar o que seu primo vivia repetindo: “Metade da vida é estragada pelos pais; a outra metade, pelos filhos”. Ou o conselho que oferecera ao próprio primogênito: “Fique certo de uma coisa, meu filho... Se você mantiver seus princípios com firmeza, um dia lhe oferecerão excelentes oportunidades de abdicar deles”.


Prefere reforçar que pai e mãe não deixa jamais de amar seus filhos quando crescem. Apenas brotam e enraízam decepções mútuas que antes não existiam e que causam estragos de cicatrização improvável.


E pondera: os próprios filhos discordavam bastante dele, mas até gostava de que fossem desobedientes. Afinal, todo casal precisa saber desde a gravidez que serão os bichinhos de plástico em que as suas crias afiarão as presas antes das primeiras mordidas.

 

Nisso, de novo, a voz no ambiente silencia a todos: “Dentro de instantes pousaremos no aeroporto do Galeão. Mantenham os encostos das poltronas na posição vertical, suas mesas fechadas e travadas. Observem os avisos luminosos de apertar cintos...” 


– Onde o seu primo mora? Quero conhecê-lo – diz o futuro pai, esquecido de que o “primo” falecera havia mais de 10 anos.

– Sei lá... Anda meio sumido. Dizem que continua por aí, espirituoso, irônico, provocador... Meteu-se um dia a ser desenhista, dramaturgo, escritor, jornalista, até se aposentar. Mas quase ninguém da idade de vocês sabe dele...

 

O velhote deixa o aeroporto apenas com bagagem de mão. Chegando em Ipanema, despede-se do motorista perplexo com o caso. "Ainda bem que meus filhos não me ouviram!”, arremata sorrindo. 


E desaparece numa esquina em meio à multidão que celebra a chegada do ano-novo. 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Deus nos livre

Nos desencontros de opinião numa longa convivência, a pergunta que não cala, com sua inescapável conjunção alternativa: “você quer ser feliz ou ter razão?”  

Tenho um amigo que diz não entender a sem-cerimônia com que uma pessoa, às vezes acompanhada, resolve passar alguns dias na casa de outra, compartilhando a hora de dormir, de acordar, de comer e até de certas intimidades como falar sozinho, coçar os ouvidos ou fazer palavras cruzadas. 

 

Diz ele que não confia em quem usa o banheiro alheio, mesmo no aperto. Jura que nunca fez coisas mais substanciosas em locais públicos como aeroporto, estação rodoviária, posto de combustíveis e restaurante. E vive repetindo: “viajar é bom, mas voltar pra casa e sentar no próprio trono não tem preço!”

 

Imagem: Dedé Dwight 

Para algumas pessoas, a vida é leve, descomplicada. Para outras, como o meu amigo, tudo é problema, em maior ou menor escala. Elas são capazes de ir ao trabalho mesmo corizando, com febre, nunca dão o braço a torcer. Sabem que a torção do membro não passa de um surrado bordão.

 

Qual a consequência de avisar que não vai ao trabalho porque não quer dividir a virose com colegas? Nenhuma. Mas são exigentes consigo mesmas e, se assumem que irão entregar uma tarefa naquele dia – ainda que isso não salve ninguém do inferno, nem eleve o dólar ou derrube a Bolsa –, não admitem a “fraqueza”. 

 

Se são inflexíveis consigo, imaginem com as pessoas mais chegadas. Quem lhe telefona às dez da manhã desmarcando o almoço combinado para o meio-dia corre o risco de perder a amizade. Almoço, entenda-se, apenas pretexto para o reencontro de gente que se “fala”, via whatsapp, a qualquer momento. “Isso não se faz nem entre nora e sogra”, dizem. 

 

Essa gente cria expectativas que não aguenta ver frustradas. Se programa alguns dias de descanso numa praia, na volta vai reclamar de como ultimamente tem sido difícil viajar, vai criticar o aeroporto apinhado de emergentes ("um carnaval danado!"), falar da bagagem que custou a aparecer na esteira, do trajeto lento até o destino. Não lembra dos momentos paradisíacos que experimentou, talvez porque nem tenha percebido nada demais.

 

Quando inesperadas, até boas notícias contrariam essa gente. O imprevisto, ainda que seja agradável, causa transtorno. Renuncia a qualquer forma de prazer se tiver que lidar com o desconhecido. A vida flui insossa e morna, nem quente nem fria. Não quer se sentir muito bem porque, desconfia, o castigo vem a reboque. Rir alto de alguma situação é prenúncio de tristeza. 

 

Se caminha no calçadão pensando no que tem por fazer durante o dia, a semana ou o mês, caso encontre alguém sem maiores ambições, mascando chiclete, chupando picolé ou bebendo chope numa segunda-feira qualquer, essa gente se sente quase ofendida. Vai logo criticando o quanto aquele “desocupado” é irresponsável. Chega a praguejar: “mais tarde não se queixe e, principalmente, não venha pedir nada aos outros, já que só quer vida leve”.

