quarta-feira, 3 de julho de 2019

Zelito


Dar uma gargalhada, daquelas de duas ou três repetições, com dor na barriga e risco de incontinência urinária, a gente só consegue quatro ou cinco vezes por ano e olhe lá. Mas há quem consiga isso quase todo dia.

Guardo na memória uma galeria de tipos inesquecíveis, dignos do realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez (1927 - 2014). Um deles é Zelito, menos conhecido como José da Silva, ex-funcionário do Banco do Brasil com quem convivi na agência Maceió-Centro, em meados dos anos 70, que possui cadeira cativa nesse seleto time.

O avô de Zelito, no primeiro terço do século passado, seguro de que fazia um bem inestimável ao neto, chamou o menino no quintal, pigarreou, cuspiu dentro de sua boca e vaticinou:

— Meu neto Zelito, pode engolir o cuspe que você vai ficar curado de todas as doenças do mundo, ouviu?!
E a criança sobreviveu. Às gargalhadas, contava isso aos colegas, tempos depois, na maior naturalidade.


Técnico agrícola dotado de inteligência bem acima da média, logo após ingressar no banco virou fiscal de operações rurais em Palmital, Oeste do Paraná, pequena cidade em que trabalhou por alguns anos. Retornou para o Nordeste transferido para Alagoas, uma das regiões mais desiguais do planeta, onde o baronato do açúcar ainda dava as cartas como donatários de uma das mais paradisíacas capitanias hereditárias. 

Zelito era brilhante quando discorria sobre o absurdo de brigas por terras num país com dimensões continentais. Para ele, o solo só servia para sustentação das plantas, que a rigor nem disso precisavam para crescerem e frutificarem. 


Deve ter ouvido falar muito de disputas que acabaram em mortes no interior de Sergipe onde nasceu. Para ele, fartura na mesa e paz no campo tinham nome: hidroponia, técnica de cultivar plantas sem solo, onde as raízes receberiam uma solução nutritiva balanceada com todos os nutrientes essenciais. Um dos principais benefícios seria o incremento na densidade de plantas por metro quadrado de cultivo. 


Era genial também quando defendia o plantio de lavouras consorciadas (gramínea e leguminosa) a pretexto de fixar o nitrogênio atmosférico, quando, na verdade, queria convencer usineiro e grande fornecedor de cana-de-açúcar de que era bom para todos deixar o bóia-fria plantar um pouco de feijão de corda no meio dos canaviais para consumo de alguma proteína vegetal por sua família.



Ria de tudo e de todo o mundo, escancaradamente, apesar de lhe faltarem os incisivos centrais superiores. Hoje, está bem mais elegante, com o "teclado" sem falhas, devidamente corrigido. 

Na época em que bancário endividado era pleonasmo, Zelito vivia seus apertos e orientava sua mulher a, todo mês, fazer uma feira "de mercearia" robusta numa cooperativa de consumo que havia em Maceió, que só recebia no mês seguinte, por meio de consignação em folha de pagamento. 


Certo dia chegou ao trabalho carrancudo, aparentemente tenso e, no meio do salão do setor de operações, onde haviam pelo menos 30 colegas, falou alto e em bom tom pra quem quisesse ouvir:

— Estou num dilema danado: não sei se deixe a mulher ou a cooperativa — e caiu na maior gargalhada.

Muito espirituoso, vira-e-mexe Zelito também criava trocadilhos, embora cada um pior que o outro. Do tipo: "nesse país, cana dá?" Ou então: Seu Grava tá?”, “o gato mia, já o methiolate.” E perturbava os coitados dos menores estagiários com um dos mais infames: “você é o tal que só usa lifeboy ou você é o boy que só usa luftal? É de proveta ou é natural.”


Havia nascido na Inglaterra Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta”. Estima-se que, desde que a menininha inglesa veio ao mundo, em 1978, cerca de dez milhões de pessoas tenham nascido até agora por meio de fertilização “in vitro”. Só Zelito mesmo seria capaz de associar o cargo novo criado pelo banco (Menor Estagiário) com a técnica médica revolucionária descoberta há mais de meio século.


Seus relatórios de fiscalização eram pérolas de conhecimento de causa mas sem qualquer lapidação estética. A ponto de, certa vez, prestes a concluir um trabalho, inserir entre parênteses no rodapé: “a tinta da fita acabou, mas, depois da troca este laudo segue, no verso”. E a vida seguiu na batida de sua "Remington", entre gargalhadas e trocadilhos.

Conversei com ele outro dia e fiquei feliz ao constatar que continua muito bem-humorado, lúcido, transpirando entusiasmo por todos os poros. Aos 90 anos, garante que vai quebrar o recorde de seu avô que lhe “curou” de todos os males e viveu até os 106 anos porque “doença ele não tinha, mas Frankstein”. E com mais esse trocadilho de doer, caiu numa sonora e contagiante gargalhada.


Fica no Mediterrâneo o paraíso dos centenários. A Sardenha, região autônoma da Itália formada por mais de 350 municípios, é a campeã mundial de longevidade, com um percentual de habitantes que passaram dos 100 anos três vezes maior do que no resto do mundo. Genética e hábitos saudáveis já foram apontados como principais componentes desse privilégio. Recentemente, pesquisadores encontraram mais uma explicação: por trás de tantos anos de vida, estão boas gargalhadas todo santo dia.

