Vídeos que circularam nas redes sociais em campanhas eleitorais passadas são como zumbis: levantam-se de suas catacumbas e, sem bater a poeira, voltam a atormentar a vida de seus protagonistas. É o caso de um produzido há poucos anos, que outro dia reapareceu nas telinhas.
Para atrair a atenção de eleitores e gerar a chamada mídia espontânea – quando uma pessoa, mercadoria ou marca é citada numa reportagem sem, supostamente, ter investido nisso um centavo –, políticos de todos os credos são capazes de beber licor de jenipapo com tira-gosto de sarapatel requentado para deixar transparecer que agem com naturalidade.
Há alguns anos, na luta para se reeleger prefeito de Salvador, o que deveria ser ato meramente político para ACM Neto virou piada, gozação, pilhéria ou qualquer termo jocoso que se queira utilizar, provocando rumores e risos nos botecos, ladeiras e terreiros da capital baiana.
No canteiro de obras do aeroporto internacional Luis Eduardo Magalhães, o pequeno burgomestre aparece risonho com uma enxada nas mãos brancas e delicadas, afeitas a cremes hidratantes, de unhas e cutículas bem aparadas, como se desse o peteleco inicial dos trabalhos.
Sapatos engraxados e dentro de um impecável terno azul-marinho, ACM Neto enrola-se todo ao tentar manter a brita e o cimento sobre a superfície da ferramenta. Parece confundi-la com uma vassoura, algo complicado para quem nunca varreu um quintal ou uma calçada. Enfim, mostra que, se tivesse chance, capinaria sentado. (Reveja a cena)
Certa vez, em Camacã, no sul da Bahia, em palanque onde autoridades civis, militares e eclesiásticas derretiam encharcadas na abertura da Festa do Cacau, vi bem de perto quando o seu avô, o velho morubixaba ACM, quase cometeu uma gafe do mesmo naipe.
A festa acontece todo dia 30 de agosto, quando se comemora a emancipação política local. Consta do programa uma disputa conhecida como “Quebra do Cacau”, onde trabalhadores rurais representantes de fazendas precisam quebrar a maior quantidade de frutos no menor tempo possível. Os vencedores, além de prêmios em dinheiro, ganham o status de os melhores da região. Os patrões, óbvio, estimulam a "brincadeira".
A vaidade é mel de tolos, mas até os sabidos se lambuzam. A disputa tem a ver com a colheita nas roças. Começa com a arranca do cacau com o auxílio do podão, espécie de lâmina que é colocada na ponta de uma vara enorme. O fruto possui casca resistente, que não se rompe ao cair no solo, sendo então recolhido e amontoado no que chamam de rumas.
Em seguida, iniciam a quebra. Uns cortam o cacau com facão, enquanto outros retiram as amêndoas, jogando-as em caixas de madeira que, quando cheias, seguem no lombo de burros para a sede da propriedade, onde são armazenadas. Virar Diamante Negro, Ferrero Rocher ou Sonho de Valsa é só questão de tempo, açúcar, leite e fogo.
Mas voltemos ao ponto, em agosto de 1999. Alguém cochicha no ouvido de ACM, então todo-poderoso presidente do Congresso Nacional, oferecendo-lhe um facão e uma baga de cacau. Sugere que parta o primeiro fruto ali produzido após a descoberta da solução para uma praga (a vassoura-de-bruxa) que quase dizimou as lavouras da região.
A casca do fruto, evidente, havia sido parcialmente cortada – é bom nessas horas nunca subestimar o potencial de vexames. Nem assim ACM se encorajou a pegar no cabo do facão. Provavelmente temia se automutilar decepando os dedos, mais finos e menos ásperos do que os de Irmã Dulce, que por toda a vida se devotou de alma e corpo a dar as mãos aos menos favorecidos da Bahia.
Com o riso amarelado feito a casca do cacau maduro, o mandachuva balançou o dedinho indicador, desistindo. Tinha mãos de quem nunca pegou nem em barbante, que dirá numa corda. O máximo de peso que enfrentaram foram pastas e dossiês. Mãos, no entanto, capazes de esganar, estrangular ou, no mínimo, beliscar bochechas, puxar orelhas de correligionários afoitos que tentassem desafiar a sua supremacia.
Tal como o neto, porém, nunca foi de pegar no cabo da enxada ou do facão. Dizem – não posso garantir porque nunca vi, não vou mentir! – que preferia esfregar as mãos alvas e mimosas quando se referia à “sua” Bahia, mais dele do que de todos os santos, lembrando aos seus discípulos: “aqui quem não é meu amigo, é meu inimigo!”.
Não por acaso ACM disse certa feita que "a primeira regra da boa briga é escolher o adversário certo"... diante do risco de apanhar na briga com cacau, ainda que de facão em punho, tratou logo de, malandramente, cair fora.
