quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Tudo ainda é possível!

Lembro-me de um antigo cartum, acho que publicado em O Pasquim, onde um pintor espanhol com olhos e sorriso de puro prazer se via diante de um imenso jardim com tela sobre cavalete, tintas e pincéis. Na legenda, a dimensão do desafio: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível!”. 

Ilustração: Umor

Para quem não sabe, o cartum era muito utilizado por jornais e revistas, no século passado, para sintetizar com alguns traços um ponto de vista, estimulando a reflexão e provocando riso sobre um tema qualquer da atualidade. É parecido com a charge, mas não retrata personagens conhecidos nem é ácido, irônico, com o comportamento humano e seus deslizes. 

 

São raros os momentos em que nos deparamos, tal como o pintor, com essa situação onde é possível construir o que queremos, mesmo sem trazer à cena nossas cicatrizes ou feridas abertas. Afirmar que “tudo é possível”, na maioria das vezes, não passa de profissão de fé.

 

Há quem goste de frases feitas do tipo “viva o presente, pois o futuro ainda não existe e o passado já passou”. Como se pudesse matar a sede de anteontem com uma gota d’água. Nem com gatos funciona assim, dado que têm medo de água morna por conta de algum banho quente ou gelado que vivenciaram. 

 

É difícil ater-se somente ao que se vê ou faz em determinado momento, sem recorrer à memória. É natural o sobrevoo sobre o passado para adoçar ou salgar narrativas, transformando fatos históricos naquilo que poderia ter acontecido e não aconteceu.

 


Não caio no lugar-comum de dizer que uma mentira bem contada tem o condão de se tornar verdade. Isso é outra coisa, típica de gente falsa, sem caráter. Não falo da mentira cruel, vil, que prejudica aos outros. Aceito apenas aquela que arredonda as quinas de um caso banal temperando-o com um pouco de humor, drama e pimenta, arte na qual Ariano Suassuna “é” mestre. 

 

Também não quero que acreditem totalmente naquilo que acabo de escrever e tomem como sentenças definitivas. Vira e mexe discordo até de mim mesmo porque ser intransigente com o que se pensa é coisa de doido. Noutras palavras, minha versão matutina sobre algo não bate necessariamente com a vespertina e não vejo nisso incoerência alguma. É caminhando que os sapatos e os calos se entendem.

 

Vejam vocês como é a vida! Um dia me contaram que eu nasci no país do futuro – tropical, abençoado e bonito por natureza! – e que esse futuro não tardaria a chegar. Se chegou, ninguém sabe, ninguém viu. Reservo-me o direito, portanto, de escarafunchar as possíveis causas disso e tentar arrancar o mal pela raiz.

 

Retrocedo então a bobina do filme (ok, isso não existe mais!) até 26 de janeiro de 1500, e o que vejo? O navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzon desembarcando na enseada de Suape, Cabo de Santo Agostinho, litoral sul pernambucano. Três meses antes de Pedro Álvares Cabral aportar no litoral sul baiano.

 

Noto que a Espanha não reivindica para si a descoberta de Pindorama, registrada por Pinzon e por outros cronistas historiadores como Pietro Martire d’Ánghiera. A contragosto, imagino, respeitará o Tratado de Tordesilhas, assinado com Portugal em 1494, que dividia entre as duas Coroas as terras “descobertas e por descobrir” fora da Europa.

 

Algo me diz que será melhor para todos, colonizadores e nativos colonizáveis, se, como citado no início do texto, diante da fartura de recursos disponíveis e em nome da Coroa espanhola, Pinzon declarar, em alto e bom som: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível!”. 

 

Quando decido puxar conversa sobre o assunto com Pinzon e o cacique tupi anfitrião, depois de uma caneca de cauim com ensopado de xaréu, a luz apaga – vem de longe o risco de apagões! , o filme embaça e a noite esfria. Pegamos no sono em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo.

