terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Achados e perdidos


Quem nunca passou pela angústia de ter um filho ou um irmão perdido na multidão,  no shopping, na feira livre ou na praia? Para Einstein, "só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem; a segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre." 

A primeira vez que vi o mar foi aos 12 anos, no início de 1970, em frente à AABB Maceió. Meus pais se esforçavam para cuidar de nove filhos espalhados na areia, onde uns rolavam, outros faziam castelos e os mais ousados, afeitos à correnteza do Rio Mundaú, arriscavam molhar os braços e as canelas finas na espuma das marolas, encantados com o céu e o sol daquela manhã de domingo. 


Minha mãe, responsável inclusive pela “segurança alimentar” daqueles matutos, trazia numa sacola mangas-espada e bananas-prata, além de algumas garrafas de água potável. Tudo transcorria muito bem até minha irmã Zuleide (Galega, seis anos) desaparecer naquela multidão de rostos e corpos desconhecidos.



“Galega! Galega!”, gritava uma mãe  desesperada com a possibilidade de nunca mais encontrar a filha, sem saber se corria no rumo da favela de Ouricuri, da Praia da Avenida ou, no pior dos mundos, se procurava a menina nas ondas traiçoeiras da Praia do Sobral, que já era tida como uma das mais perigosas da cidade. E os irmãos, assustados e confusos, entreolhavam-se sem saber o que fazer, temendo agravar o quadro numa eventual dispersão.

Três anos antes, numa daquelas comilanças ao ar livre na zona rural de Patos, no Sertão paraibano, a família já havia passado por agonia parecida quando meu irmão Hélder (Dula, cinco anos, à época), ao perseguir alguns perus, embrenhou-se na mata e não soube mais retornar. A aflição foi enorme porque não se tinha a mínima ideia de onde começar a procurá-lo naquela caatinga cheia de espinhos.

Milagres acontecem. Na praia, Galega foi encontrada meia hora depois nas proximidades do Club Fênix Alagoana, sob a proteção do Corpo de Bombeiros. Na mata, o caso Dula havia sido mais complicado. Meu pai precisou mobilizar alguns vaqueiros a fazerem uma varredura como se procurassem um bezerro desgarrado, até localizar a criança, de tardezinha, dormindo à sombra de um juazeiro, com fome, sede e cansado de tanto soluçar em vão.




Vinte e um anos depois, em 1991, foi a vez de Hélio (Lica, 31 anos). Ninguém desconfiava de que ele desenvolvera um aneurisma cerebral - dilatação anormal de um vaso sanguíneo por perda de elasticidade - que se rompeu justamente numa manhã de sábado, quando se divertia jogando futebol com colegas de trabalho no campinho do clube recreativo da Caixa Econômica, em Riacho Doce. Mesmo forte e novo, ele não conseguiu recuperar-se da intensa hemorragia craniana que lhe fez desaparecer para sempre da mesa em que almoçávamos, quase todo sábado, na velha casa da Gruta de Lourdes.

Todos nós sofremos e choramos, cada qual do seu jeito, o martírio daquele novo desaparecimento em nossa família, ainda que alimentássemos a esperança de que um bombeiro, um vaqueiro ou até mesmo um neurocirurgião nos traria ele de volta. Nem tanto por nós, que já éramos bem crescidos, mas pelos seus filhos inocentes que, assim como o próprio Hélio (Lica), ficaram órfãos de pai antes da hora. 


Milagres nem sempre acontecem. Viver é sobreviver para colecionar memórias  numa gaveta de achados e perdidos que temos dentro de nós.



28 comentários:

  1. Momentos tristes da nossa família...lembranças...

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    1. Ótimo. Agora você misturou as passagens no mar com as do Rio Mundaú. Estou enganado?

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  2. Achados e perdidos...
    Cresci com você do meu lado me preparando para a vida. Mas para a sua partida, não houve nada nem ninguém capaz de me preparar.
    É a ausência mais sentida na vida daquela criança moleca de 9 anos, que perdeu aquele abraço forte e aquele colo acolhedor. Que se escondia nas festinhas do dia dos pais da escola, porque não teria a quem entregar aquela cartinha feita na sala de aula. Que teve que crescer e virar "gente grande", no auge da sua infância. Virou menina medrosa, chorona e carente. Com um coração quebrado.
    Cheia de interrogações e muitos "porquês" naquela cabecinha. Mas... "Por que eu? Por que O MEU PAI?"
    Por muito tempo, como diria o ESPELHO do bom e velho João Nogueira, "NA INOCÊNCIA DE CRIANÇA DE TÃO POUCA IDADE... TROQUEI DE MAL COM DEUS POR ME LEVAR MEU PAI"... Sem saber, na doce ingenuidade, que a missão daquele homem havia sido cumprida (mesmo que por tão breve tempo...). E que ELE, o cara lá de cima, é quem sabe todas as coisas, os "PORQUÊS" e "PRA QUÊ" das nossas vidas.
    Cada 2° domingo de agosto era um sofrimento... uma dor que sentia na alma e partia o coração.
    Muitas memórias para acalmar a saudade.
    Hoje, 27 longos anos se passaram e começo a entender os "ACHADOS E PERDIDOS" dessa vida.
    As histórias que eu ainda tinha parar viver com ele. A colação de grau que ele não aplaudiu, as brincadeiras no chão da sala com os netos que ele não desfrutou, o cortejo guiando-me ao altar que ele não o fez... mas, na plena certeza que em todas as ocasiões ele estava no lugar mais acolhedor que eu poderia colocá-lo: dentro do meu coração.
    A paz foi selada com Deus. Hoje, entendo que existe um tempo pra tudo.
    É difícil entender meu gênio forte, meu jeito, meus traumas, meus medos e incertezas... Meu mundo ao avesso que seria completamente diferente com sua presença.
    Mas existe um lado contrário. Meu sorriso largo, comunicação fácil e orgulho certo quando alguém chega junto e diz: "Nossa, você é filha do Hélio? Parece demais com ele". E o mais engraçado, sempre vem acompanhado de um 'causo' vivido com ele na sua breve passagem.
    Seus ensinamentos vão me acompanhar sempre, assim como a sua preciosa memória. 

