quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A falta que faz uma pomba

Se você espera um texto sobre o luto de alguém, relacionado aos carnavais de outrora, sentindo a ausência de seu cobertor de orelhas "macetando" o apocalipse, bem, sugiro que ajuste seus óculos e prepare-se para uma reviravolta. Não é disso que pretendo falar nesta Quarta-feira de Cinzas.

 

Sábado retrasado, eu seguia pela orla da Pajuçara, de olho nos foliões que se arrumavam para homenagear o “Pinto da Madrugada”, bloco carnavalesco maceioense que acaba de completar 25 anos. Meu passeio me levou até o Memorial Teotônio Vilela, que mais parece uma ode à arquitetura de Niemeyer, com seu vitral patriótico e uma estátua do Menestrel das Alagoas em pleno ato de libertação de uma pomba, símbolo de sua batalha pela pacificação do Brasil após quase 20 anos de ditadura militar. 

 

Esse gesto me fez lembrar da cantora Fafá de Belém, que, um ano após a morte do senador, em 1984, também soltou uma pomba que tinha nas mãos, no histórico comício pelas “Diretas Já”. Tempos duros em que a liberdade era mais valorizada do que dinheiro na cueca ou em paraísos fiscais, onde a sociedade, artistas populares e os políticos de diferentes partidos se uniram em torno de um interesse maior: a redemocratização do Brasil.

Foto: Fafá de Belém, Teotônio Vilela e Fernando Brant (álbum da família Vilela)

 

Falando em pombas, essas criaturas aladas não são apenas mensageiras de paz na Bíblia. São protagonistas de histórias que vão desde a arca de Noé até o batismo de Jesus. Mas, vamos combinar, de uns tempos pra cá elas têm sido rotuladas por muita gente como verdadeiras “ratazanas do céu”.  

 

No palco urbano, onde fazem as vezes de coadjuvantes, seguem ecoando seus arrulhos misteriosos, quer a plateia aprecie ou não o espetáculo. Mas, quem diria, no civilizado Japão da paz (como canta Gil), a trama ganha contornos dignos de uma novela policial, com essas bichinhas alçando voos rumo ao estrelato de vítimas de um crime inusitado.

 

No final do ano passado, Atsushi Ozawa, um taxista de 50 anos, morador de Tóquio, decide que é hora de fazer justiça com as próprias rodas, encenando uma versão motorizada de "O Predador" contra um grupo de incautas pombas. Seu veículo, antes mero meio de transporte, transforma-se na arma do crime contra uma ave que não constava na lista de espécies caçáveis.

 

O enredo se torna denso quando Ozawa, sem uma gota de remorso, declara à polícia que agiu em legítima defesa territorial, alegando que as ruas são domínios humanos e as pombas, simples intrusas que deveriam ter o bom senso de evitar carros, atrapalhando o trânsito. "As estradas são para as pessoas," proclamou, após um episódio de alta velocidade digno de ser narrado por Sílvio Luiz, com direito aos bordões “olho no lance!” e “pelas barbas do profeta!”.

 

O desfecho dessa saga urbana não poderia ser mais dramático. A lei japonesa, pouco acostumada a tratar casos de homicídio avícola, convoca um veterinário para realizar uma autópsia na vítima fatal, buscando evidências de que a morte foi um trágico encontro com o táxi de Ozawa. A conclusão? Um choque cruel, doloso, digno de cadeia.

 

Nas redes sociais, a coisa pega fogo, com pessoas chocadas com o fato de que atropelar uma pomba possa render cadeia, enquanto outras acham que o motorista passou dos limites. Quem diria que esses símbolos pacíficos iriam causar tanta polêmica?

 

A má vontade com as pombas tem explicação: por serem bonitinhas e ordinárias, as pessoas gostam de alimentá-las com restos de comida, algodão doce, pão, pipocas, que são alimentos inadequados e prejudicam a saúde, além de viciá-las.

 

Como já não são mais caçadas por predadores urbanos (os gatos preferem ração de boa qualidade), cresce sem controle a população de pombas e o aumento tornou-se um sério  problema, pois são potencialmente perigosas para a saúde humana. 

 

A Salmonelose, por exemplo, é uma doença infecciosa provocada por bactérias, e a contaminação ocorre pela ingestão de alimentos com fezes (coisa que prefiro acreditar nunca aconteceu comigo ou com você). Ou a Histoplasmose, provocada por fungos que se proliferam nas fezes de aves e morcegos, cuja contaminação se dá pela inalação de esporos (células reprodutoras do fungo).

