quarta-feira, 25 de setembro de 2019
Por um prato de sopa
Quinta-feira, 12 de junho de 2014. Sobravam ansiedade e medo no quarto do hotel em São Paulo onde minha mulher e eu assistíamos pela tevê a estreia do Brasil na Copa do Mundo contra a Croácia. Nem a vitória brasileira por 3x1 afastou a nuvem escura que havia sobre nós.
Naquela noite, Magdala seria internada no Hospital do Coração (HCor) para, na manhã seguinte, submeter-se a procedimento com o qual tentaria corrigir arritmia de altíssima frequência – irregularidade no ritmo cardíaco capaz de levar a colapso a qualquer momento.
Vivia sob tensão permanente e chegara até a fazer insuficiência cardíaca. Como médica, tinha consciência de que tudo poderia terminar sem aviso prévio. Eu mesmo havia visto em 2004, pela TV, o zagueiro Serginho ser fulminado dentro de campo numa partida entre São Caetano e São Paulo, vítima desse tipo de problema.
O que lhe dava esperança era estar sob os cuidados do Dr. José Carlos Pachón Mateos, um dos nomes mais respeitados na eletrofisiologia mundial. Fora do Brasil, inclusive, é conhecido por criar técnicas para curar arritmias graves com métodos pouco invasivos, que devolvem o paciente à vida normal com três dias de repouso.
Na consulta pré-operatória, Dr. Pachón achou engraçado quando escutou da colega aflita algo mais ou menos assim: “Por favor, faça a minha cirurgia! Depois de tanta luta, não posso morrer agora e ver o 'véio' tomando um prato de sopa com outra mulher!”
Foram cinco horas de espera que mais pareceram uma semana. Tomei um susto medonho quando o interfone tocou e me orientaram a descer até uma sala reservada no andar do hospital onde ficava o necrotério, a dizerem que o Dr. Pachón gostaria de falar pessoalmente comigo.
Chegaria após 20 ou 25 minutos, transpirando, voz excitada, e contou que ele e sua equipe conseguiram corrigir cinco focos anômalos de arritmias, inclusive fora do músculo cardíaco (na artéria pulmonar). O coração, enfim, batia no ritmo normal.
Voltaríamos a Brasília dias depois, onde comemoramos o aniversário dela no domingo que antecedeu 8 de julho de 2014, data que ficou marcada para sempre na memória do povo brasileiro.
Naquele dia, a Seleção Brasileira, comandada pelo técnico Luiz Felipe Scolari, foi atropelada pelo time da Alemanha, que impôs o vexatório placar de 7x1 nas semifinais da Copa do Mundo.
Para nós, no entanto, haviam coisas em jogo muito mais importantes do que uma partida de futebol. Como, numa noite fria qualquer, poder de novo compartilhar um prato de sopa antes do sono chegar. Faz bem para o coração.
quarta-feira, 18 de setembro de 2019
Sim, elas amadurecem antes
Andei lendo outro dia sobre diferenças de maturidade entre sexos numa pesquisa realizada no Reino Unido. Em resumo, conclui-se que o homem permanece emocionalmente imaturo até 43 anos de idade e a mulher atinge a maturidade emocional bem antes: aos 32. O trabalho revela ainda que 80% das mulheres acreditam que os homens “nunca deixam de ser crianças”.
Cá entre nós, algumas atitudes de certos homens não deixam nenhuma dúvida sobre a lerdeza dessa maturidade: recontar as mesmas piadas e achar graça de novo, não se interessar por tarefas domésticas, confundir masculinidade com grosseria, arrotar em público, exibir bíceps e tríceps para demonstrar como são fortes, dentre outras tolices.


Nessa época, fazia enorme sucesso em Alagoas a banda LSD – Luz, Som & Dimensão, sob a liderança do talentoso Djavan, a embalar as noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida, com os hits do momento. Haydeé, claro, queria ir à boate toda sexta-feira. Mas Seu Agostinho, nosso pai e então secretário do clube, nesse particular era inflexível feito porta de cofre: “só vai se Hayton lhe acompanhar!”.

