quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A sacanagem de Jobim com João

Nada de maestro, compositor, pianista, cantor ou arranjador musical. Nem um dos criadores da Bossa Nova. O Jobim a quem me refiro era caixa do Banco do Brasil nos anos 70, na agência de Maceió.

Cara de areia mijada, óculos na ponta do nariz, timbre de voz grave, ele contava cédulas mordendo a língua. Vivia a pregar peças e a perturbar o juízo das mais variadas pessoas e ninguém sabia ao certo quando falava sério ou de brincadeira.

Certa vez, ao atender a um cliente que sacava alta quantia em dinheiro, de propósito ele trouxe um dos pacotes cintados de 100 cédulas com duas notas a menos e aproximou-se com o maço desfalcado na palma da mão, balançando, como se estivesse “pesando a mercadoria”:
— Sei não... Deve tá faltando duas cédulas...
— Então, conte o dinheiro, rapaz! — propôs o cliente.

Jobim simulou contar, recontar e, confirmada a falta, completou o pacote com duas cédulas retiradas da gaveta do caixa. O cliente arregalou os olhos e saiu dali impressionado, a ponto de comentar com os vigilantes na saída:
— Esse rapaz é bom mesmo. Conhece dinheiro até pelo peso.

Diferente de Jobim era João, que nunca tocou violão nem cantou porque era desafinado até para assoviar. Chefiava um setor em outro pavimento, onde seus colegas o viam como alguém carrancudo, inflexível, que se jactava de ser professor de Física e profundo estudioso de objetos voadores não identificados.

Com ar de sabe-tudo, João contava que o astrofísico francês Jacques Vallee, em seu livro Anatomy of a Phenomenon, de 1965, teria sido o autor da primeira definição de OVNI. Em linguagem empolada, dizia que "eram manifestações de relatos de uma imagem visual percebida pela testemunha como a de um objeto voador material, que possuiria pelo menos umas das seguintes características: aparência ou comportamento incomum". 

Ao saber disso, Jobim pediu a um fofoqueiro — toda empresa possui os seus — para espalhar pelos treze andares da agência que tivera no passado uma experiência misteriosa com seres extraterrestres.

       Fez isso convicto de que seria procurado por João, a quem passou a evitar. Toda vez que João se aproximava dizendo que precisava conversar, Jobim arranjava uma desculpa qualquer e escapulia, atiçando ainda mais a curiosidade "científica" do colega.

Era esperado que o encontro acontecesse. Um dia, João ficou de tocaia na porta da agência, minutos antes do final do expediente:
— Oi, Jobim, eu soube que você viveu uma experiência com OVNI e queria conversar sobre isso.
— Olhe, João, eu prefiro não tocar nesse assunto. Ninguém acredita no que eu digo. 
— Por quê? Você sabe que sou estudioso...
— Melhor deixar isso pra lá.
— Peraí, Jobim, você vai ter que me contar como foi.
— Pois bem, eu era fiscal de operações em Santana do Ipanema, no Sertão. Fui vistoriar umas lavouras de milho num baixio e como não conseguia chegar de carro lá embaixo, tive que descer o morro no lombo de um jumento.
— Sim, e daí?
— Não sei bem o que aconteceu. De repente, o tempo esfriou, mesmo com o solzão de rachar. Aí surgiu uma sombra danada de grande e desceu um troço cinza, parecia dois pratos emborcados.
— E você, fez o quê?
— Tá doido?! Pulei do jumento na hora e me escondi detrás de uma touceira de capim. Deu até vontade... Dor de barriga.
— Sei...
— Não demorou dois minutos saíram dois baixinhos olhudos, da cabeça grande, de dentro dos pratões e caminharam na direção do jumento.
— E você, quietinho...
— Claro! 
— E aí?
— Um deles olhou pro jumento e perguntou: “uba-tatuba?”  O jumento deu uma gargalhada e respondeu: “tatuba-uba!”

A turma do “deixa-disso” teve que entrar em cena. João queria estrangular Jobim:
— Você é moleque mesmo! Me fazer perder tempo com uma sacanagem dessas?
— Eu bem que lhe avisei. Ninguém acredita no que eu digo!

39 comentários:

  1. Ótima história. Esse Jobim é d+. Me fez lembrar do BIP - Boletim Interno do Pessoal, das histórias não escritas do BB. E me lembrou, também, de uma "historinha". Um sujeito muito tímido, nunca tinha saido de casa pra viajar. Chegou à Rodoviária de "Sumpaulo", no Tietê, mas não sabia o que dizer pra comprar a passagem do ônibus. Ele pensou: vou ficar na fila, vou ver o que dizem as pessoas e aí eu dou um jeito. A pessoa que estava em frente a ele disse ao vendedor de passagens: Aparecida, ida. Aí, chegando a sua vez, não teve dúvida e foi logo falando: Ubatuba, uba...

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  2. Mais um gostoso "causo" de se contar/ler pra nos fazer começar a metade da semana de forma mais leve.

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  3. O que seriam das empresas se não tivessem os " Jobins" da vida pra descontrair? Fiquei imaginando, um ambiente tenso como o de um banco, cheio de clientes, Jobim contando dinheiro mordendo a língua...( risos).

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  4. ANTONIO CARLOS CAMPOS2 de setembro de 2020 às 07:00

    O espírito de pertencimento que existia no BB - e em outras empresas igualmente - foi uma das perdas que os novos tempos terminaram. No BB o espírito família era fortíssimo. Foi-se.