 

A versão brasileira da novela japonesa será facilitada pela atual concentração da sociedade em dois lados, onde adversários são tidos como inimigos e transgredir as regras é sempre justificável. Quem procura se manter fora desses dois polos, com outras visões e ideias, ou mesmo quem defende que ambas as facções têm acertos e erros, é tratado pejorativamente como “isentão”. E tome insultos e patrulhamento ideológico!




Sem trocadilho, penso que essa gente intolerante e raivosa anda precisando mesmo é de meia hora de pomba (com o relógio parado!). E não estou falando de uma qualquer, mas daquelas que tiveram o privilégio de voar das mãos de Teotônio Vilela e de Fafá de Belém. Se voltaram, não tenho notícia...

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

E o livre-arbítrio, como fica?

Dia desses eu conversava com um amigo baiano, escriba dos bons, que anda meio azedo por conta da dificuldade de encontrar quem goste de ler e escrever. Tem até opinião formada sobre a causa do problema: o ChatGPT! E desabafou, carregando nas tintas: “você sugere um tema qualquer e o computador cospe um texto mastigadinho, feito banana amassada com farelo de aveia. Tá virando drama inclusive para os mercadores de monografias, que estão perdendo a reserva de mercado".

Tentei discordar, mas sem muita firmeza, apenas buscando esticar um papo que me dava retorno reflexivo: "Olhe só, o ChatGPT, assim como a maioria das inovações tecnológicas, veio apenas para facilitar a vida no vale de lágrimas. O problema é a preguiça generalizada, que tem sido a mãe de quase todas as invenções. Até pensar agora é serviço terceirizado. O xis da questão é como usar a ferramenta, para o bem ou para o mal. E essa história de 'livre-arbítrio' é igual a democracia perfeita: é bonita no papel, mas na prática... Sei não, viu?".

Ilustração: Umor

Como eu não estava muito seguro daquilo que defendia para convencê-lo, reforcei o argumento citando um
 gênio que segue vivíssimo na memória do povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro. Dizia ele, em resumo, que sem livre-arbítrio, o homem não é nada, não tem dignidade nem responsabilidade. Se queremos um mundo melhor, temos que correr atrás, porque o mundo é nosso. Não dá pra esperar que Deus resolva tudo. 

Consegui convencer meu amigo daquilo de que não tinha tanta certeza, mas fiquei matutando. Então resolvi mergulhar um pouco mais no assunto. Descobri que um tal de Robert Sapolsky, cérebro de primeira grandeza vinculado à Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, andou estudando babuínos selvagens no Quênia e demonstrou como o estresse social afeta a saúde dos animais. Tempos depois, virou neurocientista e concluiu que livre-arbítrio não passa de lenda. "Somos frutos daquilo que não controlamos: nossa biologia, o ambiente, a interação entre eles", ele escreveu.

Faz sentido? – me perguntei – Será que a gente decide alguma coisa mesmo? E se pegar isso de que “somos frutos daquilo que não controlamos”, o que vai ser de nós numa sociedade onde chafurdam elites (com o perdão da palavra!) empresariais, políticas e judiciárias, agindo em benefício próprio com suas artimanhas em produzir verdades a granel?

E quem não quer um pouquinho mais de liberdade nessa vida? Mas será que temos mesmo liberdade de escolha? Falo desde decidir entre café com ou sem açúcar, salsa ou coentro, até os grandes dilemas éticos, morais e políticos.

Essa discussão do livre-arbítrio saiu das mãos dos filósofos e teólogos e caiu no colo dos neurocientistas. E eles agora questionam se realmente a gente escolhe alguma coisa. Dizem que nosso cérebro decide antes de a gente notar. Igual o coração, que tem vida própria, bate quando quer, até que certo dia...  

Mas o que é escolher conscientemente? Filósofos e neurocientistas estão numa disputa danada. Os filósofos acham que os neurocientistas só arranham a superfície da questão. Os neurocientistas respondem apelando para o antigo bordão de compadre Washington, do antigo grupo musical É o Tchan!: “Sabem de nada, inocentes!” 

No futuro, tudo indica que será possível prever decisões antes mesmo de a pessoa saber. Vem aí uma revolução filosófica! 

Decisões complexas, no entanto, como juntar as escovas de dentes com a pessoa amada, escolher uma carreira, cometer um crime ou romper um relacionamento, continuarão um emaranhado de escolhas e reflexões. 

