Quem me contou esta história foi um velho parceiro de trabalho, frequentador assíduo, na juventude, dos becos da Rua Sá e Albuquerque, no bairro de Jaraguá, em Maceió. Na primeira semana do ano, ele parecia flutuar no tempo, relembrando os casarões do bairro portuário, onde a vida pulsava muito antes das luzes frias dos postes modernos. Ali, as boates pareciam cenários de romances noir, com o eterno vai-e-vem da profissão mais antiga do mundo – numa época em que influencers ainda nem existiam. E a mais célebre delas era a lendária boate Night and Day.
Ele riu ao recordar o descompasso do coração sempre que alguém gritava: “Tintureira à vista!”. Não era peixe graúdo da Praia da Avenida da Paz, mas a viatura preta que patrulhava a zona portuária. Moleques com hormônios em ebulição, pegos bebendo, comendo (literalmente!) ou apenas absorvendo a vertigem do recinto, tinham destino certo: uma noite na cadeia, com ressaca e cigarros compartilhados com os detentos.
No meio daquela efervescência, reinava Brigitte – ou, como foi batizada ao nascer, Abigail Alves dos Prazeres. Diva dos casarões, decidiu rebatizar-se em homenagem à estrela francesa que brilhava nos sonhos de muitos jovens pelo mundo afora. Brigitte era generosa e vaidosa, dispensando o pagamento de alguns sortudos bem-apessoados, deixando atrás de si um rastro de suspiros e lembranças inesquecíveis.
Semana passada, Maceió deu seu último adeus a Brigitte. Aos 90 anos, ela foi internada após um infarto, mas não resistiu. No cortejo, organizado por meu amigo e alguns contemporâneos, uma Kombi com alto-falantes tocava Pagu, de Rita Lee e Zélia Duncan. Um verso, em especial, ecoava como prece à diva: “Minha força não é bruta, não sou freira nem sou puta...”.
Curioso com tamanha reverência, perguntei a meu amigo o motivo da homenagem. Ele sorriu, abriu um envelope pardo e revelou o maior legado de Brigitte: uma carta-manifesto escrita há mais de três décadas, endereçada às antigas colegas da velha guarda das boates – muitas delas, agora, matriarcas respeitáveis.
Enquanto organizava o cortejo, ele encontrou a carta, guardada com zelo durante anos. Era como se Brigitte estivesse presente, conduzindo a despedida com sua irreverência e sabedoria. Ele me mostrou o texto, dizendo: “É isso que ela queria que fosse lembrado. Não os casarões ou as festas, mas o que ela aprendeu e quis dividir com a gente”.
A introdução da carta era uma aula de estilo:
"Peço desculpas às destinatárias destas linhas – putas, como eu, aposentadas ou quase – que ainda acham que a velhice é só um estado de espírito. Digo logo: não é. Gostem ou não, velhice é um estado de acelerada decomposição do corpo e da mente..."
O restante do texto era um manual direto, irônico e prático, com dicas úteis a todas as pessoas que desejam envelhecer com dignidade:
- Aceite que dói menos. Nada de eufemismos como “melhor idade”. Velhice não é crime, só é constrangedora em alguns momentos.
- Ao telefone, nunca diga: “Ah, lembrou que tem mãe, hein?!”. A linha pode ficar muda para sempre.
- Boa educação é essencial. Nada de sons, cheiros e gestos desagradáveis.
- Chiclete? Só em casa. Nada de parecer uma vaca ruminando no caminho do brejo.
- Cirurgia plástica? Se quiser virar uma caricatura, vá em frente.
- Coma, beba e fale menos. Velhas sóbrias e magras são menos chatas e mais saudáveis.
- Cuidado com nostalgia e otimismo excessivos. Velhas tristes são insuportáveis; alegres demais, tolas.
- Evite maquiagem pesada. Já parecemos velhas; ninguém precisa exagerar na caricatura.
- Gaste com critério, mas gaste. Herança, quase sempre, premia ingratidão.
- Higiene impecável. Nem o diabo aguenta velha fedorenta e peluda.
- Jamais pergunte: "Estou gorda?" ou "Você me ama?". Você já sabe as respostas.
- Leia. Livros são aliados quando a conversa fica sem graça.
- Minissaias? Nem pensar. Isso vale também para blusas tomara-que-caia ou curtinhas, com o umbigo de fora.
- Não custa lembrar: ter cara de rica envelhece.
- Netos? Ame à distância. Criar, só na ausência dos pais.
- Poupe os outros de histórias antigas. Elas só interessam a você.
- Sobrancelhas. Se fizer qualquer coisa de errado nelas, acaba com seu rosto.
- Trabalhe, se puder. Colegas de trabalho te toleram melhor que sua família.
- Viajar é bom; descrever viagens, não. Diga apenas destino e duração. Se alguém quiser saber mais, responda “sim”, “não” ou, no máximo, “depende”.
- Viva só a sua vida. Aceite que dói menos. Filhos e netos têm suas próprias jornadas.
O texto encerrava com um toque de mestre:
"Sei que minha capacidade de explicar termina onde começa a de vocês entenderem, mas já me dou por satisfeita em tentar."
Brigitte não morreu. Continua viva em uma lição que transcende a sua história: quando a maquiagem da vida desbota, o verdadeiro luxo é rir de si mesmo e seguir devagar, leve, sem eufemismos ou arrependimentos.