— Dói muito? — perguntei a Tio Enoch, achando que o inchaço e a vermelhidão do tornozelo fosse mais uma crise de gota.
— Não é isso. Você me fez lembrar de meu irmão... seu pai, quando era criança. Todo dia, depois do almoço, eu deitava aqui na minha rede para cochilar um pouco, escutando baixinho um disco que ele escolhia... — respondeu, a enxugar os olhos.
Lá fora o sol do meio-dia parecia derreter o calçamento naquela primeira quinzena de 1988, na tórrida Caxias, quinta cidade maranhense, já próxima à fronteira com o Piauí.
Lá fora o sol do meio-dia parecia derreter o calçamento naquela primeira quinzena de 1988, na tórrida Caxias, quinta cidade maranhense, já próxima à fronteira com o Piauí.
Era chamado de Padrinho Enoch pelos 10 irmãos mais novos (Baíca, Jerônimo, Marcelino, Tereza, Agostinho, Antonia, Cazuzinha, Leó, Cristina e Vitória). Para os “Torres da Rocha”, alguém acima de irmão e pouco abaixo de pai que fazia jus à reverência porque, desde cedo, corajosamente deixou o sítio “Maravilha” onde nasceu (zona rural da pequena Colinas) para morar numa cidade maior, o que seria fundamental para o desenvolvimento de todos os seus “afilhados”.

Passados mais de 60 anos, minha mãe prefere não lembrar da experiência de voar com uma criança com apenas 20 dias de nascida, vomitando de meia em meia hora, com dores de ouvido, reflexos das mudanças bruscas de pressão e da turbulência de um bimotor DC-3 onde passageiros bebiam e fumavam em quase todas as poltronas da aeronave.

No ano anterior, em ação de marketing institucional muito bem concebida, o Banco do Brasil patrocinara a produção do álbum duplo temático com canções intituladas com nomes de mulheres míticas: Amélia, Ana Maria, Aurora, Carolina, Chica da Silva, Conceição, Dora, Doralice, Helena, Isaura, Lígia, Luciana, Luiza, Maria Betânia, Maria Candelária, Madalena, Rita, Rosa Morena, Yolanda, entre outras.

Homenagear as mulheres forjadas no coração de compositores e poetas em si já era algo inédito e ganhou mais densidade quando passou a integrar uma campanha meritória: toda a arrecadação com a venda do álbum seria destinada à criação de um banco de coleta de leite materno, através da Legião Brasileira de Assistência, para distribuição entre crianças carentes privadas desse alimento básico numa etapa crítica da vida, começo de tudo.
Para mim, na época recém-graduado em economia e simples curioso em marketing, grandes organizações como o BB deveriam sempre priorizar campanhas institucionais daquele tipo. São essas que consolidam na mente das pessoas uma marca, e não a oferta comum de produtos e serviços via TV, revistas e jornais, típica de fabricantes de alimentos industrializados, automóveis, bebidas, cosméticos, roupas e outros bens de consumo.

Bateu uma tristeza danada quando recebi em Maceió a notícia de que Padrinho Enoch havia sofrido um infarto fulminante, aos 66 anos, sentado na mesa em que trabalhava como contador. No começo de março de 1988, certamente ainda lhe doía a perda de Mãe Sussú, minha avó, que também partira havia menos de um mês.
Depois de sua morte, não mais voltei à Caxias. O álbum duplo “Há sempre um nome de mulher” que lhe dei foi o jeito inconsciente e antecipado de retribuir em vida o que dele herdaria no seu inventário de bens inestimáveis: o amor pela leitura, pela música e pelo Vasco da Gama — a cruz (de malta) que carrego no peito desde criança.