 

Ao acordar, cinco séculos depois, percebo que os espanhóis foram os primeiros europeus a se estabelecerem no território dos atuais Estados Unidos, em 1492. A diferença de oito anos para Pindorama não condiz com a disparidade civilizatória entre as duas nações, nem com um exército de desesperados que, hoje, procura dar cores dignas à vida ainda que longe daqui. 

 

Dizem que escrever é pintar com palavras. O que faço não é pintura. Só esboço de minhas fantasias, feito um cartum, para provocar a reflexão de vocês diante da paisagem que se apresenta a nossas retinas fatigadas de tanta mentira, tanta força bruta. 

 

E se me disserem "viva o presente, pois o futuro ainda não existe e o passado, já passou", eu vos direi, no entanto, plagiando Belchior, que enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer "não” a tudo isso que está aí, digamos. E "sim" à luta que segue, ao sentimento que não pode parar.

33 comentários:

  1. Perfeito!!! Parabéns mais uma vez! Abraços, Hayton

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  2. Excelente crônica. Tudo é possível, inclusive nada de inesperado.

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  3. "Eu vejo o futuro repetir o passado
    Eu vejo um museu de grandes novidades
    O tempo não para
    Não para, não, não, não não para" (Arnaldo Brandão / Cazuza)

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  4. Sigamos em frente, em busca de nossas conquistas. Mais um texto show de bola!

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  5. Para ter futuro é necessário passado e presente, esquecemos de construir tais "batentes". A crônica é para ler, reler e com ela aprender.

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  6. E ainda na linha de Belchior, meu compositor preferido e citado no último parágrafo, não percamos a esperança de "viver as coisas novas, que também são boas", ainda que tenhamos que separá-las de tantas negatividades que encontramos hoje em dia.

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  7. Eu sabia que meus conterrâneos espanhóis não iriam me decepcionar. Deixaram pra Cabral essa bucha de canhão chamada Terra de Santa Cruz. Desde lá, é isso que nossos companheiros de jornada carregam, com as costas vincadas com ferros brasis.

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  8. Parabéns! A princípio mais uma bela crônica, mas com um profundo conhecimento e que nos transmite conhecimento.

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  9. Belo cartum Hayton. O passado é generoso, posto que permite “arredondar as quinas”, mas o futuro tem que ser construído. Abração.

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  10. Ótimo, Parabéns! Conteúdo para várias leituras, para uma reflexão e conhecimento.
    Vamos que Vamos!!!

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  11. Perfeito! Se precisasse, eu concordaria… rsrsrs
    Excelente!

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  12. De pleno acordo: é preciso dizer "não" a tudo isso que aí está.

    E como costumava dizer um nosso amigo: Vamos à luta, filhos da pátria...

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  13. Uma crônica de muita inspiração e pesquisa. Tirante a diversificação dos entorpecentes pós-Cauim, nosso destino tem sido afogar nossa esperança num mar de desilusões, que nem o próprio Belchior.
    Saudações a quem tem coragem.

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  14. ANTONIO CARLOS CAMPOS13 de outubro de 2021 às 09:23

    Como dizia Einstein, o tempo é relativo. Pois é mesmo. Cada um tem o seu próprio. O passado o presente e o futuro de cada um é sua impressão digital no universo. Não tem nenhuma outra igual. O grande mérito do futuro é o imponderável. Pode acontecer do tudo ao nada. Por isso estou sempre ansioso pelo momento seguinte. Vivo no futuro.

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  15. Prezado Amigo Hayton

    Ao ler mais uma de suas excelentes crônicas, me dei conta de que a frase “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível!” é pertinente de ser expressada também quando estamos diante da tela do computador com os dedos debruçados sobre o teclado para escrever algo.

    Penso que, também, quando o leitor coloca os olhos diante de um escrito, em uma intenção de leitura, “tudo ainda é possível”. É assim que o texto deixa de pertencer somente ao autor ao se oferecer para as infinitas interpretações possíveis que lhe darão os leitores.

    Já, diante da situação atual do Brasil, vemos que até o que parecia impossível acabou acontecendo...

