Como é curiosa e tragicômica nossa pátria de contradições, onde o futuro é tão incerto quanto a próxima nota de um chorinho que se repete, ano após ano, como se estivéssemos presos num ciclo sem fim.
Há três semanas o Brasil respira ofegante, tenso, acompanhando os dias de horror e os desdobramentos da maior tragédia climática de sua história.
A devastação que atingiu centenas de municípios do Rio Grande do Sul (que poderia ter ocorrido no Rio, em São Paulo ou Alagoas) expôs o melhor e o pior de nós. De um lado, a generosidade de voluntários, vindo de todas as partes, empenhados em salvar vidas e ajudar aos desabrigados. De outro, a crueldade de marginais que invadiram casas, lojas e fazendas para saquear o que restava, e de predadores que, em meio ao caos, cometeram atrocidades até contra crianças.
Fragilizada como uma teia de aranha numa tempestade tropical, a nação oscila ao sabor da popularidade passageira e dos interesses pessoais de meia dúzia de figuras. A cada quatro anos, escolhemos um novo “salvador”, nos planos estadual e federal, convictos de que "desta vez vai ser diferente", esperançosos e iludidos como quem troca de canal buscando algo melhor nos reality shows.
Já passou da hora de intensificar a educação cívica de nossa gente. Nas escolas e nas mídias sociais, é inadiável que surjam programas e campanhas focadas na importância da responsabilidade cidadã, do voto consciente, desvinculados de figuras messiânicas. Como fazer isso sem puxar a brasa pro nosso bife? Não sei, mas tem quem saiba entre nós.
Toleramos, segundo o IBGE, o desperdício de um terço dos alimentos aqui produzidos com a resignação de quem leva uma torta na cara e ainda aplaude. É emergente discutir políticas públicas e iniciativas privadas que otimizem a logística de distribuição, eduquem sobre o aproveitamento integral e o combate ao esbanjamento. Como fazer? Tem quem saiba, juro!
Enquanto com uma mão jogamos algumas moedas aos mendigos, com a outra entregamos o ouro aos senhores vorazes dos orçamentos públicos. E o “castelo” nunca fica do lado dos vulneráveis. “Eu quero que pobre se exploda”, diria o deputado Justo Veríssimo, personagem antológico de Chico Anysio.
E a fama de que somos um povo trabalhador? Ultimamente, o que mais existe são artesãos do ofício de não fazer nada ou de adiar para o dia seguinte. Boa parte condena os espertalhões e ao mesmo tempo deseja calçar seus sapatos, tirando uma lasquinha do banquete financiado pelo suor alheio. Quer coisa mais contraditória em nossa pátria amada?
Vivemos numa democracia virtual. Um lugar onde todos têm direitos, mas responsabilidades são ignoradas, parecendo um asilo ou um circo decadente. O infame “jeitinho”, nossa suposta malandragem, nos afunda cada vez mais enquanto nos gabamos como se ainda fôssemos respeitados pelas conquistas de Pelé e Ayrton Senna, únicos heróis nacionais indiscutíveis.
O gigante adormecido ainda ronca alto no berço esplêndido do país do futuro. Talvez um dia acorde, e os bons finalmente tomem as rédeas, aproveitando nossa abundância natural, em vez de reduzi-la a apenas mais uma nota triste do chorinho que se repete.
Mas tenha cuidado: se sábado você resolver almoçar uma feijoada e for pego numa blitz após tomar dois goles de caipirinha, prepare-se para uma multa salgada de quase R$ 3 mil e a perda da carteira de motorista. Se optar por drogas mais pesadas, talvez nem lhe incomodem.
Porém se você tem menos de 18 anos, pode até cometer crimes como atropelar, roubar, assaltar, estuprar e matar, sem muitas consequências, pelo menos se as redes sociais não derem visibilidade ao caso. Mesmo se estiver pilotando um Porsche, em velocidade superior três vezes à permitida na via.
E se possui uma arma em casa (eu não tenho, vou logo avisando!), mesmo que seja um estilingue ou um canivete, e acertar as nádegas do sujeito que invadiu o seu quintal para fazer sabe-se lá o quê, você vai responder por tentativa de homicídio e pagará indenização à vítima por danos físicos e morais.
Mas preste atenção: se o invasor for menor de idade, só Jesus na causa! E se estiver desarmado, você estará perdido! Vai ser acusado de tentativa de homicídio doloso e qualificado, por motivo indecoroso, infame ou torpe.
Portanto, tome nota: antes de reagir (argumentando “tolices” como a defesa de filhas e netas), pergunte educadamente o que ele deseja, se está armado e se por acaso possui cédula de identidade, título de eleitor ou passaporte provando que já fez 18 anos.
Mas veja bem: antes de sair por aí repetindo que cada povo continua experimentando do inferno que merece, faça a sua parte: berre até ficar rouco cobrando políticas de segurança pública que integrem ações sociais, como programas de educação e profissionalização para jovens em risco, além de reformas no sistema de justiça que busquem a reintegração, em vez de apenas punição (sobretudo para pobre, preto e puta).
Se, mesmo assim, você acha que estou exagerando e que “desta vez vai ser diferente”, quem sou eu para duvidar? Quem sabe o chorinho monótono que ecoa por aqui ganha novas notas e vira um "Pedacinho do céu". Sem tantas contradições, por favor!