ResponderExcluirE, se não estou enganado, também disse: "amigos não têm defeitos. Adversários ou inimigos, se não os têm, a gente coloca". Toninho Malvadeza em estado puro.
ExcluirSim, não duvide da capacidade dos políticos!
ResponderExcluirSão “capazes”, até, de praticar uma boa ação, se a eleição estiver em jogo.
Mais uma aula de ACM, só devemos pisar em terra firme.
ResponderExcluirPolítica é coisa muito séria. Ou deveria ser. Vendo uma cena dessas, fico com a impressão de que certos políticos fazem questão de que não levemos a coisa a sério.
ResponderExcluirSobre astúcia política, um amigo lembrou-me de um episódio em que ACM e Jader Barbalho discutiam no plenário do Senado. Se revezaram na tribuna dizendo toda sorte de xingamentos e acusações um ao outro.
ExcluirInstado a comentar o episódio, o então presidente Itamar Franco declarou: “Acho que os dois estão dizendo a verdade…”
O mineirinho topetudo sabia das coisas. Vai-se ver também profetizava o que poderia estar acontecendo na nação polarizada três décadas depois.
Prezado Hayton, sua narrativa da cena do Neto é tão precisa que quase dispensa o vídeo. Confundir a enxada com uma vassoura é uma comparação perfeita.
ResponderExcluirEspetacular a narrativa.
ResponderExcluirAguilar
Dá pra notar num simples abraço num eleitor quem faz isso à vontade e quem só faz por obrigação.
ResponderExcluirEu acho que sacanearam o dito cujo, viu? "Olha pra cá, tome essa pá que tá tudo certo" E ele acreditou, pensando com segurança: "Nossa, tô arrasando aqui com essa pá ". Sem nem perceber o ridículo da cena. kkkkkkk
ResponderExcluirEu ri demais lembrando a cena. Aqui pelo Sul, a cena-desafio para os políticos é comer pastel de feira com naturalidade e entusiasmo. Rir é a melhor vingança. Dedé
ResponderExcluirPassam-se os anos, mudam os protagonistas, mas a lição é a mesma: nossa política é pobre, carente e ausente de líderes e gestores que trabalhem pelo bem-estar público. Uma bela narrativa para nos lembrar da importância do exercício de cidadania que, periodicamente, se inicia com o voto.
ResponderExcluirBem assim... kkk
ResponderExcluirÉ, como diria Tom Jobim, "o Brasil não é para principiantes". Embora a frase tenha sido usada para discutir o modelo paradoxal da cultura brasileira, vemos quão bem ela se molda à nossa realidade política. Os peixinhos reproduzem as gafes do peixe-mor e são aplaudidos por isso, ainda que se prestando ao ridículo. Triste realidade tão bem narrada em mais essa excelente crônica.
ResponderExcluirAo ler viajo nas leituras, vou interpretando (a minha maneira), imaginei a cena caótica, onde o citado, para agradar seus eleitores, comeu o maldito sarapatel requentado, saboreando como fosse seu caviar, acompanhado do licor de jenipapo. Ainda lambe o beiço!
ResponderExcluirApós, ao sol escaldante, pega a enxada, com suas mãos delicadas e hidratadas, e ao capinar, no esforço... Senta, borrando todo o seu terno de vime.
Bom se fosse real, pois, todo castigo é pouco para essa raça falsa.
Já começou temporada de comédias. Políticos se passando de trabalhador e santinho.
ResponderExcluirBom Dia, caro amigo Hayton e felizes leitores...
ResponderExcluirSem dúvida que "a vaidade é mel dos tolos e dos sabidos"... E dos que pensam que são "sabidos"... Esses, geralmente, vivem de nariz empinado... Lembro-me, bem, de suas recomendações, de outras épocas, caro amigo Hayton, com relação ao "manter o nariz na horizontal"... Enquanto não posicionarmos o "nariz" na horizontal, dificilmente enxergarem os espinhos caídos pelo chão...
Encantador o nível de cultura dos seus leitores. Tudo de acordo com o bom senso. Parabéns! Eu também gostei muito do texto.
ResponderExcluirConcordo com você, Abel. O nível dos leitores eleva o sarrafo toda semana e me obriga a tentar saltos cada vez maiores. Isso é bom!
ExcluirPenso que teremos muitas outras crônicas inteligentes, jocosas, atemporais e que irão nos estimular a refletir nessas eleições. Acreditar neles nunca! Perder a esperança, jamais!
ResponderExcluirMuito bom
ResponderExcluirTriste realidade política! Vem aí o horário eleitoral com muitas outras pérolas!
ResponderExcluirSupimpa! Não poderia ser tão oportuna. Eu aqui me deliciando durante a travessia da Baía de Todos os Santos e imaginando o eleitorado baiano lendo essa preciosidade. Creio que teria grande possibilidade de abalar a hegemonia do “grampinho” no atual processo eleitoral.
ResponderExcluirA crônica retrata bem a falsidade dos nossos políticos e a cena de Netinho com a pá , vê-se que ele não fez o menor esforço para parecer amigável na apresentação, pelo contrário deixou transparecer que o seu mundo é outro e não sei se pior Netinho foi o Bozo comendo farofa e querendo transferir para os nordestinos a falta de educação que é própria dele. Enfim, o nosso cronista sempre trazendo reflexões valiosas.
ExcluirProtagonizam toda a sorte atitudes ridículas para continuar exercendo seus “ podres poderes”. Obrigado Hayton. Abração. Gradim.
ResponderExcluirPrezado Haiton, excelente narrativa! Cenas tão comuns em períodos de campanhas eleitorais. Parabéns!
ResponderExcluirParabéns Hayton pelo texto. Já observei cenas parecidas naqueles terras baianas, quando ali trabalhei e aqui também nas Alagoas onde hoje estou e até atuei também perto de alguns políticos. As posturas, muitas vezes demagógicas, e a moldura caricatural das situações, principalmente em épocas de eleições, leva-nos a constatar que a história sempre se repete. Haja paciência kkkk
ResponderExcluirAmigo Hayton. Você conheceu bem o coronel ACM, vulgo Toinho Malvadeza. Figura emblemática da política brasileira no periodo da ditadura militar, que insiste em retornar.
ResponderExcluirCerta vez fui a Salvador ministrar um curso. A recomendação era de que, no aeroporto, primeiro se pedisse autorização ao ACM para entrar na Bahia sob o risco de ser deportado... mas o bom da política é ver que pastel que dá diarreia em pobre deixa políticos hospitalizados, não são resistentes nem a isso...
ResponderExcluirSempre atual:
ResponderExcluirCOMÍCIO EM BECO ESTREITO
(Jessier Quirino)
Pra se fazer um comício
Em tempo de eleição
Não carece de arrodei
Nem dinheiro muito não
Basta um F-4000
Ou qualquer mei caminhão
Entalado em beco estreito
E um bandeirado má feito
Cruzando em dez posição.
Um locutor tabacudo
De converseiro comprido
Uns alto-falante rouco
Que espalhe o alarido
Microfone com flanela
Ou vermelha ou amarela
Conforme a cor do partido.
Uma gambiarra véa
Banguela no acender
Quatro faixa de bramante
Escrito qualquer dizer
Dois pistom e um taró
Pode até ficar melhor
Uma torcida pra torcer
Aí é subir pra riba
Meia dúzia de corruto
Quatro babão, cinco puta
Uns oito capanga bruto
E acunhar na promessa
E a pisadinha é essa:
Três promessa por minuto.
Anunciar a chegança
Do corruto ganhador
Pedir o "V" da vitória
Dos dedo dos eleitor
E mandar que os vira-lata
Do bojo da passeata
Traga o home no andor.
Protegendo o monossílabo
De dedada e beliscão
A cavalo na cacunda
Chega o dono da eleição
Faz boca de fechecler
E nesse qué-ré-qué-qué
Vez por outra um foguetão.
Com voz de vento encanado
Com os viva dos babão
É só dizer que é mentira
Sua fama de ladrão
Falar dos roubo dos home
E tá ganha a eleição.
E terminada a campanha
Faturada a votação
Foda-se povo, pistom
Foda-se caminhão
Promessa, meta e programa...
É só mergulhar na Brahma
E curtir a posição.
Sendo um cabra despachudo
De politiquice quente
Batedorzão de carteira
Vigaristão competente
É só mandar pros otário
A foto num calendário
Bem família, bem decente:
Ele, um diabo sério, honrado
Ela, uma diaba influente
Bem vestido e bem posado
Até parecendo gente
Carregando a tiracolo
Sem pose, sem protocolo
Um diabozinho inocente.
A vassoura de bruxa quase acabou com a cultura do cacau na Bahia, na mesma toada o carlismo quase que acaba com a política altiva da Bahia. A Bahia tomou um novo rumo nos últimos tempos, e o renascer de uma nova praga da vassoura de bruxa está rondando o horizonte Bahiano, a sociedade bahiana vai ter que escolher que tipo de cultura vai querer.
ResponderExcluirO texto expõe de verdade o que os políticos fazem em época de eleição para atrair eleitores: sorrir muito, comer pastel com caldo de cana, dançar forró, festinhas de aniversário, fazer-se comunicativo ou então cantar karaokê, entre outras. O horário eleitoral é uma verdadeira piada sem graça alguma. Deveria ser extinto.
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