Estudávamos no Colégio Benedito de Moraes, na Ponta da Terra. Não deve ter sido muito difícil para ela armar uma arapuca e me pegar feito um filhote de canário-da-terra. Sabia que eu também gostava de fazer meus rabiscos e, numa manhã de sexta-feira, pediu a um colega de turma que me desafiasse a desenhar uma cena de sexo explícito daquelas de revistinhas suecas, fonte inesgotável de curiosidade e deleite da molecada nos banheiros encardidos.
Em pouco tempo o besta aqui rabiscou algo com toda carga erótica possível, assinou no rodapé e o escroque ainda inflou meu ego a dizer que nunca vira nada igual a não ser nos "catecismos" de Carlos Zéfiro (1921 – 1992). Meia hora depois minha irmã apareceria triunfante com a "obra de arte" nas mãos: "Como é, vai ou não vai à AABB hoje à noite?"
Caiu a ficha do retardado! Se me atrevesse a responder “não”, meu pai saberia o que eu andava "estudando" na escola e possivelmente me inspiraria com seu velho cinturão de couro a escrever mais tarde um parágrafo a mais na crônica “Memória de minhas surras tristes”.
Engoli seco e ali aprendi, na prática, o que era a tal da chantagem emocional, pelo menos durante as quatro semanas seguintes.
Enquanto isso, vasculhava cada centímetro da casa em que morávamos à procura do desenho. Até que um dia, folheando “Grande Hotel”, revista de fotonovelas favorita de Haydeé, vi numa história que a protagonista escondera uma carta comprometedora num quadro de parede, entre o tampo traseiro e a gravura.

Ao encontrar o danado do desenho, nem cogitei guardá-lo em lugar alternativo, seguro. Picotei-o, joguei os pedaços no vaso sanitário e acionei a descarga para ter certeza de que o sofrimento chegara ao fim. Ainda bem que na época não existiam fotocópias. E a digitalização de papéis não havia nem nas revistinhas de "Flash Gordon".
À noite, vestida e maquiada, pronta para sair, minha irmã espantou-se quando lhe disse que não iria mais à boate. Correu então ao local onde escondera o desenho e ficou furiosa ao descobrir que já não possuía "argumento" para me convencer.
Penso que nosso pai, mesmo sem desconfiar de que o filho estava sendo vítima de "condução coercitiva", gostou da decisão e reconheceu que eu vinha sendo um bom irmão naquelas últimas semanas. Para ele, não precisava sairmos toda sexta-feira, deixando-o preocupado até alta madrugada.
Sim, elas amadurecem antes. A astúcia de minha irmã só confirmava a velha tese que se arrasta desde os tempos de Adão e Eva: mulheres conhecem bem mais de estratégias de manipulação e camuflagem de sentimentos do que homens.
Homens, como elas mesmo dizem, “nunca deixam de ser crianças”. Deve haver um anjo da guarda de plantão a protegê-los. Se não, viver fica perigoso demais.
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
Quando a vida pede passagem
Em sua crônica “Antes que eles cresçam”, o escritor e poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna foi muito feliz ao dizer que “… O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco…”
Com apenas 27 semanas de gravidez, Renata teve que se submeter a uma cesariana bem antes da hora para receber meus primeiros netos, Breno e Camila. O rompimento acidental da bolsa, aliado à perda de líquido, a colocava com os filhos em extremo risco de infecção se nada fosse feito.
Ao nascer, cada bebê pesava menos que 1 kg e ambos poderiam ser transportados numa caixa de sapatos. Eram o que chamam de prematuros extremos. Médicos dizem que bebê que nasce antes das 36 semanas é considerado prematuro. Antes de completar 28, como meus netos, é prematuro extremo – os órgãos já estão formados, mas são muito imaturos.