 

Vida leve? Sim, daquela pessoa que, se você passa na casa dela na hora do almoço e não tem nada pronto sobre o fogão, diz que em quinze ou vinte minutos dará um jeito. E lhe pergunta se quer pão com ovo, presunto e queijo, ou mesmo um mexidão do tipo “trocando em miúdos” – as sobras de tudo que chamam lar. 

 

Mas “aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer”. Essa gente, como meu amigo, nunca chega de surpresa na casa de ninguém para que jamais cogitem retribuir a visita. Só de pensar na hipótese, bate cólica, enxaqueca ou uma urticária daquelas.

 

Duvido que você não conheça uma pessoa assim. Eu mesmo, cujas amizades cabem dentro de uma van, conheço mais de uma. Pior que não caíram do céu, como parentes. Foram escolhidas, uma a uma, e não abro mão de nenhuma delas. 


Deus nos livre dessa gente! Às vezes, não nego, bem parecidas comigo. Que Deus me proteja de mim mesmo nessas horas.

 


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Não deu, rapaz

Preocupada comigo, Dona Eudócia, minha mãe, perguntou-me nesta segunda-feira, bem cedinho: “Quem é esse rapaz que faleceu?” 

 

De futebol, ela mal reconhece Pelé. Mas tinha acabado de ver um post nas redes sociais em que minha mulher aparece ao lado de nosso ídolo, Roberto Dinamite.



O “rapaz”, que se tornou sinônimo de gol e um dia até me fez sonhar ser jogador do Vasco da Gama, virou lenda. Aos 68 anos, tombou – guerreiros não morrem, guerreiros tombam – na manhã de ontem. 

 

Não aconteceu o que sonhei, no começo do ano passado, quando aqui contei – veja mais adiante – do dia em que conheci quem me fez amar mais intensamente o futebol. Minha mãe agora sabe disso.

 

Não deu, rapaz. Tem muito tempo que não choro. 

 

Golaço de ombro

 

Mal começa o ano e Roberto Dinamite, com o rosto pálido, olhos sem brilho, anuncia o início de tratamento para tentar derrotar tumores no intestino. E na onda de solidariedade que se forma, aparece Zico, no Instagram: “Bob, amigo... Você sempre foi um guerreiro e vai vencer mais essa luta fazendo um gol de placa... Queremos você sempre com o seu sorriso...”

 

Conheci Dinamite na noite de 06/10/2013, no Aeroporto JK, em Brasília. Ele, presidente do Vasco da Gama, chefiava a delegação do clube, que acabara de empatar em 1x1 com o Flamengo, no estádio Mané Garrincha. Eu participaria de uma reunião de trabalho na manhã seguinte, no Rio, e aguardava o embarque quando ele se sentou ao meu lado. 

 

Tomei a iniciativa de me apresentar. Logo, ele quis saber se havia como a “minha” empresa patrocinar “seu” clube sem a exigência de certidões negativas requeridas pela Caixa Econômica. Esclareci que a regra valia para todas as estatais envolvidas com marketing esportivo. E tocamos a conversa com amenidades, eu fingindo ser natural estar diante do maior ídolo esportivo de minha vida. 

 

A prosa ganhou cores e dores quando recordei momentos marcantes de sua trajetória profissional – boa parte extraída nas transmissões esportivas da Rádio Globo, no Jornal dos Sports ou na revista Placar. Alguns fatos nem ele lembrava, a ponto de brincar comigo: “Você sabe mais sobre minha carreira do que eu!” E sorriu largo, marca registrada do lendário artilheiro com mais de 700 gols em 1.110 jogos com a camisa vascaína, entre 1971 e 1989. 

 

Não era um centroavante técnico como Tostão, Reinaldo, Careca ou Romário, mas, de sua geração, nenhum fez tantos gols, graças ao porte físico privilegiado, à capacidade de colocar-se bem na área adversária, de antecipar-se aos marcadores e à potência explosiva do arremate, além de, a custo de muito treino, transformar-se em exímio batedor de faltas e pênaltis. 

 

Para Waldir Amaral, ícone do rádio esportivo, era “Dinamite... A camisa com cheiro de gol!”. Para Zico, "o atacante com quem melhor me entendi em jogos da Seleção". Os deuses do futebol, no entanto, tinham outros planos. Não permitiram que a dupla sequer tentasse evitar o fracasso nas duas Copas do Mundo em que estiveram juntos. 

 

Em 1978, na Argentina, Zico sentiu o peso dos gramados castigados pelos rigores do inverno e, substituído pelo esforçado Jorge Mendonça, viu do banco de reservas Dinamite balançar três vezes as redes adversárias, inclusive na vitória contra a Áustria, que livrou o Brasil de voltar para casa ainda na primeira fase.