    "PODE SER QUE DAÍ VOCÊ SINTA... QUALQUER COISA ENTRE ESSES 20 OU 30... LONGOS ANOS EM BUSCA DE PAZ..."

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    1. Quem disse que com a morte acaba tudo? Aqui está um exemplo concreto de um coração que pulsa de amor por um pai que apenas mudou de plano, mas permanece bem vivo dentro de uma filha querida.

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    2. Sou meio que "alien" nesse acolhedor blog de familia e, claro, sempre leio o texto e vários comentários. Minha reverência a Hayton e Manuella (aliás adoro esse nome ) pelos textos tão bem escritos !abraço Jackie

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  3. Essa eu não sabia!
    Gostei muito dessa viagem ao passado. Não conhecia essa parte da sua história. Se perder de um ente querido é uma tarefa dificil., Principalmente quando se perde para sempre.

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  4. Belas estórias gostosa de ler, pela leveza e principalmente pelo conteúdo. Triste pela perda irreparável de um ente tão querido. Essa de conhecer o Mar com 12 anos, posso imaginar a alegria. Eu conheci com 30 anos, 1974. Praia de Tambaú João Pessoa. Fiquei tão apaixonado que não consigo passar mais de 6 meses sem visitá-la.

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  5. É triste, saudoso e aconchegante.
    Creio que viver a vida é senti-la como se tudo fosse milagre a mando de Deus.
    As lembranças nos levam a sentir a proximidade daqueles que nos deixaram.

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  6. Caraca! Essa foi forte. Triste, sob o olhar humano; bonita, sob o olhar literário.
    De todo modo, um relato de vida. Assim como ela é. Cheia de achados e perdidos (Marcelo Torres, Brasília-DF)

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  7. Eu lembro bem do Hélio (Lica)saudade, e o Dula era arisco por isso se perdeu na caatinga. A vida tem dessas coisas ,as vezes tensa e engraçadas e algumas tristes, mais aquele lá de cima sabe o que faz. Abração Hayton.

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  8. Ótimo, apesar da pouca idade, lembro da minha angústia às margens de um rio cheio de folhas secas, ouvia bem longe a voz de mamãe Dulinhaaaa, naquele momento só tinha forças para chorar!!!!

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  9. Ainda bem que está aqui para confirmar o aperreio. Nunca mais correu atrás de peru nem em véspera de Natal.

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  10. A vida tem dessas coisas! Há momentos para sorrir e outros pra chorar.. É a vida! Entre as dores e os consolos nos encontraremos sempre e assim vamos forjando quem seremos um dia!

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  11. Adorei, Hayton! Me vi em cada cena, mesmo sem ter tido irmãos. Você está com a veia literária cada vez mais pulsante!
    Deus conserve assim!

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  12. Parabéns Hayton,beleza de texto, embora retrate um fato dificil na vida de sua familia, e maravilhosamente complementado pelos comentarios, em especial da Manoella.tiberio

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  13. O comentário de Manoela retrata o verdadeiro amor de uma filha cujo pai semeou muito amor e que apesar de não ter tido tempo de colher a família com certeza está colhendo

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  14. Eu sei o que Dula passou. Já me perdi quase da mesma forma. Também sei o que são coisas que Manoella conta nos comentários, sobretudo o que é crescer e conquistar, sem ter um pai a quem mostrar.
    Como é bom ler e poder me emocionar a partir de textos realistas e intensos como os seus.

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  15. Ahhh! Feliz Aniversário ����������

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  16. Hélio Jurema da Rocha Filho27 de fevereiro de 2019 às 16:34

    Que texto...que saudade!

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  17. Emocionante! Não sabia que eras escritor! Hahaha. É emocionante conhecer a história da minha família, cada dia um novo detalhe é acrescentado! Prima Manu você é um exemplo de fé em Deus e de amor!

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  18. Momentos da Vida que Nos levam ao passado, relembram fatos e histórias que com certeza, alguns viveram. A perca através da morte, este o ciclo da vida que deixa marcas profundas. É a Vida e é embora dolorosa, bonita .
    PARABÉNS

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  19. Tive a honra de ser amigo e colega de trabalho do Hélio, azulino doente. Como matuto da Palmeira dos Índios tbm só conheci o mar aos 12 anos, só que a noite, ou seja, privilégio de me banhar nas águas do oceano só bem depois.

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    1. Essa eu desconhecia, meu pai azulino!
      Deve está orgulhoso de Júlia, "azulina roxa", igual aos 2 avôs.

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  20. Boa tarde. Meu pai era primo de seu pai, somos primos em segundo. Você já conversou com a tia Cristina sobre o nosso livro que publiquei em julho passado? Foi sobre a família Tôrres, desde suas origens na Espanha e Portugal até os dias de hoje. Se vc desejar que vocês como família desejarem adquirir cada um o seu exemplar, a tia Crisrtina tem uns 10 exemplares do livro. Ou se desejar falar comigo, meu contato é (98) 989203982 Um abraço.

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