Na agonia daquelas primeiras horas, para mim foi um tiro no pé recorrer a experts no assunto em busca de maior conhecimento. Fiz isso e entrei em pânico ao saber que prematuros extremos têm maior taxa de mortalidade e podem apresentar problemas na visão, dificuldades na alimentação e para respirar, além do risco de contrair infecções, dada à imaturidade do sistema imunológico.
Meu filho Leopoldo e sua mulher, Renata, viveram semanas de angústia e incerteza, de luta e esperança. Após o parto, durante o Carnaval de 2008, foram 46 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI neonatal) do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, com toda sorte de intercorrências.
Breno não amadurecera por completo o aparelho respiratório e teve até pneumotórax. Camila, o aparelho digestivo. A ponto de, por muito tempo, não digerir sequer uma gota de leite materno.
Toda noite pedia em minhas orações que ficasse conosco pelo menos uma das crianças para que o sofrimento de todos não fosse tão pesado, como se a dor pudesse ser repartida, atenuada, se o pior viesse a acontecer. No desespero, não sabia nem rezar direito. Deus que se virasse para entender pedidos tão confusos.
Foi quando Zé, um velho amigo mineiro, dotado de muitos saberes mas leigo em ciências médicas, perguntou como estavam os recém-nascidos e compartilhei com ele aquilo que se passava, inclusive minha pouca fé na sobrevivência dos dois. Então me disse algo mais ou menos nessa linha: “não fique tão preocupado... a vida quando brota faz de tudo para vingar...”
Arrepiei. Impressionou-me o fato de um ateu convicto como ele ter feito um milagre naquele instante: reabastecer meu estoque de esperança, que já andava na reserva. Quando a gente muda o jeito como encara as coisas, o que vemos acaba mudando de lugar.
A vida pedia passagem. Já era Páscoa quando Breno e Camila finalmente chegaram em casa, com saúde e em paz. Hoje, quase 12 anos depois, continuam muito bem, a viverem agora em São Paulo no esplendor da pré-adolescência, com as cores, os amores e os humores da hora.

Garantiu de novo que há coisas que não dominamos, não podemos racionalizar. Que não podemos querer ter o controle de tudo. A vida tem seus caprichos e desígnios. Essa seria sua beleza!
"...Todos nós dançamos numa melodia misteriosa, entoada à distância por um músico invisível...", diria o físico Albert Einstein (1879 – 1955).
Era madrugada. Fui para a varanda e deitei na rede, a esperar o sol nascer, rever fotografias de Breno e Camila na linha do tempo e a ouvir Caetano Veloso: “...o tempo não pára e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são, é o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão...”
Logo depois o sol nasceria na hora certa, maduro, como sempre acontece. Na leveza do primeiro sono, cheguei a ver o vulto de meu velho amigo Zé emergindo das águas da praia de Pajuçara, em Maceió, a cantarolar: “...Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar...”
quarta-feira, 4 de setembro de 2019
Menino Maluquinho
Mineiro de Caratinga, 86 anos, cartunista, desenhista, dramaturgo, escritor, jornalista e pintor, conheci o grande Ziraldo pouco antes do Natal de 2004, em Brasília, na entrega de uma decoração bem tupiniquim que havia preparado para a fachada da principal agência do Banco do Brasil.
Naquele ano, o tradicional Papai Noel de barbas brancas, botas pretas e roupão vermelho, dividiria o cenário com a Turma do Pererê, que marcou época nas histórias em quadrinhos no Brasil.
Além do folclórico Saci Pererê, integrava o grupo um índio e vários animais (macaco, coelho, onça, jabuti e tatu) de uma floresta que nunca será queimada pela ganância dos homens porque vive no coração da criança que ainda existe dentro de muitos de nós: a Mata do Fundão.