A origem dos "Silvas" é controversa. Há uma corrente que diz que o sobrenome surgiu no Império Romano para denominar habitantes de matas ou florestas  silva, em latim, é "selva".


Nunca se sabe, mas é possível que nos idos de 1500, na frota de Pedro Álvares Cabral que aportou na Ilha de Vera Cruz, tenha migrado da Sardenha a cepa que deu origem ao já lendário Zelito. 


27 comentários:

  1. Que figura.....Sensacional está cronica

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  2. Pessoas que semeiam alegria e tornam-se inesquecíveis por isso... que venha o recorde!

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  3. Zelito é uma figura bastante conhecida em nosso meio. Costumava me contar algumas histórias do tempo em que trabalhou com meu pai, nos anos 60 em Santana do Ipanema. Como você bem falou, Hayton, sempre com um sorriso no rosto acompanhado de sonoras gargalhadas!

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    1. Se sair pesquisando junto aos colegas que conviveram com Zelito, dá um livro, Jezrel, mas optei por mencionar apenas alguns casos que vi de perto e que bem sintetizam essa figura maravilhosa.

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  4. Sócrates já vaticinara: “nada leve demasiadamente a sério.”
    Poucas pessoas na vid têm compromisso com a felicidade e é bom demais conhecer uma dessas. Mesmo por crônica.

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    1. Está tão difícil encontrar pessoas assim, Dedé, que quando acontece merece registro inclusive com imagens marcantes como aquelas que você anda produzindo.

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  5. Conhecer o Zelito foi um privilégio que o BB me concedeu. Esta crônica relata exatamente o Zelito que conheci, inteligência, irreverência e alegria.

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  6. Zelito é essa figura alegre, divertida. Sempre que entrava no elevador da agência centro era dizendo trocadilho, contando histórias e dava suas sonoras gargalhadas. Quando os ouvintes pensavam em rir, ele já estava na metade de outra. Era uma metralhadora giratória.

    Conheci, Dona Nita, a esposa; e Suzana, a filha, que, atualmente, é professora da UFAL.

    O encontro, sempre, no Bompreço da Ponta Verde.

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  7. A Risoterapia é uma tecnica de comprovada utilidade para diversos tratamentos, principalmente para doenças da alma! Parabéns por mais esse texto leve e profundo, Hayton!

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    1. Zelito é avesso às redes sociais. Isso deve ajudar bastante na longevidade, certo Marina?

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  8. muito bom lembrar estás figuras que marcam nossas vidas.

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  9. Mais uma muito boa!
    “A potência intelectual de uma pessoa se mede pela dose de humor que ela é capaz de usar”.
    Nietzche

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  10. Boa!
    Mas esse método terapêutico do avô do Zelito me deixou deveras traumatizado. Hehehehehe!

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    1. Mas deve funcionar, certo? Olhe o sujeito aí aos 90 vendendo saúde!

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  11. Zelito!!! que lembrança boa,meu Amigo. E, saber que aos 90 anos, conserva aquela beleza interior que eu tive a honra de conhecer, premiou o meu dia. Parabéns pelo agradável texto, e pela sensacional recordação.

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  12. Grande cronista, Deus continue te abençoando essa memória abençoada em criar textos tão belos e tão contundentes! Mais uma bela crônica que merece todos os aplausos! Deve ser maravilhoso ser lembrado assim através de um texto tão bem escrito seu registro! Um abraço.

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    1. Zelito é lembrado com enorme carinho por todos aqueles que tiveram o privilégio de trabalhar com ele, Leda. Basta ler alguns comentários feitos sobre a crônica, que foi fluindo fácil à medida que lembrava de algumas passagens que vi de perto.

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    2. Hayton, pude observar os comentários sobre o Zelito, Gostei desse personagem real. Mais uma vez parabéns por seu texto maravilhoso!

      Um abraço

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  13. Você e suas crônicas maravilhosas! Como você lembra de tanta coisa com tantos detalhes? Me ensine a fórmula.

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    1. Relativamente simples, Peu: pra lembrar de tantos detalhes tem que prestar atenção, ouvir muito, gostar de caldo de sururu, pesquisar no Google e, se precisar, criar um pouco que ninguém é de ferro. 🤣

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  14. Excelente texto sobre essa pessoa maravilhosa e muito sábia.
    Trabalhei com ele na Agência Maceió Centro e por algumas vezes o acompanhei em vistorias de operações rurais. Experiências incríveis, sem falar em seus laudos bem elaborados dessas vistorias.

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  15. O velho BB era uma fábrica de figuras cujo álbum e sem parelha, saudade abranda com textos produzidos pelo titular deste espaço.

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  16. Está crônica me fez lembrar de meu irmão Enoch, seu tio é padrinho.Ele também de tudo fazia uma piada,levantando o astral de todos que o ouvia.Mesmo assim a terapia não foi suficiente para levá-lo à longa vida.

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  17. Que historieta gostosa. Eh seu Zelito. De velho morre é a idade. A gente morre é de rir.

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  18. Vamos praticar mais risadas. A risada relaxa o corpo e a mente.

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  19. A espontaneidade da risada do Zelito vem de sua idiossincrasia. Por se achar que é terapêutico, há uma "ciência" da risoterapia. Pessoas põem-se a rir (descontroladamente?) em cursos, com o objetivo de eliminar o estresse e a insanidade do mundo moderno. Nada mais distante do modo "Zelito" de ser, lidando com ótimo humor diante das agruras da vida.

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