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  5. Bons os tempos que criávamos situações para diluir o estresse do cotidiano, nos dias atuais os Jobins são tragados pela acidez corporativa e os Joãos assistem Netflix.

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  6. O Jobim era o Lincoln, Hayton? A forma como o descrevestes retrata fielmente a personalidade dele.

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    1. Sim, Jez. Lincoln Pereira Jobim, o cara!

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    2. Desconfiei que seria ele. Muito bom ler seus contos, Hayton! Vou dormir mais descontraída. Abraço

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  7. Ah os Jobim..... são verdadeiras comédias .

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  8. Jobim, Catita e tantos outras almas, que conhecemos, no Banco e pela vida, que nos descontraiam com seus divertidos causos, que deixavam os mais criativos pescadores no chinelo.

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  9. Cara de areia mijada é ótimo! Kkkkk
    Era outro Jobim mas também gostava de tirar uma “Wave”!

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  10. Hahahahahaha. Ri alto aqui, primeiro porque é uma crônica retada e segundo porque os dois arquétipos que você descreve existiram em todas as repartições, encarnados em outros avatares.

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  11. Me lembrei de um colega da Ag.Salvador Centro que gostava de pregar peças dessa natureza com outros colegas.

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    1. Seria o famoso comentarista esportivo ARMANDO OLIVEIRA, Perpétua?

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  12. Esse Jobim deveria ser uma mala,sem alça. Kkkkk

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  13. Outro grande contador de histórias da Centro Maceió era o Murilo Bonfim. Nos intervalos do almoço, corríamos para a sala reservada para o descanso e ficávamos a ouvir o antigo fiscal da CREAI contar seus causos, como no dia em que o jipe que dirigia foi jogado a mais de três metros de altura por uma Sucuri na região amazônica onde trabalhava. Lembro-me também do Cordeirinho, em União dos Palmares, recém transferido de Breves-PA, narrando suas aventuras como fiscal naquela região. A maior delas, foi que o monomotor que o conduzia deu pane e o piloto teve que pousar num rio infestado de jacarés. Para escapar da situação, contava para todos, teve que caminhar por sobre os répteis até a terra firme.
    Parabéns, Hayton! Grande memória e criatividade.

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  14. O texto que se anuncia anedótico deixa um gosto de nostalgia. Deu saudade de um Banco do Brasil que não existe mais.

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  15. Hahahahahahahaha. Eita que o Jobim compôs uma excelente piada pra esse João, que caiu igual um patinho

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  16. Mestre, eu me lembro desse caso, quando trabalhei na Super-AL...Eu eu ouvia os comentários do coloquio do jumento com os marcianos...kkkkkkkk, mas não entendia nada. Agora, com esse seu "presente", comecei a entender a cara de poucos amigos do João.

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    1. Dizem que até os dias de hoje, Didi, escuta-se no velho prédio da Rua do Livramento o som da gargalhada do jumento citado por Jobim. Mas há quem não acredite nisso...

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  17. Hayton, sua descrição no texto me fez a cada parágrafo ter na mente a "fotografia" da cena. Você é muito bom com a pena. Excelente história.

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  18. Tive o imenso prazer de trabalhar com o Jobim na agência Centro e no Cesec Tabuleiro. Figura inesquecível.

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  19. Boa. Felizmente tínhamos amigos assim. Era o que quebrava o clima sério de antigamente. Bons tempos.

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  20. Noutro ambiente já comentei com Hayton sobre uma história de caixa-executivo do BB, impublicável aqui, mas que cairia bem naquela reunião presidencial de 22/04, próximo passado. De todas as crônicas que li até agora, esta foi a mais hilária. Ótima pra desopilar o fígado.

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    1. Pena, Silas, que ainda existam pessoas que não acreditam nas histórias de Jobim, que fisicamente nos deixou há mais de uma década mas continua bem vivo na memória dos amigos.

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  21. Tempos Bons! Melhor que tenha a capacidade e arquivo para trazer estas belas histórias para saborearmos......

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  22. Excelente história! Cara de areia mijada, contava cédulas mordendo a língua pense numa figura este Jobim. Bela crônica que nos faz rir.

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  23. Seus personagens são impagáveis, você os faz assim com prosas tão deliciosas. Certamente todos nós conhecemos gente
    assim, em nossa trajetória no BB, mas a história de cada um dos que você conta aqui
    os fazem personagens de Wood Allen, Almodovar ou que tais.
    Sugiro que seu próximo livro seja de crônicas só envolvendo personagens com quem conviveu na carreira - com todos os que estão vivos presentes ao lançamento, o BB patrocinaria. Até o título ouso sugerir, lembrando de uma série que era publicada pelo nosso saudoso BIP. Agora seria, HISTÓRIAS AGORA CONTADAS DO BB.
    Se não estiver enganado, parece que UNKNOWN me liberou hoje.

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  24. Após boas risadas, resolvi procurar o significado do termo "cara de areia mijada", nunca antes ouvido por mim. O que encontrei:
    "Expressão cearense utilizada para designar uma pessoa que tenha muita acne (espinhas) no rosto se assemelhando as irregularidades ocorridas na areia lisa da praia após uma urinada."
    Vivendo e aprendendo.

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  25. Ah, Jobim!
    De fato as pessoas com essas peraltices sempre alegrava os ambientes nas agências e nas AABBs.

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  26. Estou viciado em ler suas crônicas baseadas em casos reais... ótimas!!!

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  27. Ótima! Esse Jobim era o “Cara”! 😂👏👏👏
    Sbs

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