Naquele ano, o tradicional Papai Noel de barbas brancas, botas pretas e roupão vermelho, dividiria o cenário com a Turma do Pererê, que marcou época nas histórias em quadrinhos no Brasil.
Além do folclórico Saci Pererê, integrava o grupo um índio e vários animais (macaco, coelho, onça, jabuti e tatu) de uma floresta que nunca será queimada pela ganância dos homens porque vive no coração da criança que ainda existe dentro de muitos de nós: a Mata do Fundão.

Ziraldo também é "pai" de outro personagem maravilhoso, bem urbano, criado na metade dos anos 60: Jeremias, o bom. Diferente do famoso Amigo da Onça, de O Cruzeiro – revista semanal de cabeceira de meu pai –, era generoso, humilde, solidário, e suas tiras me encantavam, ainda que não tivesse maturidade suficiente para entender o conteúdo político delas.
Assim que pude, puxei conversa perguntando se recordava uma tira em que Jeremias, sensibilizado com tantas crianças a vender confeitos na porta do cinema, comprara o estoque geral da molecada e acabou diabético. Ele sorriu, respondeu "sim" e quis saber como eu lembrava daquilo. Aí a conversa pegou pressão de vez.

Conversamos também sobre a crise que acabou fechando as portas da editora Codecri, cujo carro-chefe era O Pasquim, o semanário mais bem-humorado do Brasil que, no início dos anos 70, chegou a vender 250 mil exemplares por semana.
Se sobrava talento artístico e literário na turma de O Pasquim – ele, Henfil, Jaguar, Millôr, Francis, Claudius, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, Sérgio Cabral (o pai), Miguel Paiva, entre outros –, faltava maior traquejo de gestão, organização. Segundo Ziraldo, a Codecri chegou a ter cinco obras no ranking Veja dos livros mais vendidos. Mas o que faturava, sumia em brigas internas, processos judiciais, multas e farras. Muitas farras.
Se sobrava talento artístico e literário na turma de O Pasquim – ele, Henfil, Jaguar, Millôr, Francis, Claudius, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, Sérgio Cabral (o pai), Miguel Paiva, entre outros –, faltava maior traquejo de gestão, organização. Segundo Ziraldo, a Codecri chegou a ter cinco obras no ranking Veja dos livros mais vendidos. Mas o que faturava, sumia em brigas internas, processos judiciais, multas e farras. Muitas farras.
Da editora Codecri – acrônimo de "Comissão de Defesa do Crioléu", inventado pelo magistral cartunista Henfil –, além de uma dívida enorme, impagável, restou o legado de O Pasquim, que se tornaria símbolo do jornalismo irreverente e contestador ao regime militar.

Dia desses correu o boato nas redes sociais da morte de Ziraldo. Ele mesmo desmentiu ao postar foto no Instagram, vivo e brincalhão como sempre. Andava sumido desde que sofreu derrame em 2018, quando foi internado em estado grave mas conseguiu recuperar-se, recebendo alta um mês depois.
Boato é coisa de gente ruim, sem coração. Ziraldo não morrerá jamais. Pelo menos enquanto houver por perto de nós um menino maluquinho com "o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés". Que ri dos outros, cria estórias, sabe de tudo, menos ficar quieto, vendo o tempo passar na janela. Que vive se machucando, inclusive por dentro. Como qualquer um de nós.
Boato é coisa de gente ruim, sem coração. Ziraldo não morrerá jamais. Pelo menos enquanto houver por perto de nós um menino maluquinho com "o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés". Que ri dos outros, cria estórias, sabe de tudo, menos ficar quieto, vendo o tempo passar na janela. Que vive se machucando, inclusive por dentro. Como qualquer um de nós.
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
Chatice tem cura

Gols não deveriam ser escassos. Se a dose certa de adrenalina provoca êxtase, ninguém deveria ficar satisfeito com escore abaixo de 3x3, isto é, um mísero gol marcado a cada 15 minutos. A emoção do basquete com seus placares elásticos é indício de que o momento de gozo do futebol nunca será vulgarizado se acontecer com maior frequência.
