Na coleção O Mundo da Criança que havia na estante de livros lá de casa, minha irmã e eu, aos dez e nove anos de idade, um dia descobrimos e ficamos impressionados com uma lenda afro-cristã cuja origem remonta ao fim do século XIX. Foi muito popular entre os abolicionistas gaúchos que lutaram pelo fim do vexame da escravidão numa terra de dimensões continentais.
Dizia-se que um fazendeiro cruel com seus escravos e peões mandou que um menino negro vigiasse no pasto alguns cavalos que acabara de comprar. De tardezinha, faltava um animal. O patrão então pegou um chicote e deu uma surra tão dura na criança que feriu feio suas costas. E arrematou aos gritos: "Vai ter que achar o cavalo agora ou vai ver o que acontece!".
O menino então saiu à procura do animal. Algum tempo depois, encontrou-o num pasto nativo, laçou-o, mas a corda arrebentou e o bicho desapareceu de novo no meio da escuridão. De volta à fazenda, o dono, mais truculento que antes, bateu de novo na criança e a amarrou sobre um formigueiro. Quando amanheceu, ela estava gelada, com os olhos opacos, inerte.
Mas, de repente, lá estava de pé, com a pele lisinha feito louça, sem as marcas das chibatadas que sofrera no dia anterior. À sua direita, a Virgem Maria; à esquerda, o cavalo fujão. O fazendeiro ajoelha-se arrependido, o menino se faz de mouco, beija a mão da santa e vai-se embora.
Pois bem. Toda vez que perdíamos algum brinquedo, livro, caderno ou lápis, tanto minha irmã quanto eu acendíamos uma vela sobre a mesa da sala de jantar e implorávamos pela ajuda do Negrinho. E, verdade seja dita, ele nunca vacilou conosco, apesar da distância que separava o Sertão paraibano e o Pampa gaúcho dos anos 1960.
Havia, certamente, alguma influência daquilo que nosso pai escutava em sua radiola Teleunião, na voz de uma gauchinha arengueira que encantou uma das plateias mais exigentes do mundo – primeira brasileira a pisar no palco do Teatro Olympia de Paris – com a obra-prima de Edu Lobo e Guarnieri, ligada à história dos escravos e seus descendentes entre nós:
“Upa neguinho na estrada
Upa pra lá e pra cá
Vixi, que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
Começando a andar, começando a andar
E já começa a apanhar...”
Não posso falar por minha irmã, mas, por mim, com o esfriar da inocência, fui deixando de lado aquelas promessas ingênuas e passei a aceitar melhor o dualismo da vida com seus planaltos e planícies, sua gaveta de achados e perdidos, depois que aprendi a mais básica das lições: uns dias chove; noutros, bate o sol.
Perdi muita coisa de lá para cá. Claro que não me refiro ao sumiço de amigos passageiros, à partida dos filhos da mesa em que almoçávamos ou à fita de chegada de uma corrida de obstáculos profissionais de mais de quatro décadas. Chega uma hora em que a gente se dá conta de que sofrer com o inevitável é mais uma perda: de tempo.
Se aqui na terra ainda estivessem jogando futebol como antes. Mas não vejo novos pelés, tostões, rivellinos, zicos, falcões, reinaldos, romários ou ronaldos. Também já não ouço muito samba nem rock’n’roll. Onde em se plantando tudo dava, já não brotam mudas de chicos, claras, elises, paulinhos, rauls, ritas, tons ou vinícius.
A coisa aqui está feia! É muita erva daninha infestando jardins, quintais, florestas e pantanais, inclusive algumas urtigas com suas togas encardidas e amarrotadas. Só o Negrinho do Pastoreio na causa!
Mas não posso nem quero abusar da paciência de meu velho e caro amigo. Ele deve andar pelo pescoço com tantos pedidos. Daqui a pouco vão faltar velas até nas bodegas de ponta de rua desta terra de frustrações continentais.