 

E em 1982, na Espanha, Roberto descartado pelo treinador Telê Santana – que apostou no tosco Serginho Chulapa –, assistiu das arquibancadas ao Brasil perder para a Itália sem ter a chance de atuar 10 ou 15 minutos ao lado de Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior, craques que em um palmo de campo e uma fração de segundo poderiam com Dinamite explodir a muralha italiana e desviar o rumo da história.

 

A conversa flanava por aí quando ele se referiu a Zico. Os dois são amigos há mais de meio século. “O Galo foi o maior jogador de meu tempo. Nós começamos na mesma época, no juvenil. Não foi só a relação Roberto e Zico. Os pais dele, seu Antunes e dona Matilde, iam sempre ao Maracanã vê-lo jogar na preliminar e os meus pais também iam me ver jogar”.

 

Disse mais: “Eu não o chamo de Zico, chamo de “Galo”. E ele não me chama de Roberto, mas de “Bob”. É uma relação diferente e a gente até brinca que não precisávamos falar mal um do outro para levar 100 mil, 150 mil pessoas ao Maracanã. Crescemos assim. Adversários em campo, mas, acima de tudo, amigos”. 

 

Evitei tocar num ponto quase trágico. Em 1972, aos 18 anos, Dinamite apaixonou-se por Jurema, viúva e com um filho, seis anos mais velha que ele. A família dele não aceitou o romance e isso o atormentava bastante. Um dia, então, quase marca um gol contra, segundo a revista Placar: engoliu de uma vez vários comprimidos que sua mulher usava. 

 

“Eu vinha guardando aquela angústia só para mim. Tomei uma dose reforçada de calmante, mas não tinha a intenção de me suicidar... Só queria dormir uns dois dias seguidos para me desligar do mundo” – declarou à Placar. Jurema, que o levaria às pressas ao hospital naquele dia, morreu em 1984, precocemente, vítima de insuficiência renal crônica, deixando órfãs três crianças.

 

Quase tudo passa. Dinamite casou-se de novo e, mais adiante, em 1993, fechou a carreira de futebolista, virou político (vereador e deputado estadual) e dirigente esportivo. Hoje, aos 67 anos, ocupa cargo honroso e intransferível: avô de Valentina e Bento.

 

O Galo, querido amigo de meu ídolo, sabe quanto um ombro é importante para o gol de placa pelo qual ele torce. Quem sabe assim o velho Bob volte a sorrir largo com as cores, as dores e os sabores da prorrogação do jogo. E aí iremos todos cantar de coração...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pode dar certo, entende?

Quase tudo já foi dito sobre Pelé desde quinta-feira passada, quando nos deixou. Felizmente, sua obra está registrada em narrativas audiovisuais, escritas e orais.

No dia seguinte, uma nordestina, negra, defensora das causas LGBT, foi escolhida para ser presidente do Banco do Brasil. A paraibana Tarciana Medeiros é a primeira mulher a ocupar o cargo em dois séculos de história da instituição.

 


O que uma coisa tem a ver com a outra? Aparentemente, nada! Mas
 ao reler a crônica adiante, aqui publicada há mais de dois anos (em outubro de 2020), vi que o desfecho contém algo premonitório: um choque de diversidade e inclusão.

Vai ver o Rei, sabiamente, já começou a marcar seus golzinhos no Céu, buscando reduzir desigualdades atávicas aqui na Terra.

 

Não ia dar certo, entende?

 

Na live “Pelé, 80 anos” apresentada outro dia pelo site UOL Esporte em homenagem ao aniversário do Rei do Futebol, o jornalista Cláudio Arreguy contou uma história deliciosa de como o mundo esportivo quase foi vítima do acaso e engrossaria o caldo das coisas que poderiam ter sido e não foram. 

 

Dizia ele que Dr. Prata, médico e pai do escritor Mário Prata, sugeriu a Dondinho, o pai de Pelé, que convencesse o filho a prestar concurso para o Banco do Brasil. “Futebol não dá futuro a ninguém! Bota o rapaz no Banco do Brasil que lá ele tem futuro garantido”. 

 

Apesar de a sugestão partir do único e respeitável médico da Bauru na metade da década de 1950, prevaleceu o saber popular: “Se conselho fosse bom...”. Note-se que, naquele tempo, não se imaginava que mais de meio século depois haveria “médico” aconselhando cloroquina para combater uma gripezinha sazonal. 

 

Posso até não discutir o estrago que o conselho do Dr. Prata a Dondinho, se acatado, causaria ao futebol mundial, mas me atrevo a imaginar o que teria acontecido ao cidadão Edson Arantes do Nascimento se tivesse obedecido a eventual orientação paterna. 