Três remédios me ocorrem para arejar o ambiente: a) o lateral poderia ser cobrado com os pés, assim como acontece com os escanteios; b) os escanteios deveriam ser cobrados do ponto em que a linha de fundo é interceptada pela linha da grande área; c) após cinco faltas coletivas, poderia ser marcado tiro livre direto da meia lua do infrator, sem direito a barreira, admitindo-se, contudo, que o goleiro possa sair da baliza quando autorizada a cobrança da infração.
Mais três receitas simples para intensificar a dinâmica do jogo, com reflexo direto nas situações de gol: a) a partida deveria ser disputada em dois tempos cronometrados de 30 minutos, com intervalo para descanso de 10 minutos; b) as equipes contariam apenas com 10 jogadores (inclusive o goleiro), permitidas até cinco substituições; c) o time com a posse da bola, ao ultrapassar a linha central, ficaria impedido de retornar ao próprio campo, sob pena de tiro livre direto.
Há até quem defenda acabar de vez com a regra mais difícil de ser aplicada: a do impedimento. Discordo. Seria chato – e basta de chatice! – ver um brucutu colado no goleiro adversário durante toda a partida. Mas entendo que a regra poderia ser aplicável apenas a partir de uma linha intermediária, a ser introduzida nas duas metades do campo de jogo, entre as linhas de fundo e divisória do campo.
Sobre o VAR, reconheço: é a credibilidade do futebol que está em jogo. Mas concordo com um amigo quando diz que, assim como no vôlei, deveriam deixar com os treinadores a prerrogativa de pedir a revisão eletrônica. Cada time teria o direito de acionar o árbitro de vídeo por duas vezes a cada tempo. Ficaria menos midiático e acabaria com a mistura de covardia e vaidade que se vê atualmente.
Estou seguro de que essas modificações teriam o condão de estimular o surgimento de novas estratégias e táticas de jogo, de preparação física, por combinar redução do número de atletas na disputa, ampliação de espaços e maior tempo de bola em jogo. Com um detalhe muito importante: a implantação não implicaria gastos adicionais com aumento de campo, balizas ou aparato tecnológico.

Do jeito que o futebol anda chato, se nada for feito para soprar as brasas dessa paixão, daqui a pouco todos nós, amantes do esporte, teremos que macaquear o personagem inconformado de Jô Soares e pedir que nos desliguem os aparelhos.
Pode ser melhor assim. Nem teria mais que ouvir Tite falar das "sinapses no último terço" ou dos "extremos desequilibrantes". Haja saco!
quarta-feira, 21 de agosto de 2019
Papo reto

Conheci-o em meados de 1995. Acompanhava numa audiência, que me solicitara no dia anterior, seu velho amigo oficial da reserva do Exército, coronel Humberto Bezerra, sócio-proprietário e então presidente do BicBanco, credor de várias operações vencidas em nome de prefeituras alagoanas.
Embora o Banco do Brasil fosse responsável pelo pagamento do Fundo de Participação dos Municípios – por ordem do Tesouro Nacional –, esclareci que não seria possível retirar das contas das prefeituras os valores em atraso sem expressa autorização. Mas me dispus a orientar nossos gerentes para que tentassem convencer os prefeitos a renegociarem as dívidas atrasadas.
Satisfeito com o desfecho da audiência, o coronel Amaral fez questão de registrar na saída: “Soube que você chegou criança aqui em Alagoas e vejo que é gente boa. Se precisar de mim, é só ligar. Nada como uma conversa franca pra conhecer uma pessoa...”. Devia falar daquilo que hoje em dia a molecada chama de um papo reto.