Talvez essa confusão toda seja apenas um nó na nossa compreensão da consciência humana. Afinal, se somos aquilo que não controlamos (a herança genética, o ambiente e a interação incluídos), então o livre-arbítrio “irresponsável” pode nos estimular a cometer sem culpa alguns pecados capitais. A gula e a luxúria, por exemplo.

Quem sabe, quando este mundo for repaginado, a gente pare de tentar convencer os outros daquilo em que nem acredita. Tem tanta coisa que fazemos sem pensar que é pecado, mas ser intelectualmente desonesto está virando prática abusiva, assédio moral, pois pode expor alguém a situação constrangedora.

 

Já desejar a cara-metade alheia, como diz o meu amigo baiano, é injustamente classificado desde que o mundo é mundo. Segundo ele, precisaria ser excluído da lista. “Que seja pecado avançar sem o consentimento, mas só cobiçar de longe, sem tocar num fio de cabelo da criatura, meu Deus, não deve ser pecado. E o livre-arbítrio, como fica?” 

 

Fato é que, mesmo aqueles que não acreditam em livre-arbítrio e acham que está tudo predeterminado, que não se pode fazer nada para mudar o que foi escrito nas estrelas, ainda olham pros dois lados antes de atravessar a rua. 

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A flauta que fez

Para celebrar o centenário de Altamiro Carrilho (1924 – 2012), o gênio da flauta transversal, a Casa do Choro, no Rio de Janeiro, está lançando um site com o acervo particular do músico, doado pela família à instituição. São gravações, manuscritos, partituras, fotografias, troféus e objetos pessoais, catalogados pelo pesquisador Tomaz Retz, agora ao alcance dos fãs do mais antigo gênero de música popular urbana do Brasil: o choro.


Reprodução/YouTube


Que manhã inesquecível em 1998, no Recife, aquela sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho! De noite, ele se apresentaria para convidados do Banco do Brasil na cobertura do prédio onde a Avenida Rio Branco cruza com o Cais do Apolo. Um lugar iluminado, à beira-rio.

 

Altamiro, com mais de 100 discos, fitas, CDs e sei lá mais o que gravados em 60 anos de carreira, dois anos antes havia participado do Projeto Tom Brasil. Uma ação de marketing cultural que reuniu uma seleção de craques da música instrumental brasileira, incluindo Armandinho, Dominguinhos, Raphael Rabello e outras feras.

 

Dava para notar que, muito mais que um instrumentista famoso, eu estava diante de um cara no ápice da maturidade (74 anos), ainda apaixonado pelo que fazia e de um bom humor contagiante. 

 

Contava histórias impagáveis. Um dia, dizia ele, sofrendo horrores com uma apendicite, foi levado de ambulância ao hospital, no Rio de Janeiro. Lá, enquanto era anestesiado, só pensava em como iria pagar a despesa, já que a situação financeira nunca foi lá essas coisas. Mas quando acordou, o médico, todo sorridente, acelerou sua recuperação ao dizer que a conta já tinha sido paga: ao lado do pai, de quem herdara o gosto pelo choro, ele curtia os discos de Altamiro desde criança. 

 

Gratidão é algo interessante. Geralmente as pessoas preferem retribuir um dano com um coice a agradecer, com o coração, um favor. Talvez porque ser grato pesa mais do que querer se vingar. Poucos enxergam que, ao receber um benefício com gratidão e reconhecimento, já quitam parte da dívida na origem.

 

Mas até as boas conversas chegam ao fim. Quando ofereci de presente a Altamiro uma caneta chique, com a logomarca do patrocinador do evento da noite, ele sorriu e desandou a falar de como se tornara conhecido no mundo todo, depois de rodar países como Alemanha, Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, México, Portugal, União Soviética e mais um montão de lugares. 

 

Numa turnê em 1963, um famoso maestro russo ficou encantado depois de assistir a um espetáculo em Moscou e fez questão de cumprimentá-lo no camarim, afirmando que acabara de ouvir um dos melhores flautistas do mundo. Resultado? Teve que esticar a estadia por mais três meses por causa de tantos convites para shows.

 

No último dia, o famoso maestro o convidou para um café da manhã. Os russos são conhecidos pela sua hospitalidade. Gostam de receber amigos e mesas fartas são o atributo principal desses encontros. Mesmo que seja apenas um encontro amistoso, modesto, é comum, ao final, oferecer um mimo ao visitante que seja muito relevante para o anfitrião em termos afetivos. 

 

Altamiro recebeu uma velha caneta-tinteiro, com a ressalva de que ela havia assinado diplomas de grandes músicos russos. “Que presentão, hein!?”, pontuou o flautista brasileiro com os olhos marinando, dizendo que quase se ajoelhou diante do russo.

