Gilton Della Cella, cantador e compositor dos melhores que conheço, dia desses compartilhou um link de vídeo comigo. Trazia depoimento de Sandro Haick, multi-instrumentista, arranjador, produtor e diretor musical, falando sobre Dominguinhos, figura lendária na MPB.
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Reprodução/YouTube |
O trecho final comove. Sandro conta que, com muito tato, consultou Dominguinhos sobre se manteria um baixista que não acertava uma nota sequer para a segunda de três apresentações. O gênio, sorrindo, respondeu “sim”, com uma generosa ressalva: “ele tá precisando...” (ouça aqui)
Lembrou-me de um dito popular nordestino que descreve um político decente que surge de vez em quando, daqueles que existem apenas pra não perdermos por completo a esperança. Os mais humildes o reconhecem: “esse entende de precisão!”.
Também me veio à cabeça meu sogro, Tertulino, que desde menino, no sertão de Quixeramobim (CE), foi dispensado pelo próprio pai do trabalho no balcão do armazém da família. Por ter o coração mole diante do sofrimento alheio, renunciava parcialmente ao pagamento dos mais necessitados.
Compartilhei o vídeo com outros amigos, amantes da boa música instrumental, registrando que Dominguinhos merecia uma biografia escrita por mestres como Ruy Castro ou Fernando Morais, para que nossos netos pudessem conhecer sua história.
Dois deles, talvez combinados na brincadeira, sugeriram que eu encarasse a missão, com o argumento meio furado de que conheço a alma nordestina. Um até soltou que poderia ser “o desafio, a obra de minha vida”. O outro, ponderando que “esses medalhões não vão topar”, me recomendou a leitura do livro “A vida por escrito – Ciência e arte da biografia”, onde Ruy Castro divide segredos, técnicas e truques sobre o assunto.
Confesso que quase caio na conversa, mas estou seguro de que essa missão exigiria alguém mais dedicado do que eu, disposto a pesquisar a fundo, fazer perguntas difíceis e tirar conclusões lógicas de onde ninguém mais vê lógica.
Deus sabe que já fiz a obra da minha vida quando ajudei minha mulher a trazer ao mundo e a criar nossos filhos na justa medida de minhas limitações, cada qual com seus acertos e desacertos, mas todos tocados pela mais nobre das virtudes: a prontidão para servir aos mais frágeis.
Notei que pouco posso acrescentar ao que já foi dito sobre Dominguinhos, tudo acessível na internet. Desde o fato de que era um dos 16 filhos de um casal de alagoanos, mestre Chicão, sanfoneiro e afinador, e dona Mariinha, que migraram pro agreste pernambucano na primeira metade do século passado em busca de vida melhor.
Como tantos meninos pelo interior, Neném, como era chamado, tomou gosto pela música com o pai e aprendeu cedo a tocar pandeiro, triângulo e sanfona. Logo se apresentava com dois irmãos em feiras livres e na porta do antigo hotel Tavares Correia, em Garanhuns (PE), onde conheceu Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, que se impressionou com a criança e se ofereceu pra ajudá-la, caso um dia fosse pro Rio de Janeiro.
Anos depois, o pai resolveu procurar Gonzagão, no Rio, fugindo das dificuldades enfrentadas no Nordeste, carregando a família, inclusive Neném do Acordeon, aos 13 anos, numa viagem de pau-de-arara que durou 11 dias.
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Foto: Acervo Rio Gráfica Editora |
Mais pra frente, já batizado de Dominguinhos por Luiz Gonzaga, voltaria ao Nordeste numa turnê, em 1967, como motorista e sanfoneiro do grupo de músicos. Foi quando conheceu a recifense Anastácia, cantora e compositora com quem foi casado por 11 anos e compôs mais de 200 músicas (as “filhas” do casal, segundo ele).
Entrar pro grupo do Rei do Baião deu-lhe maturidade como músico e arranjador. Mais do que aprender, o discípulo inovou a arte do mestre, e se aproximou de artistas famosos (Chico Buarque, Djavan, Gal Costa, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Maria Bethânia, Nara Leão, Roberto Carlos etc.), abrindo a porteira para uma carreira que passeou por vários estilos musicais, de Baião, Forró, Xote, até Bossa Nova, Choro e Jazz.
Em Lamento Sertanejo, sua canção preferida, em parceria com Gilberto Gil, consta que, "por ser de lá, do sertão, lá do cerrado, lá do interior do mato, da caatinga, do roçado", era uma "rês desgarrada na multidão".
Dizem que a solidão é a sorte dos espíritos excepcionais, o que talvez explique um legado (506 obras musicais, 34 LPs e 38 CDs) que transcende gerações, tocando corações em todo o mundo.
E o reconhecimento veio também de fora. Em 2002, ganhou o Grammy Latino, com o CD Chegando de Mansinho, e 10 anos depois repetiu o feito, na categoria melhor álbum brasileiro de raiz, com o CD/DVD Iluminado.
Mas aí chegou 2013 e, aos 72 anos, ele não resistiu à luta travada contra um câncer de pulmão.
Não duvido nada ter encontrado, em outro plano, o Criador de tudo, tendo ao lado Gonzagão, a quem Dominguinhos se dirigiu:
– Mestre... Dá licença? Tô de volta pro meu aconchego, trago saudade, quero um sorriso, um abraço pra aliviar meu cansaço...
– Oxe! Precisa pedir? – responderam, sorrindo, os dois.