No dia seguinte, chegou à recepção da superintendência um pacote em meu nome, contendo algo incomum: um revólver calibre 38, prateado, seis balas, com documento de porte, segundo o remetente para “minha defesa pessoal”. Do seu jeito, quis o coronel apenas ser gentil, retribuindo a atenção dispensada a seu antigo colega de farda.
Com três filhos menores e sem nunca haver disparado um tiro sequer – a não ser de espingarda de ar comprido em "tiro ao alvo" de festas no Interior –, pensei em me desfazer do “mimo” mas logo percebi que não seria tão simples. Estava registrado em meu nome e poderia me complicar em eventual exame de balística, caso fosse utilizado de forma criminosa por terceiros.
Devolver poderia ser interpretado como desfeita de minha parte. Resolvi então separar os projéteis da arma de fogo e escondê-los até o dia em que deixasse Alagoas. O sossego só reapareceu lá em casa bem mais tarde, quando da campanha nacional de desarmamento da população.
Menos de três meses depois recebi o gerente de uma de nossas agências, bastante assustado com uma ameaça de morte que teria sofrido naquela manhã. Ele vinha conduzindo inquérito administrativo para apuração de irregularidades que poderia resultar na demissão de uma pessoa.
Contou-me que alguém ligou perguntando se ficara satisfeito com a peixada que comeu no almoço do dia anterior (um domingo), ao lado da mulher e dos filhos pequenos, num restaurante próximo de sua casa. Em seguida, perguntou se não temia o que pudesse acontecer, caso insistisse em prejudicar a vida dos outros.
Ouvi o relato e questionei se por acaso fazia ideia de quem estaria por trás daquela ameaça. Disse que desconfiava que poderia ser algum parente da pessoa que estava respondendo ao inquérito administrativo. Mas como não havia provas, não queria, óbvio, fazer ilações, levantar falso testemunho.
Não era a primeira nem seria a última vez que me procuravam em pânico, sob ameaça, mas algo me dizia que se tratava de coisa mais séria. Era nessas horas que me perguntava diante do espelho: isso aqui é mesmo atividade bancária? Quem disse que "cão que late não morde"?
Lembrei do coronel Amaral, peguei o telefone e pedi sua opinião sobre o caso. Contei os fatos rigorosamente como me foram relatados. No mesmo dia, foram intimados a comparecer à Secretaria de Segurança Pública: o gerente que se sentia ameaçado, a pessoa que poderia ser demitida e alguns de seus familiares, escolhidos, claro, nem tanto aleatoriamente.
Conhecido por seu temperamento imprevisível, o coronel começou a reunião em tom amistoso, falando sobre a enorme admiração que nutria pelo BB, do respeito pelo superintendente que conhecera havia pouco tempo, até chegar à ligação que recebera, reproduzindo-a passo-a-passo, esmiuçando cada detalhe de forma mansa e didática.
De repente, seu rosto transfigurou, ficou encarnado. Voltou-se então para os familiares – que ouviam a tudo com ar de “onde ele quer chegar com essa conversa mole?” –, deu um tapa na mesa e esbravejou: “se não for nenhum de vocês, procurem e achem quem anda fazendo isso com o gerente do BB, se não todos irão prestar contas comigo, fui claro?!”
De fato, nada como um papo reto. Não sei se foi apenas coincidência, mas o gerente pôde concluir em paz o trabalho que vinha fazendo. E nunca mais me procurou para falar de ameaças. Só de atividades bancárias.
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
Fantasmas não existem
Minha secretária sentiu-se aliviada quando lhe pedi que passasse a ligação telefônica de uma mãe desesperada, a dizer que só faria uma denúncia gravíssima se falasse diretamente com o diretor.
– Bom dia, posso ajudá-la?
– Não acredito! É o senhor mesmo?
– Claro. Pode falar, por favor.
– O senhor sabia que meu filho está perdendo o emprego porque é negro?
– Isso é muito sério. Conte mais, por favor.
