Trago comigo que o sorriso continua sendo a roupa mais luxuosa que alguém pode vestir, o reflexo de uma alma em movimento ou a curva mais bonita do corpo humano.
Foto: Rosângela Escórcio Lima |
Um amigo me manda uma fotografia e pergunta se me lembro de Vó, que vendia jornais e revistas numa banca no 2º subsolo do edifício-sede I (o primeiro!) do Banco do Brasil, em Brasília, na segunda metade do século passado, ao lado do “Bandejão”, onde todo dia se restauravam mais de três mil almas. No fecho, a boa nova: “esta semana ela completou 100 anos”.
Quis responder, mas me segurei diante da plenitude da imagem. Sou dos que acreditam que a fotografia é uma forma de expressão silenciosa capaz de congelar cenas e cores que a mente uma hora esquece. Que transforma algo comum em extraordinário. Dispensa comentários ou legendas.
Até ontem, Vó, eu nem sabia o teu nome completo, e só hoje descobri: Helena Escórcio Lima, mãe de 12 filhos (só metade vive) e bisavó de sete bisnetos.
Você não faz ideia do quanto me recordo do dia em que te conheci, em agosto de 1982, pouco depois de minha chegada a Brasília, pela primeira vez, para participar por quatro meses de um curso de formação profissional.
A nova capital do país tinha apenas 22 anos. Para milhares de imigrantes domésticos, com destaque para o Nordeste, a história estava só começando, feito uma folha de papel em branco onde cada um escrevia a crônica de uma vida. Tu eras uma dessas cronistas, Vó.
Como me recordo daquela mulher aparentemente frágil, leve, mas forte e determinada, que avistei várias vezes, de manhãzinha, guiando uma kombi nos arredores da Galeria dos Estados, no Setor Bancário Sul, transportando amarrados de jornais e revistas.
Mais tarde, Vó, com os óculos na ponta do nariz, atenta às circunstâncias e aos circunstantes, quase sempre te encontrava em paz, de bom humor. Só perdia a paciência com alguns chatos, a quem mandavas para aquele lugar se zoassem com o “nosso” Vasco da Gama.
O Vasco que tocou teu coração, imagino, foi o mesmo que fez de meu pai um vascaíno raiz, com o time considerado um dos melhores da história do futebol: o Expresso da Vitória, de Barbosa, Danilo e Ademir de Menezes. Depois viriam Bellini, Roberto Dinamite, Juninho Pernambucano, Edmundo, mas isso é outra história.
Ah, Vó, bem antes de te conhecer, não imaginas o quanto desejei tomar conta de uma banca de jornais e revistas em minha meninice, ao lado de meu irmão. Poder ganhar alguns trocados e, assim, ajudar na despesa de casa; de quebra, ter acesso amplo e irrestrito a todas as publicações da época.
Até hoje o cheiro de tinta que saía da revista Placar continua intacto em nossas narinas (minhas e dele), como um perfume que embriagava dois obcecados por bola, desde os rachas nos campinhos de terra batida na Gruta de Lourdes, em Maceió, até as noites de domingo, quando a extinta TV Tupi exibia os gols da rodada no programa Ataque e Defesa.
E como esquecer as disputas de times de botão, com “craques” de acrílico feitos por nós mesmos? Bastavam dois discos translúcidos ensanduichando a foto recortada de Placar ou de Manchete Esportiva, o nome de “guerra” e o número (recorte de calendário) que usava na camisa do clube a que pertencia.
Um dia, Vó, encontramos numa feira livre um camelô vendendo frascos de uma mistura de álcool comum com gasolina. Com um chumaço de algodão, ele molhava uma folha de papel e, usando o fundo de uma colher, decalcava imagens de revistas velhas, reproduzindo-as, de forma invertida, como se refletidas num espelho.
Era o que nos faltava para fazer a “cobertura” dos campeonatos de futebol de botão. Com folhas de caderno de desenho e imagens extraídas das páginas das revistas, criávamos "reportagens" para “jornais” reservados a um único leitor: eu lia o dele; ele lia o feito por mim.
Nem jornaleiros nem jornalistas, um dia eu e ele viramos bancários. Quando te conheci, Vó, eu já era homem feito, pai de família, mas ainda cochilava em mim o moleque que a tua banca de jornais e revistas despertou.
Hoje, Vó, o número de publicações diminuiu ou sumiu de muitos desses pontos de venda. A crise no meio impresso sofreu o golpe fatal com a pandemia, quando muita gente deixou de comprar aquilo que não pudesse ser descontaminado. E as bancas sobreviventes parecem pontos de camelôs. Vendem de tudo: água mineral, bebidas, cigarros, doces, preservativos, acessórios para celular e sabe-se lá mais o quê.
Mas chega de saudade! Como bem disse um poeta, o futuro é uma astronave que tentamos pilotar e que muda a nossa vida, depois convida a rir ou chorar.
Agora, Vó, numa folha qualquer posso até escrever sobre sol amarelo, castelo ou uma linda gaivota a voar no céu. Mas o que queria mesmo é aprender a sorrir assim feito tu. Benza-te Deus!