 

Ao chegar no Rio, um duro golpe: sua mala tinha sido violada e levaram a caneta que ele escondera entre meias e cuecas. E um dos maiores divulgadores do nosso choro, inconsolável, tomou o rumo de casa, onde se trancou no quarto por dois dias e chorou, chorou como nunca, segundo ele.

 

Pensando bem, o que esperar de uma nação que, anos mais tarde, acordaria estarrecida com a notícia de que o mais importante ícone do futebol (o troféu Jules Rimet, conquistado em definitivo após três vitórias em Copas do Mundo, em 1970) havia sido roubado e derretido?

 

A estatueta com 3,8 kg de ouro estava na sala da presidência da CBF, no prédio da Rua da Alfândega, no Rio, onde funcionava a entidade. O vidro à prova de balas da vitrine não serviu de obstáculo aos ladrões, que quebraram a moldura de madeira e levaram inclusive outros três troféus. O roubo foi considerado escandaloso pela facilidade com que os ladrões entraram e saíram do prédio carregando o maior símbolo da história do futebol brasileiro.


Embora a conexão entre um roubo e o outro possa parecer forçada, a comparação com a perda pessoal de Altamiro reflete uma questão cultural e histórica bem mais ampla. Triste Brasil.

 

Mas voltemos à sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho, há 25 anos. Preciso contar que ele esqueceu, na sala em que conversamos, a caixinha com a caneta que ofereci.  

 

Não lhe fez falta, imagino. A que fez, era outra. Tinha a tinta da gratidão e do reconhecimento no bico da pena. 

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Coisa para poucos

Ultimamente, minha maior aflição tem sido a hora de ir para a cama. Mas antes que alguém insinue que isso tem a ver com a proximidade de meus 66 anos, adianto que são as dores lombares as verdadeiras vilãs dessa novela. 


Ilustração: ChatGPT


Quase todo dia, às quatro da madrugada, minhas costas recusam qualquer tipo de colchão, por mais confortável que seja. Só aceitam de bom grado as curvas de uma rede pendurada na varanda, que se torna o refúgio perfeito, numa afronta à lógica e ao senso comum.

 

Costas, aliás, que se fazem de míopes quando saio para a caminhada matinal, diante de tantas criaturas que dormem ao relento na dureza de papelões estendidos em bancos e nas calçadas, vencidas pelas desigualdades que as ruas escancaram, ainda que a brisa morna queira adocicar a cena. 

 

Costas que reconhecem, inclusive, que na lista das melhores coisas para se fazer nessa vida, duas dependem de um bom local para se deitar. A segunda é dormir, esse deleite ainda isento de impostos, tarifas e taxas. É natural, portanto, que as dores lombares mexam com o humor de qualquer um, e não seria diferente comigo. 

 

Há quem sonhe com um príncipe encantado (ou uma princesa) que leve a sua cara-metade no colo para a cama e, depois de tudo, faça uma faxina na casa enquanto ela tira um cochilo. No meu caso, isso é impensável. A minha não perde um minuto de vigília, e eu jamais ousaria despertá-la para tais façanhas. 


Porém, antes que alguém pense bobagens, registro que considerações sobre meu peso estão educadamente dispensadas. Aliás, minhas dores podem estar com os dias contados, pelo que andei lendo sobre uma espécie de “luxo de dormir” chamada Alaskan King Size, que virou sensação nas redes sociais. 


Esse colosso industrial mede 2,74 metros tanto de cumprimento quanto de largura, fazendo as camas king size brasileiras, de apenas 1,98 m x 1,85 m, parecerem brinquedos de bonecas (nem sei se ainda existem).

 

Curioso é que os tamanhos variam ao redor do mundo, e nos Estados Unidos, levam nomes inspirados nos estados de origem – uma Texas King, uma California King e, claro, a gigantesca Alaskan King, batizada em homenagem ao território glacial no extremo norte do Planeta.


Abro aqui um parêntese: tem líder político mundial afirmando que o Alasca é território russo invadido por norte-americanos e que a Rússia tem todo direito à reintegração. É mais uma manobra para tentar reacender o orgulho em baixa de uma nação e, quem sabe, justificar novas ações colonialistas. A indústria bélica mundial esfrega as mãos, mas não perco mais meu sono com isso.   

 

Volto à cama Alaskan King. Virou curiosidade exótica entre os brasileiros. Não faltam comentários divertidos de internautas: um brinca sobre a necessidade de um Uber para cruzá-la na diagonal, outro ironiza sobre a dificuldade de encontrar lençóis, e um terceiro sugere que, pela "extensão territorial", deva ter seu próprio IPTU, martírio que, junto com o IPVA, nos lembram de que não somos donos de nada nem no capitalismo de mercado.

 

Esse “latifúndio” é vendido como item de luxo ou solução para famílias numerosas, podendo custar o equivalente a um rim ou um pedaço de fígado, especialmente se dotados de personalizações e materiais nobres. A marca Purple, por exemplo, estima que uma cama custe mais de 15 mil dólares – pequeno tesouro, convenhamos. Caso de o sujeito perder o sono, com ou sem dores lombares.

 

Mas tem gente que não se encanta com essa vastidão amazônica. Uma usuária, falando sobre suas relações poliamorosas, lamentou que a Alaskan seja grande demais até para o trisal de que participa, ironicamente refletindo uma realidade moderna onde três salários mal cobrem as contas do mês. “Ela é tão grande que para dormir de conchinha são necessárias umas cinco roladas para alcançar o outro lado”, queixou-se. 

 

Toda essa história me remeteu ao primeiro grande salto de qualidade em minha dormida cotidiana: quando troquei uma rede, num quarto sem janela nem ventilador, por uma cama de campanha dobrável, revestida em lona verde, com o bônus de uma espiral da marca Sentinela para espantar muriçocas, apesar do risco de morrer carbonizado. Inesquecível, ainda assim, mesmo porque não havia naquela época o menor sintoma de dores lombares.   

 

E enquanto pesquisava sobre um remédio sem contraindicações para a minha maior aflição ultimamente, dei de cara com a propaganda da Alaskan King Size, que foi ganhando corpo como alternativa tentadora para as minhas madrugadas insones.

 

Acontece que o recente reajuste das aposentadorias do INSS, na casa dos 3,7%, recomenda que devo continuar fiel à minha velha rede, no gozo de uma das duas grandes alegrias da vida que dependem de um lugar aconchegante para se deitar.

 

Pois se existe uma coisa que pode dar uma ideia de céu, de bem-aventurança, de paz entre as criaturas de boa vontade, é acordar de um sono profundo e restaurador sem dor alguma, nem na alma. Coisa para poucos.



quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Sábios populares

Deus é testemunha de que não sou de ostentar, não quero ser metido, mas sou nordestino, filho de maranhense casado com paraibana (que um dia me levaram, ainda menino, para viver em Alagoas), de quem herdei a pitada cigana que me deu a graça de ainda virar pernambucano e baiano, mais adiante, antes de mergulhar de cabeça no caldeirão cultural brasiliense. 

 

Nessas andanças todas, colecionei alguns achados incomuns – ditos populares, provérbios e outras expressões sábias que nem o Aurélio, o Houaiss ou o Michaelis explicam. Cada um mais original que o outro, anotados ao longo de décadas de ouvido atento.

 

O linguajar falado no Nordeste tem seu charme único, diferente do resto do Brasil, mas o português continua sendo o fio desencapado que nos une como nação. Nem sou especialista no riscado, mas estou seguro de que essas tiradas linguísticas são a pimenta e o sal que temperam a comunicação de nossa gente.

 

Vou listar aqui algumas pepitas raras que recolhi na grande viagem e guardei no fundo da mala de minhas melhores lembranças. Preparem-se, principalmente aqueles que ainda não tiveram a ventura de experimentar do Nordeste (tudo tem seu tempo, não desanimem!). 

 

Lá estava eu, começando a carreira no setor de cadastro de um banco, onde tinha que apurar antecedentes para firmar juízo sobre a idoneidade dos clientes nos fuxicos de uma cidadezinha


Quando alguém até parecia ser boa pessoa, mas tinha fama de vagabundo ou velhaco, por causa de deslizes de maior ou menor gravidade, eu me via obrigado a buscar nos manuais de serviços termos mais polidos para conceituá-los, mesmo convicto de que seria bem mais assertivo se assentasse aquilo que ouvira:

– É cheiro de canto de unha.

– É de dar caganeira em bode.

– É pior que falta-de-fôlego.

– Não dou nele um dedal de mel-coado.

– Não vale a bufa de uma muriçoca.

– O cabra é cano-de-esgoto.

– Pense numa carne-de-cabeça.

