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Por todos os séculos

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Existem momentos que dispensam palavras. Falam por si mesmos, desde o princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos. Para a escritora Fernanda Young, por exemplo, “Coração quebrado tem cura: A paz de não precisar mais aguardar a perfeição que não existe”. Anteontem, uma celebração entrou para a posteridade após repercutir nas redes sociais. Gabriel Medina enfrentou Kanoa Igarashi, que o derrotara nas Olimpíadas de Tóquio, mas em Paris ele queria reescrever a história. No terceiro dia de competição em Teahupo'o, uma vila na costa sudoeste da ilha do Taiti, Polinésia Francesa, Medina começou com uma onda pequena, preparando o tom para o que estava por vir. Menos de dois minutos depois, ele pegou a maior onda do dia, obtendo 9,9 dos juízes, a maior nota da história do surfe nas Olimpíadas. Dois dos cinco jurados chegaram a dar 10. O êxtase de Medina produziu outro momento singular: ele saltou da prancha, ergueu o dedo indicador sinalizando o número 1 e o equipamento voou

Ao pé do ouvido

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Desde criança ouço falar sobre Guilherme Tell, herói ligado à independência da Suíça. A lenda diz que ele era um atirador excepcional com uma besta, um tipo de arco e flecha. No século XIV, desafiou uma das mais influentes famílias nobres da Europa, os Habsburgos, também conhecidos como a Casa da Áustria, que dominava a Suíça. Um governador austríaco tirano ordenou que um chapéu com as cores da Áustria fosse pendurado na praça central da cidade onde Guilherme Tell morava. Todos que passassem por lá deveriam saudar o chapéu. Um dia, passeando com seu filho, Guilherme não fez a saudação e foi preso. Como castigo, o governador ordenou que ele atirasse em uma maçã sobre a cabeça da criança. E com uma precisão cirúrgica, ele acertou a fruta, tornando-se um mito e ajudando, mais adiante, na revolta que libertou a Suíça. Quando escutei essa história pela primeira vez, fiquei impressionado com a coragem e a frieza com que pai e filho enfrentaram o castigo do tirano. Na minha meninice, imaginei

A vida é mesmo muito frágil

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Aos 61 anos, Nando Reis continua um dos grandes personagens da música brasileira. Suas canções, imortalizadas por bandas como Titãs, Skank e Jota Quest , além da parceria inesquecível com Cássia Eller, destacam-se por letras enigmáticas e instigantes. Tanto que mantém um canal no YouTube para explicar suas letras.   Fui apresentado a ele há 20 anos, nos bastidores do Multiplace Mais , em Meaípe, Guarapari (ES), após um show memorável. "Parabéns, Nando, foi espetacular!" – cumprimentei. E aquela figura humilde e insegura me perguntou baixinho: "Você gostou mesmo?"   Na noite anterior, ele não conseguiu terminar a segunda música, praticamente desfalecendo no palco, sob vaias de um público estimado em três mil pessoas. Uma banda local teve que substituí-lo para acalmar a plateia.   Recentemente, no programa Maria vai com os Outros do Canal UOL , direto de sua casa em São Paulo, Nando expressou o desejo de viver até os 104 anos: "Quero viver mais de 100. Claro q

Nao dá pra esconder

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Há duas semanas, uma cantora pernambucana interrompeu um show em Mossoró, no Rio Grande do Norte, por um motivo insólito: um pum afastou parte do público da frente do palco durante a festa de São João na cidade. Após notar a dispersão, a artista brincou: "Pensei que fosse uma briga, mas soltaram um peido aí, foi? Tá podre mesmo. Carniça!". E compartilhou em suas redes sociais: "Já parei o show por vários motivos, mas por causa de um peido foi a primeira vez". Essa situação inusitada me fez lembrar de um velho amigo, poeta matuto paraibano que vive "defendendo sua poesia a golpes de declamações por todo o Brasil em tons solenes e brincativos", como ele mesmo diz, a quem manifestei minha preocupação de vê-lo nessas aglomerações juninas regadas a comidas à base de milho verde, manteiga e leite de coco.  Ele me tranquilizou ao explicar que, no caso de suas geniais apresentações, um pum pode mudar de um lado pro outro sem maiores consequências para o recital ou

Galope do tempo

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Outro dia, um amigo me mandou uma fotografia de três décadas atrás fazendo uma ressalva que me deixou apreensivo: “Cá pra nós, não estou me dando muito bem com o galope do tempo. Custei a vergar, mas ultimamente...” Curioso, perguntei sobre a amplitude do “ultimamente” mencionado. Disse-me, no seu gauchês, que é só “o somatório de várias constatações nos últimos tempos: Correr todo duro, sem qualquer molejo; tontear ao abaixar; ficar ofegante a partir do quinto degrau de uma escada; não aguentar mais uma churrascada como antes; querer dormir mais que a cama; esquecimentos frequentes... Isso sem falar da necessidade dos ‘azulzinhos’ para qualquer saliência com minha deusa morena...” Exagerou, sem dúvida! Aos 68 anos, continua o brincalhão debochado, sarcástico, tocando seu trombone maravilhoso e provocando Deus e o mundo, como quando citou Woody Allen em nossa conversa: “Não é que eu tenha medo de morrer; é que não quero estar lá na hora que isso acontecer.” Ele sabe que a possibilidade