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  16. Provocações necessárias! Como é difícil acordar calado, se na calada da noite me dano. Se esse silêncio todo me atordoa, atordoado eu consigo me manter atento?
    O que fazer com tudo isso que já sei? Como fugir do auto-engano?
    Mentiras sinceras me interessam?

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  17. Não há futuro sem aquilo que foi construído ou observado no passado. O presente é a etapa do ponta pé inicial rumo ao desconhecido. E o amanhã pode ser apenas lembranças do nada. Os espanhóis e portugueses cumpriram seus objetivos, mesmo que não plenamente realizados. Aos brasileiros restaram os papéis em branco dos possíveis cartuns, cujas elaborações nem sempre foram concluídas ou simplesmente tiveram as folhas rasgadas.
    Excelente crônica Hayton. Parabéns.

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  18. Se é fato que quando pensamos no futuro ele já passou, então, é provável, que o futuro não exista. E, se não existe, ele nunca chega. E, se chegou, foi para poucos. Talvez apenas para os donos das capitanias hereditárias que ainda teimam em nos governar. E, se "o passado é uma roupa que não nos serve mais" e que o futuro já passou, resta-nos apenas o presente. E o presente, "tá osso". Duro de roer e de comprar. Minha fé, quase cega, diz que vai passar. Tudo é possível.

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  19. Maravilhoso o texto. Muita inspiração. Parabéns

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  20. A cada quarta-feira você nos traz, meu caro Hayton, uma nova "pintura com palavras", para deleite dos seus leitores!
    Abbehusen

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  21. Excelente reflexão! Sábias palavras…” minha versão matutina sobre algo não bate necessariamente com a vespertina”…. somos seres em construção! Felizes daqueles que, a seu exemplo, têm a humildade de reconhecer isto!

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  22. Uau! Cartum excepcional!!! Bravo!!
    Será que apenas os hermetismos pascoais
    E os tons, os mil tons
    Seus sons e seus dons geniais
    Nos salvam, nos salvarão
    Dessas trevas e nada mais.

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  23. Longe de pretender me comparar com você, percebo entretanto que há convicções que nos unem, o que me deixa honrado, lisonjeado e até envaidecido.
    Sou resistente a pensamentos, frases que contém obviedades, assim como os ditos, escritos e verdadeiros tratados de autoajuda.
    Lembro de um pensamento determinante do Dalai Lama que diz - "SÓ HÁ DOIS DIAS NA VIDA EM QUE NÃO PODEMOS FAZER NADA, É ONTEM E AMANHÃ, PORQUE ONTEM PASSOU E AMANHÃ NÃO SABEMOS SE VIRÁ".
    Claro, isso é óbvio, mas é fácil achar que a vida se resume a tal e considerar o resto desimportante, as coisas se resolvem tão simplesmente?? Cada um com suas convicções...
    De resto, se escrever é pintar com palavras, você vai mais além, é um verdadeiro escultor...

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  24. Hayton, entre outras reflexões você me fez lembrar outro verso célebre de Caetano: "Coragem grande é poder dizer sim!". Vamos viver tempos difíceis que vão se somar ao último período doloroso e não podemos nos omitir. Grande abraço!

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  25. Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível! Desenhar com letras é uma arte espetacular... e você o faz com méritos. Passado, presente ou futuro, vale a oportunidade de enfeitar os olhos e deixar a mente sorrindo.

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  26. Hayton, comentários acima já falaram tudo... outro tiro certeiro seu que nos levar a refletir e ficar mais irado com os filhos da pátria que estão aí. Show, parabéns!
    Tiberio

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  27. Caro amigo Hayton, simplesmente Fantástico! Parabéns pela sua visão integrada e que nos permite refletir, traçarmos sentimentos e compartilharmos as nossas próprias opiniões, sem qualquer prejuízo de outras visões diferenciadas. Compartilhar reforça nosso ideal de evolução. Muito legal esta troca de ideias e de percepções que você gentilmente nos proporciona neste seu espaço tão especial. Show! Parabéns. Abraços, Ulisses.

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