 

Um dia, em meio a uma reunião, escutei alguém criticar o comportamento de um novato que “vivia entrando onde não era chamado” (ou “se metendo em conversas acima do seu nível”). Dizia-se que o sujeito era “atravessado que só pau-de-lata d’água”. Meia hora depois, inconformado com a “insistência” do intruso em permanecer no recinto, alguém soltou: “O cara é feio e saliente que só bico de chaleira. Parece o cão chupando manga!”. 

Ilustração: Jessier Quirino

 

Mais tarde, quando visitava comerciantes vinculados a um programa de apoio a pequenas e médias empresas, ouvi de alguns, invejosos dos “segredos” de seus concorrentes, classificarem “adversários” com frases impagáveis:

– Aquele ensina jumento a deitar com a carga.

– Ele vive dizendo que gosta de ouvir a freguesia. Escuta mais que vizinha solteira.

– Esse aí ensinou rato a tirar manteiga da garrafa com o rabo.

– O preço dele até que é bom, mas o bicho é mais grosso que pescoço de carreteiro.

– Taí um que puxa leite em cabra morta!

 

Conheci um zootecnista que demorava uma vida e meia para analisar um projeto de investimento, procurando pôr obstáculos em tudo. Nada lhe dava maior prazer do que emitir parecer contrário à liberação de uma operação de crédito. Um dia, escutei seu chefe, já sem paciência com a demora na análise de um caso, desabafar: “Esse galego é como barata; não come, mas bota gosto ruim em tudo. Vou ter que arranjar ‘Detefon’ (famoso inseticida de uso doméstico)”.

 

Sobre quem passava por dificuldades financeiras (aliás, não sei hoje em dia, mas antigamente “bancário apertado” era pleonasmo), ouvi comentários que traduziam perfeitamente o aperreio:

– Cantando coco sem saber da toada.

– Fazendo cruz na boca.

– Liso que só bochecha de anjo.

– Não tem um couro pra morrer em cima.

– Tá com o beiço no prego.

  

Já próximo da aposentadoria, estive em várias cidades do Norte/Nordeste, negociando convênios de prestação de serviços com entes da administração pública vinculados aos três poderes da República. 

 

Um secretário municipal, que morria de medo do prefeito, foi bastante sincero ao me dizer que não "daria um pio" sobre nada relacionado a sua área sem antes ouvir o "chefe". Justificou-se: “Em tempos de vassouradas, é melhor ficar do lado do cabo” 


E alguns interlocutores desses entes públicos, na ânsia de conhecerem as “novidades” oferecidas a outros estados e municípios, abriam a conversa alertando que com eles a coisa seria diferente: 

– Besta é coco, que dá leite sem ter peito.

– Bobo é sabonete, que se acaba pra limpar os outros.

– Não mamei em carreira de peitos.

– Quem tem filho barbado é camarão. 

– Quem quer mamar que carregue a mãe na garupa.

 

Louvados sejam esses sábios populares, minha gente! O linguajar de qualquer região lateja neles mais claro, curto e reto, do que se pensa. 


Pelo que escutei, dá para imaginar o que ainda existe de pepitas incrustadas por aí. Só os cegos, moucos e mudos não se deram conta disso.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Azar de quem não crê!

Sim, existem histórias tão surreais que parece que são inventadas. Como a de Manezinho, um menino cabeçudo, dentuço, míope, cerca de 12 anos de idade, que apareceu no começo do ano passado, sem documentos, vagando pelas ruas do Pontal da Barra, no entorno da lagoa Mundaú, na capital alagoana.

 

Meses depois, sofreria uma cirurgia para ressecção de um tumor cerebral. E o vidro da porta da sala cirúrgica ficou repleto de curiosos, todos querendo vê-lo falar enquanto era operado. Muitos, inclusive, diante do que ouviam, achavam que o caso se agravava com o correr dos minutos.

 

 “Eu sou minha imaginação e meu lápis – dizia ele em voz alta no leito cirúrgico, ora mirando os médicos, ora a plateia sob espanto –. “Quando o lápis acerta um erro, ele percebe e grita por uma borracha... Desaprender oito horas por dia ensina os princípios... Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo da estrada. Gosto do desvio...” 

 

Orientado pelo neurocirurgião, o menino matraqueva sem parar durante o procedimento, para garantir que nenhuma área do cérebro fosse afetada. “Tenho um senso apurado de irresponsabilidades… Só não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras...” – declamava.


A certa altura, lhe perguntaram se recordava de seu local de origem. Ele repetiu o que vinha dizendo desde que apareceu: “Não me lembro. Sei que passava o dia ali quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei... Eu queria fazer para mim uma naturezinha particular tão pequena que coubesse na ponta de meu lápis. As coisas que não existem são as mais bonitas...” – pontuava.


