Ele ajeitou o nó de minha gravata com aquelas mãos delicadas de quem nunca na vida pegou em cabo de foice para descascar coco verde ou trocar pneu com parafusos apertados, deu três tapinhas na lapela de meu paletó e, com sua voz quase inaudível, profetizou: “você vai se dar muito bem na Bahia!”
Ao chegar a Salvador na segunda-feira para assumir o cargo, recebi logo cedo dois telefonemas: dos gabinetes do governador César Borges e do prefeito da Capital, Antonio Imbassahy. Eram convites para breve conversa sobre projetos em andamento. Com ambos, a prosa começou mais ou menos assim: “Seja bem-vindo. O senhor chega precedido das melhores referências possíveis. Sinta-se em casa...”
Uma semana antes eu havia encontrado em Pernambuco, onde trabalhava, o então deputado federal José Múcio Monteiro Filho. Ao me ver com o semblante meio tenso, perguntou sobre o que estaria acontecendo:
— Nada demais, deputado. É que toda mudança mexe com a gente, com a família...
— Você está indo embora de Pernambuco?
— Fui nomeado pra Bahia. Pior é que não serei bem-vindo. Soube que o “velho” ficou bravo porque a direção do banco não lhe comunicou com antecedência que estava trocando o superintendente estadual.
— Deixe comigo! Fui muito amigo do filho dele, Luís Eduardo, que morreu ano passado. O senador me respeita muito. Vou dizer que a Bahia mais uma vez está passando a perna em Pernambuco. Ele vai gostar de ouvir isso.
Deve ter atiçado a curiosidade do senador ACM em relação a mim, dado que a secretária, no dia seguinte, telefonou dizendo que ele gostaria de me receber. Queria saber, inclusive, se eu poderia viajar a Brasília já na quinta-feira. Respondi que sim e, em seguida, liguei para meu chefe imediato contando o que acontecera.
Foi quando o diretor Marcelo Teixeira me comunicou que o presidente Andrea Calabi decidira ir comigo. E confirmou o que já se sabia: de fato, o senador ACM ficara chateado com a troca de superintendentes sem que fosse avisado, não atendia ligações do banco nem tampouco dava retorno.
Logo ele que, no início dos anos 60, protagonizara episódio dos mais bizarros da história política brasileira, em defesa do ex-presidente do BB, o baiano Clemente Mariani Bittencourt, na ocasião ministro da Fazenda de Janio Quadros.
ACM por muito pouco não foi assassinado pelo famoso deputado federal Tenório Cavalcanti (1906 – 1987), alagoano radicado na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, chamado de "O homem da capa preta" porque costumava carregar aonde fosse sua lendária "Lurdinha", uma metralhadora MP-40 de fabricação alemã, usada na II Guerra Mundial.
Em discurso no plenário, Tenório Cavalcanti acusava Clemente Mariani de desvio de verbas quando o então deputado federal ACM pediu um aparte não só para rebater a acusação como também para chamar o deputado fluminense de "protetor de jogos de azar, explorador de prostíbulos e ladrão".
O tempo fechou na hora! "O homem da capa preta" sacou seu revólver e partiu para cima: "vai morrer agora mesmo!" Com os olhos esbugalhados, ACM", protegido pela "turma do deixa disso", foi corajoso: "atira que eu quero ver!". Dá pra imaginar o pânico e a correria dos nobres representantes do povo brasileiro na Câmara dos Deputados.
A rir das calças molhadas do parlamentar baiano, que na agonia fora vítima de constrangedora incontinência urinária, Tenório Cavalcanti resolveu poupar a vida do colega e retirar o dedo do gatilho, mas não sem antes esculachar de forma cruel: "pode sossegar; só atiro em homem".

O episódio nunca foi engolido e mereceria impiedosa vingança, na calada da noite, três anos depois: os direitos políticos do deputado fluminense foram cassados em 1964, com a interveniência direta e pessoal de ACM junto ao governo militar, que já ouvia com muita atenção a tudo que o baiano tinha a dizer sobre qualquer assunto.
Tenório Cavalcanti, cuja vida rendeu um clássico do cinema nacional, estrelado por José Wilker e Marieta Severo, jamais recuperaria seu prestígio político até morrer em 1987, aos 80 anos. Nem a "Lurdinha" conseguiu vencer uma traiçoeira pneumonia.
Tomei conhecimento desses fatos em velhos jornais quando de minha primeira passagem pela Bahia, onde havia trabalhado no início dos anos 90. Quase uma década depois, no voo entre Recife e Brasília, cuidava de me atualizar sobre dados de natureza econômico-social para, se necessário, poder falar com segurança sobre o que sabia e pretendia fazer no novo desafio profissional.
Ao chegarmos na porta do gabinete da presidência do Congresso Nacional, às 11h55, o velho cacique pessoalmente nos esperava e fez questão de registrar antes mesmo dos cumprimentos formais: “já gostei de sua atenção e pontualidade; isso é muito importante!”.
A conversa fluiu com cordialidade sobre vários temas: desde a crise no Litoral Sul com a praga da vassoura-de-bruxa sobre os cacaueiros, passando pela nova fronteira de grãos no Oeste, pela decadência econômica do Recôncavo, pela pecuária do Sudoeste, pelas culturas irrigadas do Médio São Francisco, até o surto de desenvolvimento trazido pelo polo industrial de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador.
Decorridos cerca de 45 minutos, o senador levantou-se – era o sinal de que a reunião chegara ao fim – e ajeitou o nó de minha gravata... O resto eu já contei.
Seria injusto e mentiroso se dissesse que algum dia recebi qualquer pedido indecente de alguma autoridade baiana, cobrando reciprocidade pela forma calorosa com que me acolheram. Uma única vez o senador ACM me ligou para pedir algo simples e até desnecessário: meu empenho para que não houvesse irregularidades numa licitação pública que ocorreria naqueles primeiros meses.
Tranquilizei-o explicando que o banco possuía uma área técnica especializada no assunto e que não haveria a menor chance de intercorrências, tanto por conta do rigor normativo, como pelo número de pessoas – umas de olho nas outras – envolvidas nas decisões colegiadas por toda a cadeia do processo decisório.
De repente, do nada, o senador desatou a chorar, lembrando do filho Luis Eduardo Magalhães – a quem desejara ver no Palácio do Planalto – que falecera um ano antes. Dizia coisas como “Deus não podia ter feito isso comigo... Tinha que deixar meu filho e me levar... eu não sei o que continuo fazendo aqui!”. Pais não deveriam enterrar seus filhos, nunca.
A dor humaniza, desperta compaixão e nivela por cima as pessoas. Fiz o que pude, ao telefone, para acalmar e consolar um dos homens mais poderosos da República no século passado, que aos poucos foi se recompondo, pediu perdão pelo desabafo "fora de hora" (sic) e desligou. Nunca mais nos falamos. Nem quando fui embora trabalhar em Brasília, em setembro de 2000.
Havia conhecido o governador Miguel Arraes (1916 – 2005) quando trabalhei em Pernambuco, de 1996 a 1999. Era tido como uma das maiores lideranças das lutas populares que marcaram a segunda metade do século 20. Três anos e meio depois, conhecia Antonio Carlos Magalhães.
Vi de perto o crepúsculo desses dois ícones políticos com visões de mundo totalmente opostas e características tão distintas quanto caldo de cana e azeite de dendê, mas com alguns traços em comum: o amor ao poder e à veneração que despertavam em seus seguidores, além do profundo respeito que nutriam pela instituição que eu representava.
Vi de perto que mitos não morrem nunca; viram lendas. E ainda recebia salários, todo dia 20, para assistir a tudo. De camarote.