– Ele é bom filho, estudioso, inteligente, mas trabalha no meio de gente metida a besta... Sofre muito. Sabe que vai ser demitido.
– Qual o nome completo dele? Vou ver o que está acontecendo e falo de novo com a senhora ainda hoje.
– Moço, me ajude! Meu filho não pode perder esse emprego. A gente é pobre, ele é nossa esperança...
Vi que se tratava de funcionário no último mês do chamado estágio probatório de 90 dias – processo que visa aferir se a pessoa aprovada em concurso público possui aptidão e capacidade para o desempenho do cargo no qual ingressou – que antecedia o ingresso em definitivo na empresa.
Morador de Samambaia, fora chamado rigorosamente dentro da ordem classificatória de aprovação no concurso público. Preencheria vaga na unidade instalada no Itamaraty, Esplanada dos Ministérios, em Brasília.


Pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, código do consumidor, avaliação de desempenho, tarefas escolares na faculdade etc. –, o rapaz acabou desorientado, perdido.
Já não interagia de forma espontânea com clientes – boa parte engravatada, culta, poliglota, natural no recinto – nem com colegas de trabalho. Também demonstrava insegurança ao prestar esclarecimentos, pouca iniciativa e, por isso, havia "dúvida quanto à aptidão para a carreira”, no entender de seu chefe imediato.
À noite, retomei a conversa por telefone com a mãe aflita e disse – sem muita convicção – que para mim o caso não envolvia preconceito. Não consegui enxergar com segurança, naquele dia, se cor da pele, traje humilde e sotaque também estavam de fato pesando na avaliação preliminar que se fazia.
Mas assegurei à mãe que, se o filho dela fosse bom mesmo, teria noutro ambiente mais duas semanas para provar isso. Já havia orientado meu pessoal a flexibilizar a regra – por minha conta e risco – para que o garoto concluísse o estágio probatório em Samambaia, onde nasceu e se criou.
Duas semanas adiante, liguei pro novo chefe dele para saber o desenrolar dos acontecimentos. A resposta me impressionou:
– O moleque já é o melhor funcionário que temos. A clientela gostou dele, é ligeiro, trabalha feliz e ainda ajuda os colegas porque conhece do serviço como nenhum outro.
Nem recordava mais do caso quando, meses depois, já como superintendente do Distrito Federal – havia sido exonerado do cargo de diretor em meio ao turbilhão de mudanças que sacudiu o país e a empresa no começo de 2003 –, participava de um café da manhã com clientes em Samambaia.
Na ocasião, falaram de uma pessoa que queria me conhecer. Fui até o rapaz que conversava com uma senhora na plataforma de atendimento. Ao me ver, levantou-se e estendeu a mão:
– Muito prazer! Eu queria apresentar minha mãe e agradecer o que o senhor fez por mim.
– Se você quer agradecer a alguém, dê um abraço em sua mãe, uma mulher corajosa, determinada, que nos poupou de um vexame, de cometer uma injustiça.
– Mas se o senhor não ouvisse o que ela tinha a dizer...
– Olhe bem: importante é você perceber que na empresa não existe preconceito. Surgem oportunidades todo dia e para quem quer crescer, o céu é o limite.
– Sei disso... – respondeu, afagando os cabelos da mãe orgulhosa de seu rebento.
O tempo passou e a última notícia que tive desse colega foi em 2013, mais de 10 anos depois do episódio. Ocupava cargo de confiança na Ouvidoria Interna, canal de comunicação direta dos funcionários, especializada em receber denúncias sobre conflitos, desvios de conduta ética e descumprimento de normas.
Talvez veja fantasmas onde nunca existiram, mas continuo sem respostas para algumas perguntas que me fiz a vida inteira: por que não vi um presidente negro em mais de 40 anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só houve um em mais de dois séculos de história?
Deve ser por isso que me assombram mais os vivos – com seus preconceitos de cor, gênero, origem, classe social, religião etc. – do que os mortos.
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