Passava das dez da noite de sexta-feira quando Ernesto chegou em casa. Largara às seis. Com cuidado para não fazer barulho, abriu a porta bem devagar, descalçou os sapatos e seguia em direção ao quarto quando da escuridão fez-se a luz. Sua mulher, de origem germânica, forte e brava feito onça da pata torta, sentada no sofá, acionou o quebra-luz:
— Bonito! Isso é hora de pai de família chegar em casa? Que exemplo dá para os filhos, hein?
— Peraí... Quem disse que eu cheguei? Vim só buscar o violão.
— Como é? Quando é que cê vai parar com essa vida?
Minutos depois lá estava ele a fechar o ferrolho do portão do jardim, ganhando a calçada onde os amigos o aguardavam na esquina.
Alto, elegante, cara de cacique apache, na casa dos 45 anos, Ernesto era motorista do gerente de um banco na capital alagoana, ali na metade dos anos 70. Guiava um Chevrolet Opala SS 1974, 6cc, preto, das 8h às 18h de segunda a sexta-feira, vestido num impecável terno azul marinho, sempre bem barbeado e com todos os fios da cabeleira no lugar, retrato dos tempos da brilhantina.
Quando o conheci, já não bebia uma gota de álcool sequer. “Tomei tudo o que tinha direito na mocidade”, dizia. Lembro-me dele no clube, numa mesa próxima da piscina, o cigarro no canto da boca e as mãos com os dedos compridos a extraírem acordes de violão ou cavaquinho. A seu lado, o copo de soda limonada com gelo e o tira-gosto.
Numa segunda-feira, era tanta a ressaca decorrente de noites mal dormidas e de petiscos gordurosos que Ernesto, a derreter no vaso sanitário em náuseas e cólicas, assustou-se quando lhe avisaram que o chefe estava de saída para um compromisso externo. Na pressa de vestir as calças, as chaves do carro caíram dentro do vaso e veio o desespero. “Achei que o chaveiro ia descer com tudo para a fossa”, contava.
Não lhe restou alternativa: prendeu a respiração, meteu a mão na massa e conseguiu resgatar o chaveiro com as pontas dos dedos antes de a descarga concluir o seu carrossel sonoro. Demoraria mais uns cinco minutos a lavar bem as mãos antes de encontrar na garagem o chefe, a quem se justificou: “Ontem à noite comi alguma porcaria que me fez mal”. O suadouro não deixava dúvidas quanto à veracidade do fato.
A mulher de Ernesto, adepta da Igreja Adventista do Sétimo Dia, levava uma vida devotada a Deus nos aspectos físico, psicológico e espiritual. Queria a todo custo, por isso mesmo, convencer marido e filhos a adotarem estilo de vida parecido, com base em oito remédios para ela santificados: fé em Deus, água, alimentação saudável, ar puro, comedimento, exercício físico, luz solar e repouso.
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Demônios da Garoa |
Numa manhã de sábado, um espírito de porco qualquer deve ter telefonado para a casa de Ernesto para dedurar que o grupo musical estaria se exibindo numa farra em Santa Luzia do Norte, pequeno município da região metropolitana de Maceió. Pouco depois, sua esposa chegou num táxi e foi logo armando o maior escarcéu.
Quase todos os frequentadores do bar se assustaram com a repentina aparição daquela senhora exaltada, de dedo em riste, dirigindo-se ao líder do grupo musical. Menos Ernesto. Calmamente, ele largou por um instante o cavaquinho, levantou-se do tamborete, pegou uma canoinha de palha de coqueiro, fez um risco no chão com o bico e disparou:
— Volte para casa, agora! Se você passar deste risco, não me responsabilizo por mim.
— Como? Eu não tenho dinheiro para pegar outro táxi — retrucou a esposa.
— Você não veio sozinha me desmoralizar na frente de meus amigos? Então, se vire.
E puxou um longo trago no cigarro, antes de voltar a dedilhar o cavaquinho.
Na segunda-feira, Ernesto apareceu no trabalho com o semblante sereno de sempre, mesmo com escoriações generalizadas no pescoço e nos braços. Parecia que tentara capar um gato com um bisturi cego. Disse que sofrera uma queda ao consertar goteiras no telhado.
Nenhum dos colegas ousou duvidar do líder. Afinal, o importante era que o grupo Ernesto e seu Magote de Cornos, com chuva ou sol no próximo final de semana, animaria nova farra num boteco qualquer.
Nenhum dos colegas ousou duvidar do líder. Afinal, o importante era que o grupo Ernesto e seu Magote de Cornos, com chuva ou sol no próximo final de semana, animaria nova farra num boteco qualquer.