 

Com a bola que ele andava jogando, logo seria transferido para uma grande metrópole, passando a integrar o time de futebol de salão da AABB. E nos primeiros anos de banco não seria tão difícil obter uma licença especial para disputar jogos pela extinta CBD. Quem sabe até um publicitário condicionaria a liberação do atleta à exposição da marca da empresa na camisa canarinho, como ocorreria mais tarde envolvendo a CBV (vôlei), a partir das Olimpíadas 92, em Barcelona.  

 

Edson, porém, sabendo que a ação cruel do tempo sobre seus músculos e ossos uma hora decretaria o fim da carreira futebolística, cuidaria de preservar suas relações internas, admitindo até que alguns chefes dessem pitacos sobre sua conduta extra-banco. A empresa sempre teve seus sabichões das segundas-feiras que transitavam de teorias de Einstein sobre a interação entre espaço, tempo e gravidade, aos estudos sobre os múltiplos orgasmos de uma abelha-rainha.  

 

Por azar ou grande atuação de goleiros que jogavam contra a seleção brasileira, Edson deixaria de marcar alguns gols que certamente seriam incluídos entre os mais bonitos de sua jornada. Gols que não aconteceram, mas ficaram para sempre na memória dos amantes do esporte. 

 

Aos 29 anos e no auge de sua forma física, o funcionário do BB cedido à CBD viria a ser o grande protagonista brasileiro na Copa 1970, um autêntico “Nélson Mandela” a liderar a seleção na conquista de seu terceiro Mundial, que garantiu a posse em definitivo da taça Jules Rimet, roubada e derretida 13 anos depois, sinal claro de como o país cuida de sua história.

 

Na época, três goleiros passariam a ser conhecidos no mundo inteiro justamente por se envolverem – dois deles como coadjuvantes e o outro dividindo o papel de protagonista – em lances espetaculares de Edson, reconhecido mais tarde como o “Atleta do Século”.

 

Viktor, da antiga Tcheco-Eslováquia, quase levou um gol em um chute de Edson do campo de defesa brasileiro. O goleiro bem que tentou, mas não conseguiu fazer a defesa, e a bola passaria a poucos centímetros do ângulo de sua trave esquerda. Na manhã seguinte, imagino, um chefe de serviço qualquer ligaria para Edson: “Negão, vê se capricha na próxima e melhora o rendimento, tá legal?”

 

Mazurkiewicz, do Uruguai, tomou humilhante "drible da vaca" – também conhecido como “meia-lua”, “arrodeio” – na entrada da grande área. Mesmo desequilibrado, Edson ainda chutou cruzado, rente ao pé da trave direita, iludindo inclusive o zagueiro que tentava fazer a cobertura. Após a partida, creio, um gerente qualquer ligaria: “Você não tinha nada que enfeitar! Poderia ter feito o gol de fora da área, cobrindo o goleiro com uma cavadinha, sem frescura!”

 

Banks, da Inglaterra, por sua vez, defendeu uma cabeçada quase perfeita, interceptando em pleno ar uma bola que quicou antes, após um salto espetacular de Edson entre os zagueirões branquelos. Certamente um diretor qualquer do banco não perderia a oportunidade de cutucar o funcionário cedido: “Vacilou. Se tivesse cabeceado no contrapé do goleiro, no canto esquerdo, faria o gol...”

 

Logo depois Edson retomaria sua carreira bancária pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, avaliação de desempenho, colegas invejosos de suas tarefas extra-banco etc. Acabaria mais desorientado do que o goleiro italiano Albertosi, vítima de seu último gol em Copas do Mundo, na goleada de 4 a 1. 




De repente, Edson já não sorriria largo, leve, para os clientes. Nem veria graça num trabalho cheio de manuais de procedimentos. Teria medo de demonstrar insegurança ao prestar esclarecimentos e, quem sabe, suscitar dúvida em seu chefe imediato quanto à aptidão para a carreira. O que diriam Dondinho e Celeste se o filhão perdesse o emprego com futuro garantido de que falava o Dr. Prata?

 

Mas daria tudo certo. Se bem que Edson, que nunca vira motivos para denunciar os excessos da ditadura militar ou a existência de racismo no país, logo perceberia que metade da população brasileira é parda, mas isso nunca se refletiu nos quadros da empresa, circunstância que piora quando se fala da ocupação dos chamados cargos de confiança.

 

Hoje, oitentão, aposentado, Edson talvez refletisse sobre algumas questões para as quais não encontrou resposta no emprego com futuro garantido: por que nunca viu um presidente negro em tantos anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só um em mais de dois séculos de história? 

 

Quem sabe até se perguntasse: e se ele, Edson, tivesse nascido em Dois Riachos, Sertão alagoano, fosse mulher, mestiça de caboclo com indígena, e se chamasse Marta, a história teria sido diferente? "Não ia dar certo, entende”, talvez dissesse.