Os sem-noção

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Três semanas atrás, publiquei aqui neste espaço uma crônica sobre a chatice que gerou uma boa discussão entre os leitores, os quais, assim como eu, se identificaram como chatos ocasionalmente, o que é natural. Mas, dentro desse universo, existe um grupo que merece destaque especial: os sem-noção.   Não falo apenas daqueles que, em um churrasco entre amigos, soltam perguntas sem graça do tipo: “o que o azeite disse para o vinagre?”. E ele mesmo, em seguida, responde: “Digo nada... Só óleo”. Ou daqueles que adoram expressões de duplo sentido, como "o negócio continua de pé, só esperando uma posição sua". Aqui o problema é outro, bem mais grave.     Ilustração: Umor Os sem-noção, que variam de folgados a malas sem alça, são aqueles que, sem qualquer consciência de espaço ou decoro, acreditam ser o centro do universo. Eles criticam, impõem suas opiniões, falam demais, e o pior, pensam que todos ao redor o adoram – quando, na realidade, são insuportáveis. São criaturas dignas de

O dever de tentar

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Aos 85 anos, uma querida amiga minha decidiu renovar a CNH para adquirir um novo carro. Ela pretende retomar as rédeas de sua vida: ir à praia, à igreja, ao supermercado, à farmácia, ao salão de beleza e aos bailinhos da penúltima idade, sem depender de ninguém. Viúva, ela já não divide sua intimidade nem com as filhas descasadas. Mora sozinha, cuida da própria alimentação, assiste TV, reza e navega nas redes sociais.  Temendo quedas, largou as caminhadas ao entardecer, aderindo à prática do pilates.     Ela acredita que poderá contribuir bem mais para a economia de consumo, pois entrará no círculo virtuoso em que um bem durável não só gera lucro a quem o produz, mas também redistribui renda, desde grandes industriais até os guardadores de rua. Alega também que apoiará vários segmentos produtivos, desde a indústria automobilística até petroquímicas, refinarias, destilarias de álcool, postos de combustíveis, fábricas de centrais multimídias, painéis digitais, couros, plásticos, pneus, r

Golaços sociais

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Dias antes das chuvas que provocaram inundações em quase todos os municípios gaúchos, no maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul, o Juventude enfrentou o Corinthians pela segunda rodada do Brasileirão 2024. No Estádio Alfredo Jaconi, em Caxias do Sul, algo curioso chamou atenção antes do início da partida: a maioria dos jogadores usava óculos escuros.   Reprodução/Redes Sociais A cena noturna poderia ser vista como um desfile de vaidades, mas, na verdade, era uma jogada de marketing da  Chilli Beans.  A marca aproveitou o evento com grande audiência para promover sua nova linha de produtos. Após a vitória do Juventude por 2 a 0, um vídeo viralizou nas redes sociais: o principal jogador do time apareceu como um astro de cinema, de óculos escuros (para se proteger dos  flashs ), simulando uma coletiva de imprensa.   Esse foi mais um episódio do chamado Marketing de Guerrilha. Criado nos anos 70 por Jay Conrad Levinson e inspirado nas táticas de guerra do Vietnã, essa es

Que chato, não?!

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Ninguém nasce chato. Ser chato é um estado da alma, uma dimensão do espírito que se apura em fogo brando. Existem aqueles que, desde os primeiros minutos fora do útero, abusam do direito de berrar, seguros de que se darão bem no novo mundo na base do grito. Modéstia à parte, perdi a conta de quantas vezes fui tachado de chato pela minha mulher.  Apesar de mais de cinco décadas de mútua tolerância, ela, vez por outra, não hesita em soltar um contundente “ô cabra chato!”. Mas sabe que seria bem pior conviver com uma pessoa insossa, morna e previsível. Ilustração: Umor Não vou negar, às vezes reclamo de forma mais destemperada de certas coisas. Mas, no calçar das meias alheias, percebo que ninguém está livre desse rótulo. Somos, na verdade, uma multidão de chatos vagando pelo mundo, alguns em avançado estado de decomposição mental.   Para mim, o mais difícil de aturar é aquele que não tem a mínima ideia da extensão de sua chatice e passa o dia criando situações irritantes. Não sossega nem

Raízes e horizontes

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O romancista e poeta baiano Carlos Barbosa me contou que “O Meu Pé de Laranja Lima”, um clássico da literatura brasileira escrito por José Mauro de Vasconcelos, publicado originalmente em 1968, acaba de alcançar a marca de 400 mil exemplares vendidos na China. Trata-se da história de Zezé, um menino de cinco anos muito esperto e sensível. Tornou-se leitura escolar para as crianças chinesas. A tradução foi feita por Ma Guangping e publicada pela primeira vez em 1983. Ela é conhecida por trazer várias obras literárias brasileiras para o público chinês, ajudando a promover nossa literatura no Oriente. A notícia me fez lembrar da história de meu amigo  Maneco. Ele passava horas contemplando a sombra de uma varinha cravada no chão do quintal, que mudava de posição a cada instante, até o pôr-do-sol:  – O que você faz aí, hein?  – Tô vendo o tempo passar, mãe... No terreiro, além da cerca de avelós, do pé de manga espada e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive n