Epaminondas – nome que já entrega a idade, pois ninguém mais batiza um filho assim – estava no dentista. Entre anestesia e limas especiais, o doutor percebeu que havia algo mais pesando sobre o paciente do que a remoção da polpa dentária infectada no tratamento de canal. Algo que ia além do físico e parecia afetar a alma.
Com a habilidade de quem já ouviu de tudo enquanto mexe em bocas alheias, o doutor quis saber o que estava acontecendo. Epaminondas relutou, mas abriu: Dolores, sua esposa, passara por uma delicada cirurgia na coluna e, entre as restrições do pós-operatório, estavam proibidos “pilates, caminhadas e ‘intimidades’ por 60 dias”.
– Acho exagero – comentou o dentista, rindo – Nunca passei de três ou quatro noites seguidas, mas vá lá...
Recomendou paciência, bom senso e, se possível, a contratação de uma boa diarista para aliviar o fardo das tarefas domésticas. Também frisou a importância de seguir à risca as orientações do cirurgião, poupando Dolores de dores e tonturas.
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Ilustração: Umor (Uilson Morais) |
Brincalhão, o dentista resolveu entrar num campo espinhoso: o celibato forçado de Epaminondas. Desfiou um rosário de alternativas para a vida amorosa, mesmo sabendo que ele, reconhecido pelos amigos por sua fidelidade "constrangedora", jamais trocaria a tranquilidade do lar por aventuras de ocasião.
Ainda assim, insistiu. "Evite laxantes nos dias que antecedem qualquer saliência" – advertiu, rindo. "Uma tosse fora de hora pode comprometer até as restaurações antigas!". Depois sugeriu almofadas, “para poupar os joelhos” – uma recomendação que Epaminondas dispensou, sem entender a necessidade.
A mais inusitada foi anotar o nome da parceira na palma da mão. "Vai que você esquece com quem está no calor da luta" – completou, descarado.
Por fim, alertou: "Se você ouvir algum gemido, não se iluda, amigo: é deboche, sacanagem! E se conseguir chegar lá, nem cogite a prorrogação do jogo. Apesar de uma 'bengala química', o risco de torcicolo ou lombalgia é altíssimo".
Epaminondas ouvia tudo em silêncio, o rosto anestesiado permitindo apenas um esboço de sorriso sem graça. Ao se despedirem, o dentista ainda jogou a pá de cal: "Se der certo, espalhe entre os amigos. Mas, se der errado, deixa entre nós. Só aviso que sou péssimo pra guardar segredo".
Pensando naquelas ideias malucas, Epaminondas saiu confuso do consultório, mas logo balançou a cabeça, decidido: não trairia Dolores de forma alguma, depois de tanto tempo dividindo o leito conjugal. Como iria encarar as filhas e as netas?
No caminho de casa, o motor do carro falhou. Ele estacionou e abriu o capô, tentando identificar o problema. Enquanto mexia nas peças, sem saber exatamente o que procurava, a aliança escorregou de seu dedo sujo de óleo e desapareceu num bueiro. Epaminondas ficou parado, vendo o símbolo do compromisso sumir. Então, uma dúvida o atravessou, do cocuruto aos solados: seria um sinal? Destino ou acaso?
Mas a imagem de Dolores logo lhe veio à mente. No devaneio, ela o encarava no sofá:
– Tirou a aliança por quê? – ela perguntaria, com a sobrancelha arqueada.
– Não é o que você tá pensando...
– Ah, bom... Tá me chamando de otária?
– Foi o carro... Um cabo soltou... A aliança caiu no bueiro – explicaria, suando.
– No bueiro ou no ralo de um motel?
No devaneio, Dolores se levantou e encerrou a conversa como só ela sabia fazer: "Quem vai querer um velho teimoso e sem dinheiro feito você? Anda, vai tomar banho antes que a janta esfrie".
Debaixo do chuveiro, Epaminondas deixou a água levar a sujeira e, com ela, suas dúvidas. Nada era mais confortável do que a paz de olhar nos olhos de Dolores e não carregar o peso de decepcionar alguém com quem, há quatro décadas, divide o pão, o vinho e os boletos.
A cena trouxe Epaminondas de volta à realidade. Riu sozinho, fechou o capô e deu partida no motor. Assim como ele, o carro roncou teimoso, aceitou a marcha e seguiu em frente, com alguns arranhões na lataria, mas sem precisar de maiores reparos.
E disse a si mesmo: Dolores deve gostar dessa história, ou talvez nem dê importância, contanto que continuemos respeitando as restrições do pós-operatório. O grande desafio, a esta altura, é acordar sem dores adicionais. No corpo e na alma, claro.
Mais tarde, enquanto relatava a aventura a Dolores, omitiu a parte da aliança. Não por desonestidade, mas porque, naquele instante, a única verdade que importava era o sorriso tranquilo da esposa.
– E o carro? — perguntou ela.
– Anda meio teimoso, mas vai longe ainda. Igual a gente…
Dolores riu, ajeitando a almofada nas costas. E Epaminondas compreendeu que os sinais nem sempre vêm do universo. Às vezes, só lembram que, com ou sem aliança, a fidelidade é um pacto com algo maior: a opção de compartilhar a vida, com ganhos e perdas, até onde o motor aguentar.