Ilustração: ChatGPT


Uma primeira convulsão aconteceu em março. "Ele estava dormindo, acordou de repente e se estatelou no chão” – explicava “Tia” Stella, uma artesã simpática que lhe deu casa, carinho e comida –. “Chamei a ambulância e os médicos disseram que poderia ser estresse... Bastava um comprimidinho”.

 

Dois meses mais tarde, veio a segunda convulsão, que também não foi investigada. Em julho, ocorreu a terceira, da qual o menino não lembrava nada do que houve antes. Conversavam em casa, após o almoço. Ele se levantou para pegar café no fogão e acordou no hospital, internado para exames, pois caiu e ficou um tempão desmaiado. Ela o livrou de bater a cabeça no chão. 

 

No hospital, decidiram fazer uma ressonância, que revelou um tumor na região do cérebro que controla a linguagem. “Quando o doutor disse que precisaria ser operado, fiquei preocupada – disse “Tia” Stella – Só procurei saber se afetaria a voz de Manezinho. Daí a ideia do procedimento em que ele pudesse ficar acordado...” 

 

Resolvi checar a história que me contaram e o próprio cirurgião revelou que era impossível não aplaudir o moleque ao final de cada “esquisitice” dita, ainda que incompreensível para alguns. Precisou solicitar que falasse com menos empolgação, pois mesmo com a cabeça fixa, a mesa cirúrgica se mexia com a intensidade da voz. E não parava: “Queria que a minha voz tivesse o formato de canto... Só uso a palavra para compor meus silêncios.” 

 

O médico disse ainda que o menino recebeu anestesia e ficou desacordado apenas na primeira parte do procedimento para a neuronavegação com um computador que auxilia na localização do foco, na incisão e na abertura do crânio. Na sequência, a sedação foi reduzida e ele acordou, passando a responder a perguntas e executar algumas ações, como ler, escrever e falar. 

Descobri que a técnica cirúrgica empregada com o paciente acordado existe há algumas décadas nos grandes centros e objetiva diminuir sequelas neurológicas, comprometimento funcional e agravos dos casos.  


Durante a cirurgia, os pacientes são testados em atividades básicas como responder perguntas ou correlacionar figuras. Em alguns casos, é possível fazer o mapeamento antes da cirurgia, por meio de ressonância magnética, delimitando as regiões do cérebro relacionadas à fala ou às funções motoras, como também as fibras que conectam essas áreas. 

 

No final da cirurgia, “Tia” Stella quis saber se Manezinho sentira medo. Ele balançou a cabeça negativamente e completou: “As folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes... Não preciso do fim para chegar. Do lugar onde estou já fui embora...”

 

Já era madrugada quando ele sumiu como que por encanto da UTI, para perplexidade inclusive de “Tia” Stella. Ela suspirou ao encontrar um pedacinho de papel sobre uma almofada, olhando para a janela, de onde se via, na penumbra, um pé de manga "carregado": “Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina... Aonde eu não estou, as palavras me acham.” 

 

Ah, chegou a hora de dizer que esta é uma daquelas histórias inventadas, mas cem por cento verdadeiras. Azar de quem não crê! Eu só duvido de mim mesmo.


Nota: Texto inspirado na obra do poeta mato-grossense Manoel de Barros (1916 – 2014), autor, dentre outros, de O livro das ignorãças (1993), Livro sobre nada (1996) e O fazedor de amanhecer (2001).



quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Aonde iremos?

Diz o escritor Ruy Castro que frases feitas são aquelas que entram por um ouvido e saem pelo outro sem um estágio intermediário no cérebro. Mesmo assim, anote aí: tudo evolui na natureza. Tirando, claro, certas figuras que conhecemos. 

Nós, humanos, não somos exceção – ainda que alguns dos nossos hábitos façam pensar o contrário. Depois de milênios, aqui estamos, bem diferentes de nossos tataravós. Não só demos uns pulinhos na árvore genealógica, acompanhando gorilas e chimpanzés, mas também nos empoleiramos, com todo o nosso charme, no topo da cadeia alimentar.

Se nossa memória fosse um pouco melhor, talvez nos lembrássemos daquele dia em que descemos das árvores para dar uma voltinha no chão. Ficamos de pé, esticamos as pernas, encolhemos os braços e, ao longo da jornada (obrigado, fogo, roda e bússola!), nosso cérebro sofreu um upgrade que faria qualquer software de última geração corar de inveja. O resultado? Um salto enorme em aprendizagem e socialização.


Avançamos tanto que começamos a trocar ideias, domesticar animais (e alguns chefes, vizinhos etc.), criar sociedades e, veja só, regras de convivência. Cruzamos oceanos, exploramos o espaço e, vira e mexe, uns aos outros, com uma facilidade impressionante.

Mas, o que o futuro nos reserva? Será que partimos para uma versão 2.0 de nós mesmos? Além da seleção natural, que outras colheres mexem a panela de nosso caldo genético? Uma coisa é certa: assim como escalamos o pico da montanha evolutiva, há sempre o risco de um escorregão. E qualquer vascaíno pode dar uma aula sobre quedas e recomeços.

Comparados aos nossos ancestrais hominídeos, somos mais altos. Uma pesquisa de 2016 da revista eLife mostra isso: os holandeses cresceram em média 19 cm em um século, os asiáticos até 20 cm. E nós, brasileiros? Bem, ganhamos uns 8,6 cm – avanço modesto, porém melhor do que nada! Nem vou falar do crescimento lateral, para não ferir suscetibilidades após as festas de fim de ano.

Esse "viés de alta" parece estar ligado à dieta: mais proteínas, menos miojo. Mesmo enquanto uns se fartam de nutrientes, muitos ainda esperam um pedaço de pão. E ser mais alto tem seus desafios – problemas nas juntas, certos tipos de câncer. Mas os baixinhos também não vão sumir do mapa, porque, afinal, genética é importante, mas não é tudo. Guerras, fome e doenças ainda dão as cartas nesse jogo evolutivo.

As mudanças não param por aí. Estamos ficando mais franzinos e curvados – dizem que vamos acabar nos transformando em emojis devido ao uso excessivo de mensagens eletrônicas e de páginas da web. Você já viu dedos com aparência de tentáculos de polvo por causa da digitação? E a Academia Americana de Oftalmologia avisa: até 2050, metade dos seres humanos pode estar usando óculos graças à obsessão por telas.

Um estudo de 2019 da Universidade de Potsdam, na Alemanha, sugere que a virtualidade excessiva pode nos levar a uma vida sedentária e ao ganho de peso. Nosso esqueleto enfraquece, os cotovelos encurtam. E nossos pés, antes acostumados a andar descalços, agora estão mais longos, fracos e achatados por conta da rotina moderna. E ainda tem quem use sapatos altos, apertados, de pontas estreitas. 

Quanto ao crânio, também entrou na onda das mudanças. Com comidas mais macias, nossas mandíbulas e dentes deram uma encolhida. Isso facilitou a fala, mas nossa mordida anda cada vez mais frágil, se comparada a outros animais com estrutura óssea similar. Exceções para Mike Tyson e Luisito Suárez.

Para não dizer que só falei de horrores, a novidade é que recentemente alguns  cientistas descobriram que um macaco pode reproduzir a fala humana, graças ao seu trato vocal capaz de emitir os mesmos sons que nós. Essa descoberta, publicada na revista Science Advances, pode ser um sinal de que, talvez, os macacos tenham algo a nos ensinar sobre a humanidade. Se não enveredarem para o funk, o pagode ou o sertanejo universitário, tudo bem!

Já se sabia que traços de comportamento humano podem ser encontrados nos símios. Eles escolhem amizades baseadas em afinidades, se revoltam com injustiças e têm consciência da morte. Mas, falar? Opinar sobre a vida alheia ou discutir a relação com a cara-metade? Isso é revolucionário. Daí a assistir reality shows será um pulo.

Através do uso de imagens de raio-X, os pesquisadores 'desenharam' a anatomia vocal do nosso primo distante. Após examinarem as imagens, eles identificaram 99 diferentes possibilidades de expressão vocal, incluindo as cinco vogais. Já pode até arriscar compor uma nova versão do famoso “Prefixo do Verão” (Aê, aê, aê, aê... Ei, ei, ei, ei... Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô) para os adeptos do axé music.

Brincadeiras à parte, com os 'primos' entrando no jogo, quem sabe não encontraremos soluções mais inteligentes e racionais para os grandes flagelos da humanidade – doenças, fome e guerras – e adiamos o fim da aventura humana na Terra.

No fim das contas, mais do que os humanos, são os bichos que mais nos ensinam sobre o que realmente significa ser humano.

Arte ou macacada?

Na última quinta-feira, enquanto tentava acompanhar uma aula por videoconferência, recebi de meu amigo, o espirituoso jornalista e escritor ...